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Estado de Minas

Guimarães Rosa - O Homem que viu a alma do sertão


14/12/2008 10:17 - atualizado 08/01/2010 03:56

José Osvaldo dos Santos, o Brasinha: reconhecimento ao mestre estampado na parede da loja
José Osvaldo dos Santos, o Brasinha: reconhecimento ao mestre estampado na parede da loja (foto: Marcelo Sant'anna/EM/D.A Press)

Cordisburgo – Na parede frontal do centro de artesanato na entrada desta cidade de 9 mil habitantes, a 120 quilômetros de Belo Horizonte, está a primeira citação de João Guimarães Rosa: “Comecei a escrever motivado pela saudade do interior de Minas; lembranças de Cordisburgo que me fizeram escrever Sagarana”. A inscrição é só início dos sinais do forte vínculo da cidade com o autor de Grande sertão: veredas.

No Centro, na parede da Loja Brasinha, de propriedade de José Osvaldo dos Santos, mais Guimarães Rosa: “Cordisburgo é o lugar mais formoso devido ao ar e ao céu, e pelo arranjo que Deus caprichou em seus morros e suas vargens; por isso mesmo, lá, de primeiro, se chamou Vista Alegre”. E mais: “... quando escrevo, sempre me sinto transportado para este mundo, Cordisburgo”. Nos muros do cemitério, outra frase famosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”.

Os muros do Colégio Estadual Cláudio Pinheiro de Lima estão ilustrados com motivos ligados ao sertão de Guimarães Rosa: pássaros, burrinhos de carga, buritis... A diretora da escola, Ulissea Goulart Martins, explica que a cidade “praticamente respira” a obra dele. “As professoras trabalham textos de Guimarães Rosa no dia-a-dia. Os estudantes se orgulham”, conta ela, que garante: “Os meninos admiram Guimarães Rosa e, quando a gente admira, é um referencial. Isso faz aumentar o interesse dos estudantes pela literatura”.

 O médico, diplomata e romancista deixou um inestimável legado, motivo de orgulho para os mineiros
O médico, diplomata e romancista deixou um inestimável legado, motivo de orgulho para os mineiros (foto: O cruzeiro/Arquivo EM)
“A população sabe reverenciar João Guimarães Rosa”, afirma o comerciante Brasinha, que procura motivos para mostrar o vínculo do escritor com a cidade natal. “Ele morreu do coração e Cordisburgo quer dizer ‘cidade do coração’.” Mais vínculo: “No discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ele fala 11 vezes a palavra Cordisburgo”, observa Brasinha, um dos maiores entusiastas dessa relação do filho famoso com a terra. “A gente tem que ficar vaidoso, porque ele bota o nome da cidade no mundo inteiro.”

Mas nem sempre foi assim. “Defino Guimarães Rosa em antes e depois dos contadores de história. É muito bonitinho ver os meninos contando histórias”, diz a diretora. Ela se refere ao Grupo de Contadores de História Miguilins, fundado por Calina Guimarães há 13 anos. Muitos estudantes da escola fazem parte do grupo. “A gente fica dois anos fazendo curso. Quando vem dar plantão, já está sabendo da vida e da obra de Guimarães Rosa”, informa Iara Barbosa Oliveira, 15 anos. Os miguilins repetem para os visitantes trechos da obra do escritor e o “plantão” semanal de cada um é no Museu Casa Guimarães Rosa. Quando passam da idade de pertencer aos miguilins, vão contar suas histórias nas caminhadas ‘ecoliterárias’ do Grupo Caminhos do Sertão que, liderado por Brasinha, visita os locais que inspiraram o escritor.

Outras iniciativas, como a Associação dos Amigos do Museu, fazem parte desse culto da cidade ao filho ilustre. Mas, no início, houve até resistência. Segundo a presidente da associação, Solange Agripa Trombini, tinha gente que não aprovava o movimento em direção à memória do escritor. “Até nos chamavam de bando de loucos. Diziam: ‘Esse homem nunca fez nada por Cordisburgo’. Hoje, são adeptos.” Ela dá exemplos: há cerca de 10 anos, os eventos atraíam 20 pessoas; agora, chegam a ter 500 participantes. A Semana Roseana, realizada há 20 anos, já atrai 2 mil pessoas.

Um que sempre considerou importante para Cordisburgo o trabalho do escritor é o motorista de caminhão Artur Henrique Souza Filho, de 55, que, sem ter lido a obra do conterrâneo, é grato: “Tudo que nós falamos errado, ele nos apóia que está certo. Esse homem é bom demais para nós”.

O caçula nesse culto ao conterrâneo é o Grupo da Terceira Idade Estrela do Sertão, criado pela associação há sete anos. No início, o grupo se encontrava uma vez por ano, na Semana Roseana. Agora, faz reunião duas vezes por semana, para bordar. O mote principal é “Guimarães Rosa na ponta da agulha”. Funciona assim: as bordadeiras ouvem ou lêem um texto do escritor e criam com a agulha, a partir da percepção de cada uma.

Pequenos trechos são colados nas paredes da sala das bordadeiras e elas escolhem qual desejam recriar na ponta da agulha. “Quero bordar o número quatro”, ou “Quero bordar o número 17”. O número 17, no caso, é a “Canção de Siruiz”, retirada de Grande sertão: veredas, que diz: “Remanso de rio largo, viola da solidão: quando vou pra dar batalha, convido meu coração”.

“Elas conhecem a obra dele não pelos livros, mas porque fazem parte do que ele conta. É uma ligação de vida”, explica Solange Trombini. Não importa que apareçam cavalo verde, boi azul e galinha cor de rosa nos bordados. No resultado do trabalho, as bordadeiras montam até painéis com frases e motivos do sertão, representando, por exemplo, flores e pássaros que estão na obra.

Se a criação de Guimarães Rosa está impregnada pelo sertão e por Cordisburgo, a cidade também vive claramente impregnada pela obra do seu filho. Parece que tudo por lá tem a marca dele. A lista é grande: Bairro Buritis, onde os nomes das ruas são referência a personagens, Bairro Sagarana, Posto Guimarães Rosa, Fazenda Sagarana, Sítio Tutaméia, Biblioteca Riobaldo e Diadorim, Travessa Guimarães Rosa, Academia Cordisburguense de Letras Guimarães Rosa, Loja Sagarana, Restaurante e Pizzaria Um Conto e Cem, Bar Sertão e Veredas e até a Cachaça Rosa do Sertão. Como diz a gari Maria Lúcia de Souza Gomes, de 54: “Esse homem aqui para nós é só a fama”.

A fama ficou. De propósito ou não, está lá no Grande sertão, na fala de Riobaldo: “Seja a fama de glória... Todo o mundo vai falar nisso, por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair divulgado em jornal de cidade”.


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