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Estado de Minas ENTREVISTA

Ruth Manus coloca em xeque papéis e tarefas impostas às mulheres em seu mais novo livro

Paulistana encara uma conversa totalmente sincera em 'Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas'


postado em 05/01/2020 04:00 / atualizado em 05/01/2020 09:47

(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)

Nunca foi a intenção ganhar prêmios ou ser referência como escritora. Se conseguir provocar reflexões, Ruth Manus, de 31 anos, está mais que satisfeita. Com uma linguagem bem informal, como se estivesse conversando com os leitores, a advogada paulistana, que hoje mora em Portugal, fala abertamente sobre os mais diversos assuntos. O seu mais novo lançamento tem o curioso título Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas. Desta vez, a escritora discute sobre as pressões que recaem sobre as mulheres, envolvendo carreira, família, beleza e outros tantos aspectos da vida. Que o texto sirva para encorajar as leitoras a mudar esta realidade. “Falo que estou torcendo para o livro parecer um fóssil. Que as mulheres abram daqui a 100 anos e fiquem surpresas de saber que existiam estes problemas”, disse, de Lisboa.
 
Como começa a sua história?
Nasci em São Paulo, tenho 31 anos, sou advogada e professora de direto do trabalho e internacional. Morei em São Paulo até os 26. Foi quando conheci o meu marido, que é de Lisboa, e acabei vindo para cá. Este foi o ano que revolucionou a minha vida. A minha irmã trabalhava no RH de um jornal e, por um acaso, mostrou o que eu escrevia para o editor. Aí ele me perguntou se queria ter um blog para falar do que quisesse. Não escrevia sério, nem pretendia, mas o segundo texto viralizou.

Você sempre escreveu sobre e para mulheres?
Sempre escrevi de tudo. O blog tinha temas como relacionamento, comida, política, trabalho etc. O texto que viralizou foi sobre mulher, a geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que o homem não quer. Como trabalho com direito, sempre estou falando sobre direitos, minorias, discriminação. O meu primeiro livro foi Pega lá uma chave de fenda – e outras divagações sobre o amor, com crônicas sobre o amor, não clichês. Amor por lembranças, por comida. Depois lancei Um dia ainda vamos rir de tudo isso e outro de crônicas em Portugal, Modéstia à parte – coisas que o mundo inteiro deveria aprender com Portugal, que também tem um pouco de tudo. Este ano lancei um livro jurídico com o meu pai, Coisas que ninguém conta a um estudante de direito.

Você se imaginava como escritora?
Não, não mesmo. Fiz faculdade de direto e no início achava que ia ser juíza como o meu pai. Quando me formei, percebi que não bem isso. Comecei a dar aulas e continuei estudando. Sempre fui a doida dos estudos. Brinco que entrei na escola com dois anos e não saí mais. Estou aqui acabando o doutorado e já pensando em um pós-doutorado. Mas continuo advogando, afinal, tenho boletos.

Em qual momento você chegou à conclusão de que as mulheres estão exaustas?
Tenho uma amiga portuguesa que é uma super executiva. Um dia, ela me contou que tinha uma cor na agenda para cada integrante da família. A filha era laranja, o filho verde, o marido amarelo, coisas da família azul e ela roxo. Lembro do dia em que ela chegou para mim e falou: a minha cor não aparece na minha agenda. Era como se ela na existisse. Começamos a conversar sobre isso e falar que os compromissos dos homens são sempre muito inadiáveis. Parece que as nossas reuniões são mais canceláveis do que as dos homens. Com base nesta conversa, escrevi há dois anos o texto Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas. Falava o quanto que sacrificamos da nossa rotina e, quando cansamos, falam que somos chatas e mal-humoradas. O texto viralizou, fui convidada para fazer uma palestra e escolhemos este título. Fiz três vezes a palestra e numa delas estava a editora da Sextante, que falou que o tema tinha que virar livro.

Por que os seus textos viralizam?
Primeira coisa é porque estou desarmada. Nunca pretendi ser uma grande escritora, Prêmio Camões ou Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Admiro para caramba, mas acho que não tenho talento pare este tipo de coisa. Então, quando escrevo, estou desarmada. Não tenho a intenção, não vou escolher a palavra mais bonita, não vou escolher a estrutura mais complexa. São reflexões, desabafos, é como se estivesse mandando mensagens para amigos. Esta proximidade faz com que as pessoas se identifiquem. É uma coisa muito despretensiosa. Não estudei letras, não sou referência de escrita.

No caso deste livro, imagino que não tenha uma mulher que não se identifique com o tema.
Muitas vezes, me perguntam: você não tem medo de se expor? Primeiro que só sei ser assim. Segundo que acho que é exatamente aí que as pessoas sentem a coisa da identidade, é uma coisa muito real. Nunca escrevi sobre cachorro porque nunca tive um cachorro. Dá certo quando você fala de uma coisa que vive, que pensa, que sente.

