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Brasileira da gema, why not?

Jovem norte-americana escolhe Machado de Assis como tema de seu doutorado


postado em 05/05/2019 05:08

(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Nascida nos Estados Unidos, filha de professores universitários, Flora Thomson-DeVeaux não foi uma criança qualquer. Apesar de saber lidar muito bem com computadores e tecnologia, era nos livros que encontrava seu lazer. Quando os pré-adolescentes gritavam histéricos por Britney Spears e Back Street Boys, ela queria ouvir a banda dos anos 40 Spike Jones, que fazia paródias de músicas clássicas. Aprendeu espanhol no High School, e português na Princeton University. Tornou-se tradutora, pesquisadora compulsiva, se apaixonou pelas músicas brasileiras do início do século 20, e, em função de mais um trabalho de tradução, decidiu fazer doutorado na Brown University sobre Machado de Assis, o que gerou mais uma rica tradução do livro Memórias póstumas de Brás Cubas, que será lançado nos Estados Unidos no meio do ano que vem. Flora mora no Brasil há dois anos, realizando seu maior sonho, tem uma extensa pauta de trabalhos para executar. A jovem ruiva, dona de uma linda voz, fala um português sem nenhum sotaque e é torcedora apaixonada do Botafogo.

Como foi sua infância?
Meus pais são professores da Universidade de Virgínia. Minha mãe, Vivian, é professora de política e meio ambiente e meu pai, Scott, é musiólogo, estuda jazz. Aos 8 anos eu já lia sobre a dinastia Tudor por influência da minha irmã. Sempre lemos muito. Ler sempre foi uma paixão. Quando tinha 9 anos, meu pai me apresentou uma banda dos anos 1940, a Spike Jones, que fazia paródias de músicas clássicas. Achava o máximo. Meus pais foram fazer um ano sabático na Dinamarca e todas as crianças de lá queriam falar de Britney Spears e Back Street Boys e eu só queria falar de Spike Jones. Não fiz muitas amizades, fui uma grande decepção para eles, porque não representei a cultura pop norte-americana. Fiquei isolada, foi um ano complicado.

O português entrou na sua vida na universidade?
Aprendi espanhol no High Scholl com uma professora maravilhosa que era apaixonada pelo Jorge Luis Borges, e ela colocou um pouco disso em mim. Na Princeton University, o departamento é spanish and portugese, fui no open house para conhecer os professores e o povo do português chegou com o panfletinho dizendo que seria fácil por eu já falar espanhol e conseguiria um crédito extra. Estava pensando em aprender francês ou árabe, queria aproveitar a ótima qualidade de ensino da faculdade para aprender outra língua. É uma exigência que você estude pelo menos outra língua, então comecei a estudar português. Foi muito mais difícil do que eu imaginava, conseguir falar uma frase sem tropeçar foi um longo caminho. Só continuei porque para ter o crédito da língua precisava fazer dois semestres, senão, tinha desistido.

Quando despertou o interesse?
Minha irmã também estava fazendo faculdade lá. Uma amiga dela postou no Facebook “socorro, alguém fala português?”. Entramos em contato. Ela tinha sido contratada por uma americana que estava escrevendo uma nova biografia da Carmem Miranda.  Não falava português, mas precisava da língua para as pesquisas. Fui contratada para traduzir um capítulo do livro de Rui Castro. Não sabia nada sobre a Carmem Miranda. Ficava muito confusa porque não sabia quem eram as pessoas e estava só com o capítulo 26. Demorei muito, mas me diverti horrores. Acabei traduzindo metade da biografia escrita por Rui Castro. E chegou uma hora em que quis ouvir as músicas que ele citava no livro.

Foi aí que conheceu as músicas?
Foi, e não me encantei de primeira, porque ouvi as gravações antigas, com muito chiado e a minha relação com a língua não era a que é hoje. Traduzi as letras. Fui criando uma relação de afeto total. Senti que isso era algo que me pertencia. Não só a Carmem, mas o Chico Alves, Mário Reis, todos os intérpretes relatados na obra, aquela geração de ouro. Aprendi que gostava muito de tradução, ficava espantada que alguém pudesse me pagar por aquilo que era tão divertido, me apaixonei pela música brasileira.

