Moacir de Almeida Reis

Com recuperação judicial da varejista, Moacir de Almeida Reis é um dos pequenos e médios empresários brasileiros que temem nunca receber o que avaliam que Americanas lhes deve. Americanas nega dívida com a transportadora Forte Minas

Arquivo pessoal

A notícia da entrada em recuperação judicial da Americanas na quinta-feira (19/1) foi recebida com pesar num sítio em Bonfim, cidade mineira a cerca de duas horas de Belo Horizonte.

Ali mora Moacir de Almeida Reis, de 62 anos, casado e pai de três filhos. Moacir mudou para o sítio por não conseguir mais se manter em Belo Horizonte.

Ele atualmente dirige um carro emprestado do filho, vende queijos e leite que compra dos sítios vizinhos e tenta administrar com a esposa uma pequena lanchonete na capital mineira. No local, não há funcionários, pois não há dinheiro para contratar ninguém. Para fechar as contas do mês, Moacir e sua esposa contam com a ajuda dos filhos.

 

Mas nem sempre a vida de Moacir foi assim. Até 2021, ele era o dono, com outros dois sócios, da Forte Minas Logística e Transporte, empresa responsável pelas entregas da Americanas no interior de Minas Gerais.

Diversas vezes no topo do ranking de excelência da Direct — braço logístico da Americanas, adquirida em 2014 da Tegma Gestão e Logística —, a Forte Minas chegou a ter 29 filiais em Minas Gerais e expandiu sua atuação também para o Espírito Santo.

No auge, a empresa faturava cerca de R$ 50 milhões por ano, segundo os sócios, e empregava diretamente 350 funcionários em Minas e outros 200 no Estado vizinho, contando ainda com uma rede de 700 a 800 "agregados", como eram chamados na companhia os trabalhadores terceirizados proprietários dos veículos e prestadores do serviço de entrega.

Moacir e seus sócios João Wanderlay de Oliveira Júnior e Carlos Henrique de Souza viram tudo isso ruir de um dia para o outro, após, de acordo com eles, a Americanas romper repentinamente o contrato com a Forte Minas. Segundo os sócios, o rompimento foi feito de forma unilateral e sem aviso prévio pela Americanas, embora o contrato entre as empresas — ao qual a BBC News Brasil teve acesso — estabelecesse um prazo de 30 dias de aviso.

Com 85% de sua receita então dependente do grupo Americanas e, segundo o relato dos sócios, R$ 7 milhões em serviços prestados e não pagos pela empresa de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, a Forte Minas entrou numa espiral de dívidas que já chegam a R$ 18 milhões, de acordo com os empresários. A Americanas nega dívida com a transportadora Forte Minas.

Sem dinheiro sequer para pagar os direitos trabalhistas dos ex-funcionários ou processar a Americanas pelos valores aos quais avaliam ter direito, os sócios se veem atualmente afundados em cobranças e processos judiciais. Perderam o sustento de suas famílias, bens pessoais e a saúde — Moacir sofreu um infarto, Carlos enfrenta uma depressão severa.

Agora, com a entrada da Americanas em recuperação judicial após a revelação de uma inconsistência de R$ 20 bilhões no balanço da empresa, eles temem talvez nunca reaver o dinheiro que acreditam que a varejista lhes deve.

As famílias de Moacir, João e Carlos são três de milhares de famílias brasileiras afetadas pelo colapso financeiro da rede de lojas e e-commerce.

Criada em 1929 como uma lojinha de rua, a Americanas hoje emprega 44 mil funcionários e vende produtos de 150 mil lojistas em seu market place virtual, contando com uma rede de milhares de fornecedores, como foi um dia a Forte Minas.

Questionada pela BBC News Brasil, a Americanas afirma que se considera um credor do Grupo Forte Minas/Forte Vix, e não devedor, como alegado. "A companhia instaurou, em 2021, processo para cobrar os valores que entende devidos pela empresa de transporte", informou a Americanas em nota.

A Americanas optou ainda por não comentar a alegação de que teria desrespeitado o contrato com a Forte Minas, ao supostamente rompê-lo de forma unilateral e sem o aviso prévio de 30 dias estabelecido em cláusula contratual.

'Acabou'

"Eu lembro no dia que ele me contou da falência. A gente estava junto e ele falou: 'Acabou' e começou a chorar", lembra Bernardo Garcia, de 31 anos e filho de Moacir. "Eu não entendi na hora como que do nada [uma empresa acaba] — no dia anterior estava tudo bem."

Bernardo lembra que seu pai ficou muito abatido nos meses posteriores à falência, perdeu 30 quilos e infartou cerca de 3 ou 4 meses depois desse dia fatídico, durante uma viagem de trabalho para fechar uma das filiais, após a ruína financeira da empresa.