Por que nós mulheres sentimos tanta culpa?
É tudo fruto de uma construção social. Tivemos, historicamente, lugares muito determinados, de submissão, obediência, primeiro o pai, depois o marido. Esta posição tem sido rompida aos poucos, mas a mentalidade não mudou. No livro, tem a fala da professora italiana Giulia Manera: “a mulher nunca foi emancipada. Ela foi requisitada pelo capital”. Ou seja, começou a ter que sair para trabalhar, ganhar o seu dinheiro, mas o consciente coletivo não mudou. A mulher continua a fazer as tarefas domésticas, elas não foram divididas igualmente. Então, ou vai cair no colo da mulher no fim do dia ou ela vai delegar isso para outra mulher, que é a empregada doméstica. Aí continua sendo tarefa nossa. Quando a mulher não faz o “suficiente”, o que a sociedade espera, ela fica com o sentimento de culpa, de frustração.
 
Como quebrar isto?
Primeiro mudar o verbo. Marido não ajuda, ele faz a parte dele. Além disso, acho que devemos conversar sobre este assunto. Quanto mais falarmos, colocarmos na mesa de bar, com amigos, pais, mais rápido começamos a quebrar este ciclo. Os homens precisam ouvir isso para entender.

Você conseguiu se colocar no início da fila de prioridades da sua vida?
Tive alguns marcos na minha vida. Quando tinha 23 anos, fiquei super doente por sobrecarga de trabalho. Para você ter uma ideia, acordava 5h da manhã, malhava, depois ia fazer auditora de contratos até as 16h. Três dias por semana dava aulas até as 23h, nos outros dois dias fazia pós até as 23h. Fim de semana era para trabalho e estudo. Dormia 4h por noite, até que o corpo reclamou. Perdi 6kg em um mês e fiquei em tratamento por dois anos. Ali tive um aviso claro de trabalho. Quando entrou o fator família (tenho uma enteada de nove anos), comecei a repetir o modelo da minha mãe, que acha que é mãe de todo nundo, que tem que fazer tudo para todo mundo. A minha mãe não tem fim. Trabalhava muito e achava que tinha que fazer tudo. Meu marido é pai solteiro, ele faz tudo, cozinha, arruma, dá banho, leva para a escola. Entrava muito em conflito com ele porque achava que tinha que fazer mais que ele. Tendo a minha mãe como modelo, achava aquilo bizarro. Foi muito tempo até entender que podemos ter outros modelos. Tem dia em que ele faz tudo. Se não estiver trabalhando, vou assistir série e está tudo bem. Tem gente que nunca para para pensar nisso, e colocar limite, isso não faço. Me obriguei a ir à academia duas vezes por semana e nada vai mudar isso.

Como você exerce o seu feminismo?
Acho que quem não se diz feminista muito provavelmente não conheceu o termo o suficiente para saber o que é. Se estamos falando de diretos e deveres iguais, acho que todas as pessoas minimamente sensatas se adequam a este conceito. Isso permeia todas as nossas atitudes, desde sororidade, de olhar as outras mulheres e querer ajudar em vez de julgar. Muito legal olhar uma mulher na rua e, antes de qualquer coisa, pensar que ela é mulher igual a mim. Uma vez, no aeroporto, fiquei super incomodada vendo uma mulher com bebê, mala, casaco, podia ser eu. Na hora olhei para ela e falei: posso levar sua mala? Isso muda a forma de olhar, muda a forma de agir. Você deixa de ser conivente com piada que não tem graça, compra briga. Eu compro briga toda hora em conversa de amigo, mesmo com as pessoas mais próximas. São as pessoas chatas que mudam o mundo. Não dá mais para ficarmos caladas.

Você já se sentiu diminuída por ser mulher?
Muitas vezes. Gosto da frase de uma professora: mulher que nunca se sentiu discriminada é porque está distraída. Quando você está alerta e percebe, numa reunião só com homens, que não tem espaço para falar, que o que diz é sempre menos importante, identifica que é uma atitude machista, e não um comportamento eventual. É muito importante saber identificar para combater. Lembro de quando era estagiária de um juiz no Fórum de Jabaquara, em São Paulo. Atendia todos os advogados na porta. Já estava lá há um ano quando chegou um estagiário novo. Eu era uma menina de vestido e sapatilha e ele um moleque de terno. Comecei a reparar que todos os advogados, homens e mulheres, se dirigiam ao Caio, era a figura que inspirava mais segurança; Lembro de ficar transtornada, indo para o metrô chorando, mas pensava: isso é porque sou muito nova, vai passar. Dez anos depois, estava com o meu sócio em uma reunião em um sindicato. Quando estávamos saindo, o presidente do sindicato começou a falar com o meu sócio e pediu o contato dele, mas ele estava sem cartão. Aí ele pôs a mão no meu ombro e disse: meu anjo, depois me passa os contatos do doutor? Na hora, me veio o episódio de quando era estagiária. Era sócia do escritório e tudo continuava igual, então entendi que tem só a ver com a idade, tem a ver com o gênero. O homem sempre vai ter prioridade, ele que transmite mais confiança.

