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Estado de Minas JUSTIÇA

No Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, ainda é preciso repetir: quem ama não mata

Argumento de 'legítima defesa da honra', repudiado desde a década de 1970, lança sombras a data comemorada neste sábado, após decisão do STF favorável a agressor


10/10/2020 06:00 - atualizado 10/10/2020 08:21

Vigilância renovada: mulheres lançam o movimento Quem Ama Não Mata, em 1978, na escadaria da Igreja São José, e voltam ao local, em 2018, para lembrar que o tema permanece atual. Agora, criticam decisão com 'sinal de misoginia' do STF(foto: Vera Godoy/Arquivo Estado de Minas - 18/8/1980)
Vigilância renovada: mulheres lançam o movimento Quem Ama Não Mata, em 1978, na escadaria da Igreja São José, e voltam ao local, em 2018, para lembrar que o tema permanece atual. Agora, criticam decisão com 'sinal de misoginia' do STF (foto: Vera Godoy/Arquivo Estado de Minas - 18/8/1980)
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press - 1º/11/18)
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press - 1º/11/18)

Ângela recebeu quatro tiros; Eloísa, cinco; e Josefina também perdeu a vida diante de uma arma – apertando o gatilho estavam homens que viviam com elas, e a exemplo de tantos outros companheiros, namorados e maridos Brasil afora, assassinaram ou feriram Marias, Joanas, Lúcias e Eloás, convictos de que lavavam a honra do lar com sangue. No Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado hoje, o tenebroso fantasma da "legítima defesa da honra", que entrou em cena na década de 1940, numa sessão de júri em Ouro Preto, na Região Central de Minas, volta a assombrar. E a deixar as marcas da maldade, muitas vezes com impunidade para o agressor.

O caso mais recente envolve a cidade mineira de Nova Era, no Vale do Aço. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve em votação a absolvição de um homem que confessou ter tentado matar a ex-mulher a facadas, em maio de 2016. A motivação do crime foi uma suspeita de traição, sobrevivendo a vítima à agressão. A decisão revoltou integrantes do movimento Quem Ama Não Mata – surgido nos anos 1970 para denunciar os crimes contra as mulheres –, certas de que houve retrocesso por parte da Justiça.

Em texto divulgado nas redes sociais, o Movimento Feminista Mineiro Quem Ama Não Mata repudiou a tese de legítima defesa da honra, a qual considerou "anacronismo odioso". Para as integrantes, a tese se baseia claramente na distribuição desigual de direitos entre homens e mu- lheres. "O STF, ao referendar uma decisão do júri popular, mesmo que baseado em leis e normas constitucionais, emite um sinal misógino para toda a sociedade: homens podem matar mulheres pela justificativa de que o corpo e a vida dessas mulheres lhes pertencem 'por direito'".



Após o julgamento por placar acirrado (3 votos a 2), com intenso debate sobre machismo no STF, veio o resultado com base na "soberania dos veredictos", princípio do direito em que a decisão de um júri popular prevalece sobre a de qualquer instância superior. O caso foi julgado em 2017 e, na época, os jurados aceitaram, por unanimidade, que o ataque estava amparado na "legítima defesa da honra". O Supremo, por consequência, manteve esse entendimento. O caso já havia sido levado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), bem como ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ambos entendendo que a absolvição contrariava as provas reunidas no processo e deliberaram pela realização de um novo júri. Agora, com a decisão do STF, não deverá ocorrer.

Argumentos


Usar a legítima defesa da honra na tentativa de absolver o réu acusado de matar ou ferir a mulher é uma situação que continua a existir no país. "E muito, principalmente nos estados do Nordeste e em regiões de Minas, ainda mais quando os jurados são mais velhos", diz o professor, advogado criminalista e doutor em direito penal Adilson Rocha.

Ele explica que a figura jurídica da legítima defesa existe quando é usado, moderadamente, um meio necessário para repelir uma injusta agressão atual ou iminente em proteção de um direito. Já a "legítima defesa da honra" não tem previsão expressa na lei. E cita um exemplo: "Se você é chamado por alguém de estuprador, e você não é um estuprador, vai responder fortemente à ofensa, chamando o agressor de animal, desprezível e outros nomes. Nesse caso, não constitui crime em legítima defesa da honra, nem serve de argumento, com previsão legal, para matar alguém ou lesionar", afirma o advogado criminalista.

