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Estado de Minas Memória

Mário Seguso: talento, ousadia e brasilidade

O mundo perdeu o grande artista, que deixou seu nome gravado para sempre na arte em vidro


21/11/2021 04:00

Mario Seguso
Adriano, que assumiu a fábrica, e o pai, Mario Seguso, da Cristais Ca' Doro (foto: Andrè Leonel/Divulgação)


No último domingo, o Brasil perdeu um de seus cidadãos honorários mais ilustres, o italiano Mário Seguso, sócio-fundador das Cristais Ca' Doro, em Poços de Caldas. Seguso foi o responsável por mostrar ao Brasil que o vidro pode se transformar em arte, inovou este trabalho, tradição em sua família, e conseguiu modernizar um dos trabalhos mais tradicionais, o murano, sem que ele perdesse o requinte, a delicadeza, o valor e sua preciosidade. O artista foi o introdutor da arte do vidro murano em nosso país, onde suas peças ganharam novos contornos. A grande inspiração é a própria natureza brasileira, os cipós entrelaçados, a piracema, os peixes, os potes indígenas interpretados à sua maneira, árvores amazônicas etc. É criação dele o troféu do prêmio Telê Santana, realizado pela TV Alterosa/SBT, que premia, anualmente, os melhores do futebol mineiro.
 
Em 1954, Mário se transferiu para o Brasil, a convite da paulistana Cristais Prado S.A., para gravar uma série de taças e vasos que foram apresentados na Grande Exposição Comemorativa dos 400 Anos da Fundação de São Paulo, realizada no Parque Ibirapuera. Apaixonou-se pelo país e, pouco tempo depois, escolheu Minas Gerais para fixar residência, mais precisamente a cidade de Poços de Caldas, onde, em 1965, fundou, com dois sócios, a fábrica Cristais Ca' Doro, para a qual desenhou a maior parte das peças produzidas em cristal de murano seguindo um estilo sóbrio e moderno.
 
Troféu Telê Santana
Troféu Telê Santana e a técnica de gravação, da qual Seguso era mestre (foto: Andrè Leonel/Divulgação)
 
 
Ele era um craque. Nascido em Murano (Veneza-Itália), em 1929, era descende de uma das mais antigas e famosas famílias ligadas ao vidro, existentes em Murano, desde antes do ano de 1300. Depois que terminou o ensino fundamental em sua cidade natal, em 1941, foi estudar no Regio Istituto d’Arte, de Veneza, se dedicando à gravação sobre cristal, sob a guia artística dos professores Guido Balsamo Stella e Carlo Scarpa, e dos técnicos Eliseo Piano e Franz Pelzel. Paralelamente, estudou desenho e formas e glittica, a gravação de armas, brasões e figuras sobre pedras duras e semipreciosas.
 
Mário era grande estudioso, inquieto no querer saber, e mesmo estudando no Instituto de Arte, fez dois anos de estágio no ateliê S.A.L.I.R., de Murano, onde começou a aprimorar o que aprendeu nos cursos, e foi ali que executou seus primeiros trabalhos de forma profissional.
 
Icônico beijo
Inspiração brasileira, a Árvore, o icônico beijo (foto: Andrè Leonel/Divulgação)
 
 
Em 1949, abriu seu ateliê em Murano, e já executa suas gravações para as mais conceituadas empresas especializadas no comércio do cristal artístico, como Salviati, Gino Cenedese, Fischer, fornecendo peças encomendadas especialmente para exportação, como também taças e troféus para importantes eventos e competições. Foi assim até 1954. Participou de várias exposições,
destacando-se entre elas uma realizada na Galleria Bevilacqua La Masa, em Veneza. Em 1953, executa, com desenho de Oscar Kokoschka, uma gravação para a Mostra Internazionale promovida pelo Centro do Vidro Moderno de Murano, que tinha sido fundado naquela época.
 
Ficou na Cristais Prado S.A. até 1956, e vários de seus trabalhos foram enviados para a Exposição Mundial de Bruxelas, na Bélgica, e outros foram destinados a diversos compradores dos Estados Unidos e do Canadá. É desse período a grande taça alegórica gravada para presentear o então presidente  Juscelino Kubitschek de Oliveira.
 
