Quando iniciou a carreira como apresentadora, a gaúcha Maria das Graças Meneghel, a Xuxa, mostrava a imagem de uma criança grande, ao mesmo tempo com forte apelo sexual, exibindo pernas de fora, blusas curtas e botas brancas de cano alto. Agora, aos 49 anos, a artista veio a público revelar ter sofrido abusos sexuais até os 13 anos, da parte de diversos parentes, como o namorado da avó e o melhor amigo do pai. A situação que Xuxa viveu não é uma exceção. Só em Belo Horizonte, entre janeiro e março deste ano, 2.572 crianças e adolescentes tiveram a infância marcada pelo abuso. E o crime está mais perto de casa do que se imagina. Em dois terços dos casos (65,9%) os dramas anônimos acontecem dentro da família, segundo os últimos números do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), ligado à Secretaria Municipal de Assistência Social.
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Mesmo tendo acesso a recursos financeiros e a todo tipo de tratamento, a apresentadora Xuxa precisou de décadas para revelar o episódio de abuso infantil. “Costumo dizer que a criança é uma folha de papel lisa. Depois de amassar o papel, você pode tentar esticar e até passar com ferro, mas ele nunca vai voltar a ficar liso. Sempre vão restar marcas. Da mesma forma, o abuso sexual marca de forma profunda o desenvolvimento do sujeito”, compara Adriana Alberto, psicóloga da equipe executiva do Programa de ações integradas e referenciais de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes no território brasileiro (Pair), em Belo Horizonte.
Ana (nome fictício) sabe bem do que Xuxa estava falando em cadeia nacional. Desde os 12 anos, ela vinha sendo molestada pelo próprio pai. Filha única, ele era o responsável por colocar a filha para dormir à noite, enquanto a mãe demorava para chegar do trabalho. Ele deitava ao lado dela e ficava acariciando a menina, que fazia ginástica olímpica e chamava atenção pelo corpo atlético. Ana era molestada quase diariamente, mas sem que houvesse o rompimento do hímen. O relato foi feito por um amigo e confidente, o advogado Ricardo Vitorino, que é membro da comissão OAB Cidadã.
Ameaças
Ele conta que para coagir a filha, o pai ameaçava matá-la junto com a mãe caso ela não ficasse calada. Pouco antes de completar 15 anos, idade que tem hoje, Ana finalmente teve coragem de relatar os abusos para a mãe, que se separou do marido. Nenhuma das duas teve coragem de denunciar o homem pelo crime, com receio de sofrerem represálias e de que a sociedade passasse a rejeitá-la, caso a história viesse à tona. Atualmente, Ana faz tratamento com psicólogos. Ana, segundo o amigo, é hoje uma adolescente saudável e com beleza acima da média, mas nunca teve namorado nem se envolveu com ninguém. Após a revelação, mãe e filha se mudaram para uma cidade do interior mineiro.
PALAVRA DE ESPECIALISTA: RICARDO VITORINO, ADVOGADO E MEMBRO DA OAB CIDADÃ
“É preciso denunciar o adulto”
“A violência física é detectada mais facilmente por meio de marcas de agressão. Já a violência sexual pode ou não trazer marcas físicas, pode ou não envolver pagamento em dinheiro ou em favores, pode ou não ter laços de amor ou de parentesco entre o agressor e a vítima. Por esses motivos, a denúncia da vítima menor de idade em relação ao adulto é fundamental, porque a perícia forense raramente consegue identificar vestígios de abuso sexual contra uma criança, somente quando há violência. Ainda que se faça uma perícia judicial, ela raramente detecta o abuso sexual, sendo imprescindível a denúncia contra o adulto. Nesses casos, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais admite como prova apenas o depoimento da vítima, não sendo necessária nem a presença de testemunhas. Apenas a palavra da vítima é suficiente para a condenação do agressor.”