"Nosso sentimento é de decepção, descrédito, desamparo e desilusão"

Constância Lima Duarte, professora de literatura brasileira da UFMG e integrante do Quem Ama Não Mata



Rocha dá mais detalhes: "Nos casos de crime doloso contra a vida, consumados ou tentados, como os de feminicídio, a lei determina que o jurado seja submetido a uma quesitação genérica e obrigatória nos seguintes termos: "O jurado absolve o acusado?". Se o jurado responder sim, ele não está obrigado a nenhuma demonstração do argumento que o levou a absolver o réu. Nesses casos, o advogado argumenta, durante sua fala, que houve, sim, uma legítima defesa da honra, podendo o jurado acatar o argumento (do advogado) de que houve efetivamente uma legítima defesa". Rocha volta a reforçar que a legítima defesa da honra, "em que pese ter sido muito usado anteriormente, e ainda é, não tem expressa previsão na lei".

Adilson Rocha conta que a tese da legítima defesa da honra foi usada, pela primeira vez, em Ouro Preto, na década de 1940, quando uma mulher matou a amante do marido. "Muitos advogados usam esse argumento na tentativa de absolver seus clientes. Depois de Ouro Preto, Ariosvaldo de Campos Pires (1934-2003) também se valeu disso no julgamento de um marido que assassinou a mulher, em Belo Horizonte", destaca.

Precedentes


Na década de 1970, Belo Horizonte foi sacudida por uma série de assassinatos de mulheres (veja quadro), nomes da alta sociedade, e os advogados de defesa buscaram a absolvição dos réus baseados no argumento da legítima defesa da honra. Entre os anos 1970 e 1980, 45 casos de homicídios de mulheres foram noticiados em Minas. 

Foi nessa época que surgiu, na capital, o movimento Quem Ama Não Mata para denunciar ameaças e crimes, bem como alertar a sociedade para a violência contra as mulheres, quando ainda não existiam a Lei Maria da Penha (2006) e a do feminicídio (2015), que entrou para a lista de crimes hediondos e se traduz como assassinato de uma mulher cometido devido ao desprezo que o autor do crime sente quanto à identidade de gênero da vítima.

O grupo discutiu a decisão do STF e mostrou indignação. "Nosso sentimento é de decepção, descrédito, desamparo e desilusão", disse a professora de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Constância Lima Duarte, integrante do Quem Ama Não Mata. Ela ainda questionou: "Como acreditar que a Justiça pode melhorar se anda para trás, e autoridades endossam um argumento absolutamente superado? Trata-se de um absurdo, pois minha honra está em mim, não no outro. Eu faço minha honra", afirmou.

A professora ressaltou que essa "interpretação equivocada, esdrúxula e revoltante pode abrir perigosos precedentes", depois que a sociedade superou desafios e milhares de mulheres perderam a vida. "Não se trata de feminismo, mas de um pensamento lógico, humano. Por isso o sentimento de desilusão."

Consultado, o Ministério Público de Minas Gerais disse que não vai se manifestar sobre o caso.


Em nome da honra?


Casos em que foi usada a tese de legítima defesa da honra pelos advogados, para tentar absolver o réu

Anos 1940 
» Uso do argumento, pela primeira vez, para absorver uma mulher que matou a amante do marido

1971
» Josefina Souza Lima, filha do 
ex-prefeito da capital mineira, é assassinada pelo marido, Roberto Lobato

(foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 26/6/1973)
(foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 26/6/1973)

1976
» Ângela Diniz (foto), apelidada de Pantera de Minas, é assassinada com quatro tiros pelo companheiro, o paulista Doca Street. O crime ocorreu em Búzios (RJ)

1979
» O engenheiro Márcio Stancioli mata, com cinco tiros, a mulher, a empresária mineira Eloísa Ballesteros. O crime ocorreu na residência do casal, na Pampulha

2016
» Em Nova Era, homem esfaqueia a mulher "por traição", e é absolvido pelo júri. Em 30 de setembro deste ano, STF mantém absolvição por legítima defesa da honra.