Moacir de Almeida Reis na UTI após infarto

'Na UTI, com ele muito fragilizado mentalmente e o sócio dele em condição ainda pior, com crises de pânico, eu dizia para o meu pai: 'Pai, a gente vai fazer alguma coisa, vamos conseguir alguma justiça', diz Bernardo, filho de Moacir

Arquivo pessoal

"O susto foi muito grande. Na UTI, com ele muito fragilizado mentalmente e o sócio dele em condição ainda pior, com crises de pânico, eu dizia para o meu pai: 'Pai, a gente vai fazer alguma coisa, vamos conseguir alguma justiça para isso'", lembra Bernardo.

Mas, por dois anos, Bernardo ouviu do pai que era melhor deixar para lá, que tentar tomar alguma ação contra a Americanas seria "mexer com cachorro grande" e não daria em nada.

"Para você ter uma noção da gravidade da situação da nossa família e como aquilo me doía, teve um dia que minha mãe comprou um amendoim de R$ 6 e ela chorou porque naquele dia ela teve dinheiro para comprar isso", afirma.

"Mas o ponto de virada para mim foi que meus pais já não tinham carro próprio, nem casa própria, e eles usavam uma picapezinha que era da empresa para fazer o caminho entre a roça e BH, trajeto que ele faz agora vendendo leite e queijo. E aí nesse trajeto, o carro parou na blitz e foi apreendido, por conta de processo trabalhista. Eles ficaram na estrada, chorando muito e se sentindo completamente humilhados", relata o filho do casal.

"Minha mãe pegou o telefone, chorando, e falou para mim: 'Olha onde a gente está, olha o que essa empresa fez com a gente'. Aquilo me doeu demais e foi quando eu decidi que essa história precisava ser contada."

A parceria entre Forte Minas e Americanas

Segundo Moacir de Almeida Reis, então diretor de operações da Forte Minas, a empresa foi criada em 2015, com o propósito de atender o interior de Minas Gerais, uma região com quase 15 milhões de habitantes, mas carente de transportadoras.

O foco da empresa era a entrega de pequenos volumes do varejo virtual, que podiam ser feitas por uma pessoa só, utilizando veículos pequenos, como uma Fiorino ou uma van.


Os sócios Carlos (à frente) e Moacir com gerentes de filial, vestindo camisas da Direct, empresa do grupo Americanas

Os sócios Carlos (à frente) e Moacir com gerentes de filial, vestindo camisas da Direct, empresa do grupo Americanas

Arquivo pessoal

A Direct, empresa de serviços logísticos para cargas e encomendas expressas do grupo Americanas, entrou na carteira de clientes em 2016, lembra Moacir.

A Forte Minas começou realizando entregas para a Direct no centro-oeste mineiro. Com os bons resultados apresentados, a parceria foi estendida para a Zona da Mata, no sudeste do Estado, depois para o Vale do Aço e o Triângulo Mineiro.

"Fomos expandindo, até fechar todo o Estado de Minas Gerais, sempre dando esse passo em função do cliente", lembra o empresário. "Depois fomos convidados por eles também para assumir o Espírito Santo. Ficamos lá um ano e depois tudo ocorreu..."

Rumores de mercado

Com a empresa faturando à época cerca de R$ 4 milhões por mês e crescendo 30% ao ano, segundo relata João Wanderlay de Oliveira Jr., então diretor comercial da Forte Minas, os sócios não davam importância a rumores de mercado de que a Americanas não teria sido leal com outras empresas do setor.

Em 2012, por exemplo, a Ramos Transportes, do empresário Marcelo Ramos, entrou em recuperação judicial com uma dívida de R$ 115 milhões, após a B2W — então controladora das marcas Americanas.com, Shoptime e Submarino —, maior cliente da empresa, rescindir o contrato entre as partes.


Caminhão da Ramos Transportes em estrada

Em 2012, a Ramos Transportes entrou em recuperação judicial com uma dívida de R$ 115 milhões, após a B2W %u2014 então controladora das marcas Americanas.com, Shoptime e Submarino %u2014, rescindir o contrato entre as partes

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Com a decisão da Americanas, a Ramos Transportes — fundada em 1938 e então há mais de 70 anos no mercado — demitiu em um mês 1,6 mil de seus 5,1 mil funcionários à época, encerrando operações no norte e sul de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo.

O enxugamento, no entanto, não foi suficiente para sanear as contas da empresa, que enfrentou problemas operacionais, gerando transtornos e prejuízos a clientes, conforme noticiado pela agência Transporta Brasil e pelo jornal Estado de Minas à época.