Em 1956, decide sair da Cristais Prado para montar seu ateliê,  trabalhar por conta própria e dar assistência a uma cristaleria de São Paulo, como designer. Passa a se dedicar a pesquisas sobre novas técnicas de gravação, para alcançar uma maior aproximação à realidade da cultura brasileira, levando-a a uma interpretação mais moderna de sua arte primitiva, transmitida por rápidos e decididos entalhes. Foi aí que desenvolveu o estilo que foi o ponto de partida de toda a produção artística.
 
Para poder ter cristais em quantidade e qualidade necessárias para gravar, funda, em 1965, com os sócios Vittorio Ferro e Piero Toso – também de tradicionais famílias vidreiras de Murano –, a  Cristaleria Artística Ca' Doro, em Poços de Caldas. A maior parte das peças nasce de desenhos de Mario Seguso, seguindo um estilo sóbrio e moderno. Poucos anos após a fundação da fábrica, Vittorio se desliga para voltar à Itália e 10 anos mais tarde Piero se aposenta.
 
Dentro da fábrica, Mario cria a Oficina de Fogo e Arte, para dar continuidade às pesquisas de novas formas e efeitos. Com domínio absoluto da refinada técnica de desenho e fabricação, aliado a todos esses anos de absorção da cultura, flora, fauna, luzes e cultura brasileiras, Seguso revela seu estilo inconfundível, sempre criando novas peças e esculturas. Seu trabalho artístico é amplamente reconhecido no Brasil e no exterior.

50 ANOS NO BRASIL Em maio de 2004, para comemorar os 50 anos de Mario Seguso no Brasil, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez uma exposição de seus trabalhos no espaço expositivo da Reitoria. O artista foi o introdutor da arte do vidro murano em nosso país, onde suas peças ganharam novos contornos. Além das peças do artista, a exposição incluiu mostras de fotografia, que registravam o processo produtivo e alguns objetos de Mario Seguso.
 
Escolha familiar 
 
Mário Seguso teve dois filhos, Adriano e Michel, que nasceram no meio da fabricação de vidro, mas nunca foram pressionados pelo pai para trabalhar na empresa, ao contrário, sempre foram livres para seguir seus sonhos, e assim foi. Adriano entrou para a faculdade com 16 anos, fez veterinária na UFMG; Michel, engenharia.
 
Em 1982, quando retornou para Poços de Caldas, foi a época em que o pai mais precisava de ajuda e Adriano tentou conciliar o trabalho de veterinário com a ajuda na Ca'Doro, mas ficou impossível fazer as duas coisas. “O trabalho na fábrica é muito exigente e comprometedor. Abdiquei da veterinária por minha vontade e fiquei na fábrica. O vidro está há muitos séculos no sangue da família, e à medida que começei a ajudar meu pai, o gosto e a paixão foram tomando conta de mim”, diz.
 
“Achamos por bem cuidar de tudo. Assumimos as partes burocráticas, para deixar nosso pai livre na área artística, de criação, e foi a época em que ele mais produziu, foi o auge da carreira dele, nos anos 1990 e 2000. Ele sempre estava à frente do tempo. Sempre o admirei porque ele mostrou para nós o que é ser um artista sério. Todo artista tem semanas em que está mais inspirado e outras menos, mas ele tinha disciplina, não fazia tipo nem gênero. Meu pai foi um cidadão exemplar, chefe exemplar e artista exemplar. Falar é fácil, ele nos ensinou dando exemplo de garra e disciplina.
 
Aprendemos muito com nossos pais, porque nossa mãe, Rita, é fundamental nessa história. Ao lado de um grande homem, tem sempre uma grande mulher”, conta o empresário, relembrando o quanto o pai sempre confiou neles, a ponto de, na virada do século, dividir todas as coisas. “Meu irmão optou pelo comércio e ficou com as lojas; eu fiquei com a fábrica. Tenho dois filhos, Rodrigo e Guilherme, que cresceram com o avô desenhando e criando figuras de cerâmicas para eles. Desenvolveram o lado sensível e também a lógica da engenharia. Ambos são engenheiros de produção, e por opção e vocação estão trabalhando comigo. Eles desenham peças e eu também acabei de criar uma linha própria.”
 