Praia dos Ossos


Já está disponível o quarto episódio do podcast Praia dos Ossos, original da Rádio Novelo sobre a história de Ângela Diniz, apelidada "A Pantera de Minas" e assassinada aos 32 anos, em 1976, em Búzios (RJ), pelo paulista Doca Street. Nesta parte do documentário é mostrada a passagem da socialite, nascida em Curvelo, na Região Central de Minas, para as páginas policiais. No episódio anterior, há a entrevista da jornalista Anna Marina, editora do Caderno Feminino do Estado de Minas. Praia dos Ossos é fruto do trabalho da norte-americana Flora Thomson-Deveaux, residente no Rio de Janeiro, e da carioca Branca Vianna.


Feminicídios crescem em 12 estados

 
Na primeira atualização de um relatório produzido a pedido do Banco Mundial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destaca que os casos de feminicídio cresceram 22,2%,entre março e abril deste ano, em 12 estados do país, comparativamente ao ano passado. A informação é da Agência Brasil. Intitulado “Violência doméstica durante a pandemia de COVID-19”, o documento tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos estados brasileiros.

Nos meses de março e abril, o número de feminicídios subiu de 117 para 143. Segundo o relatório, o estado em que se observa o agravamento mais crítico é o Acre, onde o aumento foi de 300%. Na região, o total de casos passou de um para quatro ao longo do bimestre. Também tiveram destaque negativo o Maranhão, com variação de 6 para 16 vítimas (166,7%), e o Mato Grosso, que iniciou o bimestre com seis vítimas e o encerrou com 15 (150%). Os números caíram em apenas três estados: Espírito Santo (-50%), Rio de Janeiro (-55,6%) e Minas Gerais (-22,7%).

Nova Era


A reportagem do Estado de Minas tentou falar com a família da vítima esfaqueada em maio de 2016, em Nova Era, mas não conseguiu contato. Já o advogado José Ramos Guedes, do acusado, reiterou o argumento de legítima defesa da honra e sustenta o que dissera: "Ela era a mulher dele e estava fazendo sacanagem com ele. Não tinha necessidade de fazer isso. Mas fez, o que é que vai fazer? Mas ela fez o curativo no hospital e foi embora para casa. É uma história entre marido e mulher".

Na tentativa de assassinato, o autor atacou a ex-companheira a facadas uma semana após o término do relacionamento, sob a justificativa de que desconfiava de um romance entre ela e um outro homem. Ele fugiu depois do ataque, mas foi preso em seguida. "Bateu um trem doido", foi como ele descreveu o momento, relatando que "foi pegando na sua cabeça" as desconfianças em relação à vítima até o dia em que a atacou nas imediações de uma igreja, desferindo golpes com uma faca de serra que feriu a mulher nas costas e na cabeça. 


Condenação


Um homem de 30 anos foi condenado pelo Tribunal do Júri da Comarca de Igarapé pelos crimes de feminicídio, por matar a ex-namorada, homicídio, pelo assassinato também do filho dela, de 2 anos, ocultação de cadáver e fraude processual qualificada, por tentar destruir as provas do crime. O caso ocorreu em janeiro de 2019, em Igarapé, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na decisão, proferida na quarta-feira, o homem, que está preso desde julho de 2019, foi condenado a 33 anos e seis meses de prisão, a serem cumpridos em regime inicialmente fechado.

Agressão


Uma jovem de 21 anos foi espancada em Paraisópolis, no Sul de Minas. O suspeito do crime é o ex-namorado dela, um rapaz de 24. A vítima, Márcia Beatriz Moreira Rosa de Souza, disse ter sido abordada quando voltava para casa com uma amiga, na madrugada de sábado. Ela foi agredida com socos e chutes. Márcia disse que o jovem teria pedido para conversar com ela, e, diante de sua recusa, iniciou as agressões. A jovem foi levada para um hospital da cidade. Ela teve ferimentos em várias partes do corpo e fratura em um dos pulsos. A Polícia Militar registrou a ocorrência, mas o suspeito não foi encontrado. A Polícia Civil informou que abriu inquérito e vai apurar o caso.


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