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Estado de Minas EXPOSIÇÃO - MAN RAY

Legado surreal

Experiências com luz e sombra, corpos e movimentos, contar uma história em vez de apenas vender um produto. Como o fotógrafo surrealista Man Ray impactou os editoriais de moda


postado em 09/02/2020 04:00 / atualizado em 07/02/2020 14:29

1932 - A obra As lágrimas foi utilizada na propaganda de um rímel(foto: Man Ray/Divulgação)
1932 - A obra As lágrimas foi utilizada na propaganda de um rímel (foto: Man Ray/Divulgação)

Fotografia não seria a primeira opção de Man Ray. O sonho do norte-americano era viver de pintura, mas ele acabou famoso através das lentes, muito porque extrapolou o viés comercial. Ligado ao dadaísmo e ao surrealismo, ele ajudou a transformar fotografia em arte e levou todo o seu trabalho de experimentação inclusive para a moda. Imagens representativas da sua carreira, algumas publicadas em editoriais de revistas de moda, são parte da exposição Man Ray em Paris, em exibição no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte até o dia 17.
 
A curadora da exposição é Emmanuelle de l’Ecotais. A historiadora francesa se especializou na obra de Man Ray quando trabalhava no Centre Pompidou, em Paris. Na época, o museu estava prestes a receber uma doação do ateliê de Man Ray com 15 mil negativos e 5,5 mil contatos originais até então intocáveis. “Fiquei encarregada de fazer o inventário das obras e estudei esse acervo por cinco anos. Foi assim que descobri a maneira como o artista trabalhou, que era bem diferente do que se imaginava.”
 
1925 - Nos registros do Pavilhão da Elegância, os manequins de cera aparecem de pernas cruzadas e em outras posições bem realistas(foto: Man Ray/Divulgação)
1925 - Nos registros do Pavilhão da Elegância, os manequins de cera aparecem de pernas cruzadas e em outras posições bem realistas (foto: Man Ray/Divulgação)
Man Ray nasceu em 1890, na Filadélfia, como Emanuel Radnitzky, e ainda na infância se mudou para Nova York, onde se envolveu com o dadaísmo. Mais tarde, foi para Paris a convite de Marcel Duchamp e lá conheceu o surrealismo. A vontade dele era trabalhar com pintura, mas não conseguiu fazer sucesso e acabou aceitando fotografar obras de arte e os próprios artistas, pois precisava se sustentar. Daí ele partiu para os retratos, que os aproximam definitivamente da moda.
“A moda foi para Man Ray uma maneira de juntar a arte ao trabalho por encomenda e também de ficar conhecido em todo o mundo”, aponta Emmanuelle.
 
1937 - Modelo sentada em um carrinho de mão usando vestido do costureiro francês Lucien Lelong(foto: Man Ray/Divulgação)
1937 - Modelo sentada em um carrinho de mão usando vestido do costureiro francês Lucien Lelong (foto: Man Ray/Divulgação)
Naquela época, modelos profissionais quase não existiam. Eram as elegantes mulheres parisienses que posavam com as roupas para as lentes do fotógrafo. “Man Ray convidava mulheres que já eram ícones da emancipação do século 20, entre elas a italiana marquesa Luisa Casati, que se vestia de maneira completamente diferente, usava até smoking. Então, ela já subvertia o papel da mulher”, comenta a artista e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Angélica Adverse.
Kiki de Montparnasse (artista), Nancy Cunard (escritora) e Lee Miller (fotógrafa e assistente de Man Ray) são outros exemplos de modelos. Segundo Angélica, as mulheres fotografadas eram consideradas “marginais”, porque questionavam papéis sociais e a forma como a sociedade se organizava. Coco Chanel e Elsa Schiaparelli, uma francesa e uma italiana, rivais no mundo da moda, também são registradas em poses variadas pelo norte-americano.
 
1935 - Nusch ao espelho(foto: Man Ray/Divulgação)
1935 - Nusch ao espelho (foto: Man Ray/Divulgação)
O artista trabalhou para três importantes revistas de moda norte-americanas. Retratos de artistas começam a ser publicados na Vanity Fair em 1922. Anos depois, ele é contratado pela Vogue. Em seu primeiro trabalho de projeção internacional, Man Ray registra a exposição Pavilhão da elegância, em Paris, com manequins de madeira e cera. Nas fotos, as bonecas, vestidas com roupa de festa, estão em posições tão reais que é preciso chegar bem perto para perceber que não são mulheres de verdade.
 
Angélica lembra que as revistas de moda eram uma espécie de guia de conduta para as mulheres. “A Harper's Bazaar era um tanto quanto conservadora no início, mas vai se adequando ao novo comportamento do anos 1920 e os fotógrafos que vêm da arte contribuem muito para isso”, diz a pesquisadora. Man Ray chega à Harper's Bazaar em 1935, num momento em que a revista buscava um fotógrafo mais moderno. Na época, a editora era nada menos que Carmel Snow, grande crítica de moda do período, que mais tarde batizaria de new look o inovador conjunto de Christian Dior.
 