Adriano destaca o artista singular que foi seu pai, e o quanto ele representou, honrosamente, Murano, sua terra natal. Reconhece que foi o apoio que ele e seu irmão deram ao pai que proporcionou condições para a dedicação exclusiva para desenvolver técnicas próprias, e se orgulha de ver que foi seu pai o responsável por levar o vidro ao patamar de arte no Brasil. “O vidro era visto como embalagem e garrafão aqui no país. Foi meu pai quem fez ele ser visto como arte no país.”
Mário Seguso morreu de complicações naturais da idade, de um homem guerreiro que teve alguns problemas de saúde ao longo da vida e conviveu muito bem com todos eles. Já estava afastado do trabalho há 10 anos, e deixou um legado que vai perdurar para sempre.
 
O assistente André Leonel, braço direito de Mario, disse: “Sentimos todos, profundamente, com a partida do Sr. Mario. Diante desta falta irreparável, seguimos ancorados em tantas memórias e em uma tão grandiosa história que nos conforta e nos traz a certeza da verdadeira eternidade. Perder um amigo é fechar um livro que nos encanta com infinitas páginas e, de repente, sermos obrigados a interromper a leitura com uma dolorosa sensação de uma história sem fim.” 
 
Mario Seguso e eu
 
Paulo Rossi

Conheci Mário Seguso no princípio da década dos anos 1990, em Poços de Caldas. Foi encantamento à primeira vista pela obra magistral e pelo ser humano ímpar que ele era. Integro, sério, enérgico, criativo ao extremo e uma máquina de produzir.
 
Desenhava, modelava o barro esculpindo figuras bíblicas, entre outros temas, e principalmente gravava o cristal que ele criava e fundia na sua fabrica Ca’Doro.
 
Falante e cheio de histórias para contar, ele me arrebatou e daí para planejar uma exposição retrospectiva da carreira dele foi um pulo.
 
Fiquei maravilhado pelo acervo que mantinha, com exemplares de todas as épocas de sua produção. Vidros com as mais diferentes formas, cores esplêndidas, gravações milimétricas e precisas, com temas, principalmente do folclore brasileiro.
 
Ele foi um pesquisador da fauna, da flora e do folclore brasileiros; sua obra está recheada de temas como esses. Desenvolveu peças magníficas influenciado pelo que viu e vivenciou no Amazonas e em outros estados brasileiros. Ele amava o Brasil.
 
A Grande Galeria do Palácio das Artes quase foi pequena para a exposição retrospectiva de sua obra e vida. Patrocinada pela Secretaria de Estado da Cultura, a exposição, que também era didática, tinha um forno a gás, onde o público teve acesso aos processos da fabricação do vidro e suas inúmeras utilizações. A exposição fez uma trajetória considerável, passando pelo MASP, pela embaixada italiana em Brasília e encerrando o ciclo em Poços de Caldas.
 
Essa convivência profissional, nos aproximou e nos tornamos amigos. Nos víamos a miúde, dado a distância entre nossas cidades, mas o visitei algumas vezes e ele a mim. Em todas as visitas, experimentei o gosto pela estética refinada, o cuidado com a forma impecável e a excepcionalidade do material empregado na fabricação de cada peça; tudo gestado sob o olhar de um artista genuíno.
A excepcionalidade do artista Mário Seguso, este artista vidreiro, nascido na ilha de Murano, é reconhecida internacionalmente e fez escola no Brasil. Vários artistas de renome passaram pela sua fábrica, em Poços de Caldas, para aprendizado, pesquisa e produção de peças em vidro e cristal.
 
Eu me lembro com saudades de uma aproximação entre ele e Máximo Soalheiro, o mestre das cerâmicas, onde trocaram “figurinhas” sobre a alquimia das cores levadas a grandes temperaturas.
Algumas vezes, Mário e eu tivemos vários diálogos sobre a criação do Museu do Vidro, em Poços de Caldas, no qual ele demonstrava grande interesse. Este momento, apesar de marcado pela perda deste artista inigualável, talvez seja propício para que as autoridades se manifestem e demonstrem interesse em perpetuar o legado inestimável que Mario nos deixou.

15 de Novembro de 2021 


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