A BBC News Brasil tentou contato com o empresário Marcelo Ramos da Ramos Transportes, sem sucesso.

"Nós conhecíamos essas histórias, mas nossa relação com a Direct sempre foi muito boa. Inclusive ela lançou um plano de premiação por melhores entregas e nossas filiais todos os anos estavam entre os dez primeiros lugares", conta Moacir.


Um dos certifcados de excelência recebido pela Forte Minas da Direct

Um dos certifcados de excelência recebido pela Forte Minas da Direct, ao longo dos anos de boas relações entre as empresas

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A virada na relação

"A virada nessa relação aconteceu em 2020", lembra o empresário. Naquele momento, a empresa operava há cerca de três anos sem reajuste de contrato. Os sócios então pleitearam um reajuste de 13% e conseguiram ao fim 8% de aumento, relatam.

O contrato com os novos valores chegou a ser assinado entre as partes mas, antes de passar a vigir, houve uma mudança na administração da Direct e, em vez do aumento de 8% acordado, a Forte Minas teria recebido um corte de 5% na sua remuneração. A BBC News Brasil não pôde checar de forma independente esta informação relatada pelos sócios da Forte Minas.

Questionado sobre por que aceitaram a redução de valores, Moacir conta que a Americanas então representava parcela grande demais do faturamento da empresa, para que ela pudesse simplesmente romper o contrato.

"Ela então representava 85% a 90% da nossa receita, era difícil tomar uma decisão de interromper o serviço e não trabalhar mais para eles, porque tínhamos mais de 300 funcionários, 600 e tantos agregados e toda uma estrutura", conta Moacir.

Ele destaca que, a essa altura, a empresa havia sido estimulada pela Americanas a assumir a entrega de linha branca (geladeiras, fogões, etc) na sua área de atuação, o que elevou o custo mensal com aluguel de galpões da Forte Minas de cerca de R$ 38 mil para R$ 800 mil. Assim, desfazer esses contratos de aluguel e demitir os funcionários teria custos proibitivos.


Armazém da Forte Minas em Curvelo (MG)

Armazém da Forte Minas em Curvelo (MG)

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"Então, mesmo com o caixa da empresa apertado, decidimos aceitar [o corte de remuneração de 5%] e reforçar nosso comercial, para tentar compensar essa perda com novos clientes."

No meio dessa situação apertada, foi quando João entrou para a sociedade, comprando uma fatia de 20% do negócio. Ao assumir a diretoria comercial, João trouxe novos clientes e um desses novos grandes clientes comunicou o interesse em comprar a empresa.

Como o contrato com a Americanas dava a ela preferência para uma eventual aquisição, os sócios comunicaram a ela a conversa em curso com a concorrente. A Americanas então teria demonstrado interesse na aquisição, segundo o relato dos sócios.

"Eles foram empurrando essa conversa até o dia 29 de janeiro de 2021. Naquele dia, eles me ligaram umas 20h e falaram: 'A partir de amanhã, a Americanas não trabalha mais com a Forte Minas. Estamos retirando todas as cargas de vocês'", conta João.

Mercadorias saqueadas e falência

Segundo João, sem respeitar o aviso prévio de 30 dias, no dia seguinte, a Americanas direcionou caminhões aos armazéns da Forte Minas para retirada de mercadorias.

"Foi uma debandada geral nas 29 filiais, os agregados ligando para colegas que estavam com carga e mandando não entregar porque a empresa quebrou. E começaram a saquear nossos galpões, não deixando carregar os caminhões da Direct. Os gerentes e funcionários nos galpões perderam o domínio da situação e eles também se sentiam traídos pela companhia", diz João.

"Tivemos muita mercadoria saqueada devido a essa falta de aviso prévio e hoje a Americanas nos cobra a conta disso", afirma o diretor comercial.

Em meio a esse término ruidoso, a empresa também não conseguiu arcar com os direitos dos trabalhadores desligados e agora enfrenta um mar de processos trabalhistas.

"Ficamos sem recurso nenhum. Tentamos continuar até julho, colocando na empresa todos os nossos recursos pessoais. Não tivemos dinheiro nem para entrar em recuperação judicial", diz João, que estima que a Americanas encerrou o contrato devendo R$ 7 milhões em serviços realizados e não pagos — o que a Americanas nega.

"Eu tenho 35 anos no mercado de transportes e hoje não tenho condições de sair na rua nem para procurar emprego. Todos os dias tenho no mínimo dez ligações de cobrança e um oficial de justiça batendo na porta. Minha vida, que sempre foi muito tranquila, virou um inferno", conta o executivo.