1925 - Nos registros do Pavilhão da Elegância, os manequins de cera aparecem de pernas cruzadas e em outras posições bem realistas(foto: Man Ray/Divulgação)
1925 - Nos registros do Pavilhão da Elegância, os manequins de cera aparecem de pernas cruzadas e em outras posições bem realistas (foto: Man Ray/Divulgação)

SIMETRIA A curadora da exposição elege duas fotos como as mais representativas de Man Ray na moda. Uma delas é a obra  Preta e branca, de 1926, encomendada pela revista Vogue. Nela, Kiki de Montparnasse aparece com rosto deitado sobre uma mesa, ao lado de uma máscara negra em posição vertical. Segundo Emmanuelle, essa é uma composição estável, equilibrada e simétrica.
 
“No mesmo patamar está a obra As lágrimas, utilizada por Arlette Bernard, diretora de dois institutos de beleza em Paris, para a publicidade de um rímel, o Cosmécil”, acrescenta Emmanuelle. De 1932, a foto exibe em close o rosto de uma mulher com pedrinhas de vidro que imitam lágrimas. Muito esperta, Bernard se aproveita dessa imagem para mostrar que o seu produto “levanta maravilhosamente os cílios, não espeta nem escorre”. Assim, as mulheres poderiam “chorar no cinema, chorar no teatro, rir até as lágrimas, sem receio de desfazer seus belos olhos”.
 
1934 - Natalie Paley com vestido de lantejoulas de Lucien Lelong(foto: Man Ray/Divulgação)
1934 - Natalie Paley com vestido de lantejoulas de Lucien Lelong (foto: Man Ray/Divulgação)
Quase uma performance 
 
Man Ray levou muito do surrealismo para as fotografias de moda. A frase do escritor André Breton mostra como era o pensamento dos artistas surrealistas: “A beleza será convulsiva, ou não será”. “São imagens mais oníricas, estranhas, que criticam a racionalidade burguesa. Ou seja, a moda vai ser tudo aquilo que é bizzaro, que não é usual”, observa a pesquisadora da UFMG Angélica Adverse.
Seguindo esse raciocínio, o norte-americano expande suas experimentações para os editoriais de moda, quase como uma performance. Antes, Man Ray havia inventado duas técnicas que aproximavam a fotografia da arte: a solarização (uma forma de mostrar a “aura” da pessoa) e a rayografia (capaz de mudar a intensidade e a direção da luz). O artista também ficou conhecido por transformar erros da fotografia, como borrados e desfocados, em recursos técnicos para enriquecer a imagem.
 
De acordo com a pesquisadora, outra característica importante da obra de Man Ray são os cortes. Muitas vezes, ele dá zoom no rosto da modelo ou foca em uma parte do corpo que fica até difícil de identificar. “Hoje, isso é extremamente comum, mas não era no século 20. Man Ray usa o enquadramento para criar um certo estranhamento na cena”, pontua.
 
Man Ray se distancia de fotos estáticas para mostrar o movimento do corpo feminino. “Se movimento é poder, ele começa a expressar a mulher com gestos livres, pernas abertas, cabeça altiva, fumando um cigarro. Mais importante que o objeto a ser vendido é narrar uma história”, pontua Angélica.
Pode não ser fácil de enxergar, mas a obra do norte-americano transformou a fotografia de moda e ainda hoje influencia os editoriais. “Man Ray foi o fotógrafo mais avant garde da sua época e ainda hoje suas obras parecem bem modernas. Sua estética e a beleza de suas imagens são atemporais”, avalia a curadora da exposição Man Ray em Paris, Emmanuelle de l’Ecotais, que encerra em BH sua turnê brasileira (passou antes por São Paulo).
 
Angélica enxerga que um fotógrafo, em particular, mantém viva a obra de Man Ray na contemporaneidade: o italiano Paolo Roversi. “Paolo traz este legado de Man Ray, não no sentido da cópia, mas da experiência com luz e sombra, corpos e movimentos.”
 
O italiano já assinou vários editoriais para a Vogue Itália, um deles com a atriz Tilda Swinton revivendo a marquesa Luisa Casati. São dele também as fotos do Calendário Pirelli 2020, Procurando Julieta, inspirado no drama de Shakespeare Romeu e Julieta. Disposto a encontrar a Julieta que existe em cada mulher, Roversi clicou famosas, como a inglesa Claire Foy, a norte-americana Kristen Stewart, a chinesa Chris Lee, e a espanhola Rosalía.
 
Na opinião de Angélica, quem hoje está mais próximo do surrealismo na moda é o estilista francês Jean Paul Gaultier. Para ela, não tem nada mais surrealista do que o icônico sutiã de Madonna, sem falar homens de corselet, estampas de carne e roupas com pele, que lembram o trabalho da Meret Oppenheim. A artista alemã ligada ao surrealismo, que também foi fotografada por Man Ray, ficou conhecida pela obra Café da manhã em pele, formada por xícara, pires e colher cobertos com pelo de gazela.
 
Por isso, a pesquisadora assistiu, com melancolia, ao último desfile do estilista. “Acho que se encerrou um século de surrealismo e agora estamos adentrando no século da política”, enxerga Angélica. Jean Paul Gaultier avisou que vai se dedicar a novos projetos, mas sua marca, vendida para um grupo espanhol há quase 10 anos, segue o seu caminho. 


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