A partir daí passou a gostar mais da língua e as aulas ficaram mais fáceis?
Sim, a língua já tinha um significado para mim, não era só para ganhar crédito. No segundo semestre fiz uma matéria de cinema brasileiro. Foi quando eu vi o filme Santiago, de João Moreira Salles, que conta a história do mordomo que serviu àsua família. (Para quem não sabe, o filme começou a ser feito em 1992 e as imagens permaneceram intocadas por mais de 13 anos, quando em 2005 o diretor voltou a elas. Em novembro de 2015, entrou na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema – Abraccine, como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, ocupando o 33º.). Apaixonei-me pelo mordomo, Santiago, porque gostava muito do Borges e ele parecia um personagem do Borges. O contexto era do Rio de Janeiro dos anos 1950, 60. Maravilhoso. No ano seguinte o João foi para Princeton dar uma aula como professor visitante, e eu não quis vê-lo e nem fazer o curso, porque a imagem dele no filme era de uma pessoa arrogante que maltratou o Santiago.

E como você o conheceu?
Os professores insistiram muito. Eu sabia que ele fazia bons filmes, mas não sabia se seria um bom professor. Literalmente, todos os professores diziam que ele era ótimo e que eu deveria ir pelo menos na primeira semana. Em Princeton, tem um formato de aula que é um seminário, com poucos alunos e muito debate. O professor faz uma exposição de cerca uma hora e meia e o restante do tempo é discussão, os alunos têm que ter lido tudo e levar colocações e reflexões para poder carregar a conversa. É uma outra relação com o conteúdo. Na primeira aula o João falou por três horas. Foi uma apresentação linda sobre a história do documentário, mas não era a proposta e criei o meu pré-conceito: “Esse cara não está disposto a ouvir, só quer falar, então vou sair”. Comentei com um dos professores que insistiu para eu retornar na segunda semana. De fato, a segunda aula foi totalmente diferente. Ele mudou o programa inteiro. E com isso nos aproximamos. Foi muito fofo, porque ele ficou fascinado comigo por ser uma americana que já estava apaixonada pela música brasileira dos anos 30. Um dia, estávamos conversando e ele me disse que existia uma instituição de pesquisa no Rio de Janeiro que tinha um acervo ótimo de música daquela época. Eu já tinha assistido ao filme dele, já conhecia o Instituto Moreira Salles, sabia que ele era o presidente. Ele abriu o site do IMS, me mostrou tudo e em momento algum disse que era dele. Muito legal. Ficamos amigos.

Você não tem sotaque, já se passa por brasileira?
Sempre quis passar despercebida e a melhor forma foi usar a camisa do Botafogo. Gringo quando chega usa a camisa do Flamengo, Fluminense ou Vasco. Ninguém pega, aleatoriamente, a camisa do Botafogo. Ruiva, branquinha, camisa do Botafogo, tem que ser daqui.

Virou Botafogo ou foi só um truque?
Não entendia nada de futebol e todo mundo dizia que tinha que escolher um time. Entendi que é mais que um time, é uma tribo, e queria pesquisar e entender ao que eu aderiria. Tirei o Flamengo porque é o time que espera ganhar e isso não tem graça, é massa. Fluminense eu descartei pelo histórico de racismo. Apelei para meus escritores preferidos. A Clarice Lispector tem uma crônica linda sobre a sua relação com o Botafogo, porque ela, assim como eu, não entendia nada de futebol, mas era perdidamente apaixonada pelo Botafogo. E o Vinícius de Moraes tem um poema ótimo que fala o que é ser Botafogo. Então estava decidido. Fui ao estádio para ver como era, queria sentir o que era essa coisa tribal. Não entendi porra nenhuma. Botafogo ganhou de virada do Fluminense e fiquei viciada no ambiente do estádio. Fui nos próximos sete jogos, sou sócio torcedora, tenho umas 15 camisas do time.

Qual foi sua pesquisa no Rio?
Em Princeton, além da monografia de conclusão do curso, tem duas minimonografias que têm que ser feitas no terceiro ano, para te preparar para pesquisa. A monografia que fiz no IMS foi sobre o tango argentino no Rio de Janeiro nos anos 20, que foi uma febre.

Por que escolheu Machado de Assis como seu tema para o doutorado?

