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Estado de Minas

Crise deixa trabalhadores qualificados sem emprego

Os dramas, aparentemente individuais, têm a mesma causa: a crise econômica e a falta de confiança no futuro


postado em 17/06/2019 06:00 / atualizado em 17/06/2019 08:17

A advogada Fernanda Zoo, de 33 anos, tornou-se microempreendedora individual para fugir do desemprego(foto: Minervino Júnior/CB/DA.Press)
A advogada Fernanda Zoo, de 33 anos, tornou-se microempreendedora individual para fugir do desemprego (foto: Minervino Júnior/CB/DA.Press)

Técnico qualificado em mecânica e eletrônica, que fala inglês e mandarim, é morador de rua há dois anos. Advogada especializada em direito do servidor, com pós-graduação, usa a criatividade para mudar de ramo. Nutricionista recém-formada está disposta a aceitar qualquer emprego e advogada se arrisca nas vendas virtuais de roupas plus size para sobreviver. Todos esses casos tem em comum o mesmo elemento: apesar da formação de alto nível, são pessoas que não escaparam do redemoinho em que a desocupação, o subemprego, o desalento e ausência de esperança no futuro arrastam milhões de brasileiros ao desespero. Os dramas, aparentemente individuais, têm a mesma causa: a crise econômica e a falta de confiança no futuro.


Marcos Paulo Machado de Jesus, de 37 anos, é técnico em mecânica e eletrônica, mas mora na rua desde março de 2017. Ele chegou a Brasília em 2016, em busca de concurso público para a Câmara ou o Senado, mas também de trabalho na iniciativa privada. “A princípio, fui para um hostel. O dinheiro acabou e procurei uma unidade de acolhimento do GDF”, narra. Hoje, faz bicos: lava e vigia carros, trabalha com carga e descarga. Na quadra 402 Norte, passa o dia lendo para não deixar que se dissipe totalmente da memória o que aprendeu, e conta com a ajuda de comerciantes para café, almoço e jantar. “As chances ficam cada vez mais distantes. É difícil conseguir emprego. Na entrevista, tenho que estar de banho tomado, vestimenta adequada e ter endereço fixo”, conta Jesus.


Jesus nasceu na na Zona Norte do Rio de Janeiro, filho de um pedreiro (já falecido) e uma empregada doméstica. Foi criado pela madrinha. Em 2006, iniciou o curso de engenharia mecânica na Unisuam. “Não continuei por causa dos filhos”, conta. Ele se casou em 2008 e tem quatro filhos. Quando ainda era casado, foi para Salvador trabalhar na produção de festas e eventos. De volta ao Rio, fez cursos técnicos em mecânica e eletrônica. Passou no vestibular para matemática na UFRJ, em 2011, mas foi chamado pela Petrobras para trabalhar no projeto de implantação do Módulo SAP MM (controle de estoque), com salário de R$ 2,5 mil.


Separado da esposa em 2016, resolveu tentar a sorte em Brasília. No início deste mês, surgiu a primeira oportunidade. “Fui tentar uma vaga na Fercal (onde há grandes empresas produtoras de cimento, usinas de asfalto e derivados). Mas era para trabalhar em condições insalubres”, diz. Jesus não passou no exame médico, pois tem anemia falciforme e não pode lidar com produtos químicos.


Uma advogada e servidora pública, que não quis se identificar, foi quem descobriu as habilidades técnicas de Jesus e incentivou os amigos a ajudá-lo. Ela observou os livros que o técnico lia, um deles no idioma chinês. “Conversei com ele sobre o mandarim. Quando vi que os símbolos (desenhos) dele são muito melhores que os meus, fiquei tocada. Ele tem até carteira do Crea”, conta a servidora.


O caso de Marcos Paulo de Jesus é extremo. Porém, há outros, como o da advogada Fernanda Zoo, de 33, que se tornou microempreendedora individual (MEI) para fugir do desemprego, em 2017, depois de atuar na assessoria de Pessoal e Gestão, Política Pública e Gênero e Raça na Casa Civil do Governo do Distrito Federal (GDF), com salário de R$ 4,5 mil. No cargo, participou de negociações estratégicas com servidores e em assuntos da área social.


“Cheguei a entregar panfleto e vender brigadeiro, até criar o MEI”, reforça Fernanda, que é mãe de Júlia, de 6. Agora, ela organiza palestras e seminários na área acadêmica. “Tive que mudar de rumo. Atualmente, a área de gênero no Brasil, onde sempre trabalhei, é quase um palavrão. Aos trancos e barrancos, minha renda está em torno de R$ 6 mil”, diz.