"Quando penso no rombo da Americanas e que os três acionistas da empresa são alguns dos homens mais ricos do Brasil, e eu não consigo pagar a faculdade dos meus filhos e trazer comida para dentro de casa, sinto que fui feito de trouxa."


João Wanderlay de Oliveira Júnior

'Quando penso no rombo da Americanas e que os três acionistas da empresa são alguns dos homens mais ricos do Brasil, e eu não consigo pagar a faculdade dos meus filhos e trazer comida para dentro de casa, sinto que fui feito de trouxa', diz João, um dos sócios da Forte Minas

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Um histórico de relações agressivas com fornecedores

O caso da Forte Minas não é isolado. A Americanas tem um histórico de ser muito "agressiva" em suas negociações com fornecedores, afirma André Pimentel, sócio da consultoria Performa Partners, que trabalhou na reestruturação da Americanas no fim dos anos 1990, quando estava na Galeazzi & Associados. Antes disso, Pimentel atuou na PwC, atual auditoria da Americanas.

"O jogo de negócios — principalmente no varejo, que é um setor de margens muito apertadas — não é fácil para ninguém. Toda varejista procura maximizar a eficiência de sua operação e uma das formas é negociar com os fornecedores melhores condições", diz Pimentel.

"Mas quanto maior o varejista e menor o fornecedor, a relação de forças traz um desequilíbrio às negociações e, algumas vezes, esses fornecedores se veem obrigados a aceitar determinadas condições que acabam sendo muito duras para eles", acrescenta.

"A Americana, historicamente, já de muitos anos, traz essa cultura de apertar fornecedores para maximizar a rentabilidade", observa o consultor, acrescentando que essa é uma característica das companhias administradas pelo 3G Capital, empresa de investimentos de Lemann, Telles e Sicupira.


Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann Telles

Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann Telles, sócios da 3G Capital, principais acionistas da Americanas

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Por exemplo, enquanto o mercado pratica prazos de 30 a 90 dias para pagamento aos fornecedores, a Americanas chegava a 120, 180 dias para pagamento, cita o especialista.

Foi justamente nessa relação com os fornecedores que surgiu o rombo bilionário de R$ 20 bilhões no balanço da empresa. Numa operação financeira conhecida como "risco sacado", bancos pagavam os fornecedores e a Americanas conseguia um prazo maior para pagar ao banco, com juros.

O problema é que essa dívida bancária não foi corretamente registrada no balanço, que durante anos mostrou uma dívida total menor e lucro e patrimônio líquido maiores do que a realidade. Quando isso veio à tona, as ações da empresa derreteram na bolsa de valores e as disponibilidades de caixa diminuíram fortemente, levando a Americanas à recuperação judicial.

"Infelizmente, a Americanas nunca respeitou muito [seus fornecedores]. Ela sempre passou muito da linha da negociação justa. Hoje em dia se fala muito em relações abusivas e o que ela fazia era quase uma relação abusiva entre empresas", opina o consultor.

Situação difícil de ser resolvida

Carlos Deneszczuk, sócio da Dasa Advogados e especialista em recuperação judicial e reestruturação de empresas, avalia que a situação dos sócios da Forte Minas é difícil de ser resolvida. Ele explica que, num processo de recuperação judicial, há quatro classes de credores.

A primeira são os trabalhistas. A segunda, credores com garantia (aqueles com dívidas garantidas por imóveis ou bens móveis, como máquinas, equipamentos e estoques). Na classe três, entram os credores quirografados: bancos e fornecedores. Por fim, na classe quatro, entram os pequenos e médios empresários.


fachada de uma loja da Americanas

'Provavelmente, serão anos para os credores [da Americanas] receberem', diz advogado especialista em recuperação judicial

Reuters

Para receber os valores que acreditam ter direito, diz Deneszczuk, os sócios da Forte Minas precisariam mover ação judicial para ter a dívida reconhecida em sentença. Só assim eles entrariam em uma das últimas classes de credores.

"Provavelmente, serão anos para os credores receberem, ou a dívida será convertida em ações da companhia, a depender do que for negociado. E certamente essa dívida terá um deságio, porque é muito grande para o tamanho da empresa", diz o advogado, avaliando que o caminho para os credores será longo.

Bernardo, o filho de Moacir, afirma que, apesar do drama vivido por sua família, torce pela recuperação da Americanas.

"A notícia da recuperação judicial tocou muito meus pais. Eles ficaram muito afetados e ainda mais inseguros, pois vai prejudicar ainda mais a situação de todos os credores se essa empresa vir à falência", diz o jovem.

"Então eu torço pela recuperação e por uma conscientização. Essa recuperação da Americanas tem que vir necessariamente com uma tomada de consciência sobre a forma com que acontecem as relações capitalistas."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64380982