Quando estava no Rio como aluna de intercâmbio, trabalhava como tradutora e o meu orientador da Princeton, Pedro Monteiro, indicou para traduzir um livro sobre Machado que se chama Machado de Assis: por uma poética da emulação, do João César de Castro Rocha, professor da UERJ. Fiz o trabalho, e as partes que eram trechos das obras de Machado peguei de obras já traduzidas. Nunca tinha traduzido a prosa de Machado, ele era tão rigoroso, tão elegante que é outro patamar. Tem um trecho falando do Brás Cubas e aí vem um trecho do livro. Existem três traduções para o inglês. Quando fui tentar inserir essas traduções elas divergiam o suficiente do original para que a análise do João césar deixasse de fazer sentido. Como se ele estivesse falando de outra coisa. Então fui obrigada a retraduzir essas coisas também. Então, meu orientador colocou pilha para eu fazer uma nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas.

E você?
Decidi aproveitar o doutorado, que ia fazer na Brown, usar o tempo que eu tinha com as melhores bibliotecas do mundo com calma e só assim poderia traduzir Machado de Assis do jeito que eu ficasse minimamente contente. E foi assim que ele virou meu tema de doutorado. Defendi minha tese em dezembro de 2018, minha formatura será em maio e o livro será publicado em meados do ano que vem. Minha tese é a história das traduções para o inglês, perfilando quem era cada pessoa, época da tradução, análise de estilo, leitura comparada, 23 estudos de caso, etc. E muitas notas de fim de livro, que tive que cortar de 350 para 150.

Você publicou um artigo na revista Piauí relatando sua pesquisa sobre a palavra calabouço, que encontrou no livro. Cada palavra que lê é com este rigor e leva a pesquisas tão profundas assim? Ou é uma intuição para determinadas palavras?

A tradução é a forma mais profunda de leitura. Você não pode ler uma frase, achar que entendeu e passar para a próxima. Tem que ter uma certeza razoável, que não pode ser absoluta, que você compreendeu a função de cada palavra naquela frase. Não só a função, mas o tom e as nuances. Se estiver fazendo um trabalho direito, o tradutor é obrigado a interrogar cada palavra. A palavra calabouço tinha um cheiro diferente. Foi uma nota dissonante, desafinada. Eu não ficaria tranquila. Tenho que traduzir com propriedade que foi o melhor que poderia fazer.

Foi a tradução que a levou a gostar tanto de pesquisar?
São coisas que convergem. A tradução é um trabalho de pesquisa. Passei a colecionar dicionários do século 19, português-inglês, para ter uma ideia do que significava determinado termo e palavra na época de Machado de Assis.

Como foi sua mudança para o Brasil?
Sempre quis morar no Rio de Janeiro. Fiz o intercâmbio em 2011, depois emendei um ano de bolsa de pesquisa e voltei aqui. Todo o tempo que tinha fora de sala de aula voltava para cá para pesquisa. Comecei um namoro com uma repórter da revista Piauí, a Paula Scarpin, e o amor deu a urgência em mudar. Nos casamos em março de 2017, e desde então estou morando no Rio e trabalho na Rádio Novelo, empresa de Branca Vianna Moreira Salles, que produz podcasts tanto para a Piauí como para demais clientes.

Qual o trabalho que estão desenvolvendo em Minas Gerais?
Estamos fazendo um documentário de oito capítulos em podcast (audio) sobre o assassinato da Ângela Diniz. Queremos mostrar como foi absurdo e machista o tratamento que deram ao caso. Eu faço a pesquisa e a Branca, mulher do João Moreira Salles, diretora do projeto, faz as entrevistas com pessoas que foram amigas de Ângela, que conviveram e se relacionaram com ela. Este documentário será lançado no final do ano, no site da revista Piauí, afinal, esse foi um feminicídio que abalou o país.

Algum outro projeto em vista?

Estou com um projeto, há anos, junto com meu orientador da Brown, Nelson Vieira, para traduzir dos Diários Amazônicos, de Mário de Andrade, acho que seria divertidíssimo. Tenho um livro que engavetei sobre o Santiago. Conheci o copeiro da família, que foi quem guardou todos os escritos de Santiago. São 24 mil páginas escritas. Fiz minha monografia para Princeton sobre ele. Passei três meses lendo tudo, entra aí o meu lado obsessivo. A maior dificuldade é que estão escritos em cinco línguas – inglês, espanhol, francês, português e italiano. Sou analfabeta de francês e italiano, mas me virei com dicionários. Quero terminar.


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