O que você já tenta ensinar para a sua enteada?
Primeira coisa é não incentivar a competição e a rivalidade entre mulheres. Enquanto os moleques estão jogando bola e dando risada, as meninas estão falando do tênis da fulana, do cabelo da beltrana. Temos que fazer o caminho oposto, meninas unidas e amigas são mais fortes. Temos que desconstruir a rivalidade feminina e também tentar derrubar o estereótipo de gênero. A minha enteada adora jogar bola e tentamos incentivá-la pra caramba, levamos para estádio e tudo, é o que ela gosta. Ao mesmo tempo, ela adora batom e esmalte. Muitas famílias só vão incentivar este lado.

O que nós mulheres podemos e devemos fazer para conquistar mais espaço e diretos?
Fortalecer muito uma às outras. Enquanto estou na reunião do sindicato, e sou a única mulher, tenho a sensação de ser visita, de ter que pedir licença para estar ali. Se naquela reunião tem metade homem e metade mulher, você se sente mais fortalecida, e isso vale para toda minoria.

Você hoje se sente mais leve ou ainda carrega alguns “pesos” nos ombros?
Tenho muitos. Outro dia resolvi ficar até de noite na biblioteca por causa do doutorado, mas já comecei a sentir culpa: Felipe e Francisca vão jantar sem mim? Acho que estas questões físicas e estéticas inundam a gente todo dia, culpa de comer aquilo, culpa de não ter lavado o cabelo, culpa de não parecer a Bruna Marquezine, não tem fim, é um processo constante. Faço o que dá, estou fazendo o meu melhor e pronto. São frases que precisamos repetir que nem mantra, porque o mundo diz o contrário.

No livro, você fala que só vai ficar feliz se a leitora fechar o livro incomodada. De que forma você espera impactar a vida das mulheres?
Reflexões pertencem a todo mundo. Você pode não ter filhos, mas sua irmã tem. Você pode não ser casada, mas sabe o que é ser cobrada por isso. É uma questão de servir a carapuça. Não podemos mais ficar inertes. Já estamos muito calejadas, mas é importante voltar a sentir. Lembro, no lançamento do livro no Rio, de uma mulher que se aproximou, enquanto estava escrevendo a dedicatória, e perguntou: quando vem o bebê? Respondi que não era prioridade agora, mas deu vontade de dizer: estamos aqui para falar sobre livros, podemos falar sobre outros frutos meus que não crianças. É como se as pessoas tivessem responsabilidade até pelos úteros que não são delas. Temos que ser críticas com o nosso comportamento. Gravidez não é assunto de boteco, é um assunto íntimo, que pode ser difícil para aquela pessoa. Então, vamos falar de assuntos menos invasivos.

Fale sobre uma mulher que te inspira muito.
São tantas... Não gosto de pensar em uma única mulher que me inspira, a inspiração vem muito do cotidiano, isso que é mais legal. Me inspiro na história de vida da minha empregada, da minha avó, das minhas amigas que têm filhos pequenas, que são executivas e fazem e acontecem para mudar o mundo. Todas as mulheres me inspiram, e por vários motivos, uma porque é super mãe, outra muito independente, outra que batalhou na vida sem grana. Toda mulher é inspiradora. A história da Michelle Obama é o máximo, mas não precisamos da história dela, tenho a Severina trabalhando na minha casa, tenho a minha avó. Fui dar aula em Tondela, aqui em Portugal, num clube sênior, só com senhoras com mais de 75 anos. Era para falar sobre sororidade, como podemos ser mais próximas. Fui com toda a arrogância da juventude, achando que ia explicar coisas super relevantes. Quando cheguei lá e comecei a ouvir a história de cada uma delas, uma que teve a filha assassinada, uma que apanhava do marido e teve que fugir, por um instante pensei: o que vim falar mesmo? Não existem senhorinhas, existem mulheres. Em cada senhorinha existe uma história de luta, de batalha, de superação.

Como você quer ser lembrada?
Quero ser lembrada como uma mulher que provocou estas conversas. Não tenho uma história que seja especialmente inspiradora. Sou privilegiada, cresci no melhor dos mundos em termos de família, dinheiro, estudo. Quero ser ponto de partida para reflexões. 


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