SEM PERSPECTIVAS


Nayara Santana, de 35, advogada, formou-se em 2010. Como estagiária, já trabalhava na área jurídica como estagiária em um escritório de advocacia, lidando com defesa de servidores públicos. Ficou lá até 2014, com carteira assinada e honorários de participação, e chegou ao cargo de gerente. “Mas o ambiente ficou péssimo e decidi tentar outras coisas. Primeiro, o caminho do concurso público. Depois, fui para um outro escritório que, entretanto, quase fechou as portas em 2016”, diz Nayara.


A advogada está fora do mercado, com uma pós-graduação em direito civil concluída e outra em andamento, em direito digital. Fala inglês e espanhol e fez curso de empreendedorismo. “Abri uma loja virtual de roupas plus size, já encerrada. Agora, tenho uma empresa de consultoria na área de marketing. Eu me pergunto o que vou fazer com esse conhecimento todo. Vejo colegas fazendo audiências por R$ 100 e diligências por R$ 300”, questiona. Ela diz que cogitou mudar de profissão. “Cheguei a me inscrever no Enem para arquitetura.”


De acordo com Nayara, o mercado de direito no Brasil está saturado. “No edifício onde trabalhava, 70% das salas eram escritórios de advocacia. Agora, parece um prédio fantasma. Não sei quando, mas houve uma mudança de mentalidade. A meritocracia deixou de ser importante. Especialização, em qualquer profissão, acaba funcionando para quem indica. Vi muitas pessoas com menor qualificação ganhando mais que outras”, reclama.


Jéssica Jacomini Zanetoni, nutricionista, de 29, formou-se há um ano e faz pós-graduação. Sequer entrou para o mercado. “As empresas exigem, no mínimo, dois anos de experiência registrados em carteira”, lamenta. Formada pela Universidade de São Paulo, Jéssica está desanimada. “Depois de anos de uma excelente faculdade, aceito qualquer emprego. A melhor opção seria abrir consultório, mas não tenho capital inicial. É difícil”, afirma.

 

Estragos irreparáveis

 

Pelos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de 2014 a 2018, aumentou o número de eleitores com curso superior (completo e incompleto) em 7,6 milhões, e caiu em 15 milhões o dos que têm apenas o ensino fundamental incompleto. No entanto, no mercado de trabalho formal, houve pouca melhora. Para Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil está perdendo o bônus demográfico. “Qualificação, confrontada com a experiência, perde o valor. A crise fez estragos irreparáveis. De 2014 para cá, a economia perdeu 4,5 milhões de vagas”, comenta.


“O nome disso é incerteza. Temos mais de 13 milhões de desocupados e 28 milhões de subutilizados. As pessoas precisam retornar ao mercado de trabalho formal, com garantias, com plano de saúde, com carteira assinada”, destaca Azeredo. Apesar do incentivo de governo e empresários ao trabalho intermitente, regulamentado na reforma trabalhista, Cimar assinala que essa modalidade não trará a confiança de volta. “O trabalho intermitente não vai gerar garantia aos desempregados. Somente o formal, o fixo.”


O técnico do IBGE faz um resumo da crise que deixou as pessoas sem opção. “Um jovem que tinha 24 anos ao sair da faculdade, em 2014, quando o mercado entrou em recessão, não encontra colocação devido à quantidade de gente sem emprego e com experiência. Também não pode recorrer aos concursos públicos, porque estão escassos. Então, vira motorista de aplicativo. Aí começa a subutilização por competência. Esse é o primeiro prejuízo. Depois, ele entra em outros processos de perda e fica desatualizado”, explica. Com isso, o valor de mercado do trabalhador cai – com o salário.

Apesar do grande número de desempregados, a Pesquisa Qualificação Profissional 2016, da Fundação Dom Cabral, aponta que parcela significativa das 201 empresas consultadas (47,3%) tem dificuldade em contratar pessoal, principalmente na região geográfica de atuação (51,2%). Deficiência na formação profissional básica do candidato (48,3%), falta de experiência na função (40,8%) e pretensões de remuneração (22,9%) foram os entraves.


Luísa Simon, coordenadora de Recrutamento e Seleção da Softplan Planejamento e Sistemas, confirma. A empresa, com 90% de mão de obra especializada em desenvolvimento de software, tem 100 vagas abertas e não consegue preenchê-las. “Procuramos pessoas até fora de Florianópolis – sede da empresa. Mas o mercado de tecnologia é um nicho difícil, mesmo tendo competitividade e espaços para vários perfis”, conta Luísa.

 

 


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