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Estado de Minas QUEBRAR TABUS

Conheça a primeira mulher trans de Ouro Branco a fazer redesignação sexual

Acompanhamos os primeiros passos de Spencer Jill para mudar o nome social e o gênero: 'Sempre me vi como mulher desde criança'


11/04/2022 12:27 - atualizado 12/04/2022 18:46


A Igreja Matriz de Santo Antônio, uma das mais antigas de Minas Gerais, mostra a importância de Ouro Branco, cidade na Região Central. Datada de 1779, a construção marca o período colonial, quando o povoado ainda era parte de Ouro Preto. A arquitetura barroca da Matriz contrasta com o urbanismo da praça em frente, inspirada no modernismo. Foi nesse encontro entre dois tempos que Spencer Jill Hastings recebeu a reportagem do Estado de Minas, em 5 de abril de 2022. A data é muito simbólica para ela, pois é o dia seguinte ao seu renascimento.
 
"Sempre me vi como mulher desde criança. Vestia as roupas das minhas primas, inclusive apanhei por causa disso. Na minha cidade, fui a primeira transexual a procurar o Sistema Único de Saúde (SUS)", afirma.

Depois de iniciar o processo de transição de gênero no centro de saúde da cidade, ele pretende ir para Belo Horizonte para fazer a cirurgia de redesignação sexual no Hospital Eduardo de Menezes. Ao olhar para o espelho, ela se sente no corpo errado. Então, iniciar o processo de transição foi o início de uma libertação. "Sentimento de alívio, ansiedade e de muita esperança".

Spencer em praça de Ouro Branco ao lado de flores
'Sentimento de alívio, ansiedade e de muita esperança', diz Spencer Jill (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

 
Depois da publicação da série especial Bonequinhas, na qual o EM contou como é a vivência de travestis e mulheres trans na capital mineira, fomos a Ouro Branco para acompanhar o processo de transição de Spencer Jill Hastings, de 27 anos.

Feminilidade destacada

Spencer estava com os cabelos longos cacheados, usava esmalte na cor verde esmeralda, conjunto de moletom e tênis, bem ao estilo de uma jovem despojada dessas dos filmes norte-americanos de high school. Estava maquiada, com o delineador nos olhos perfeito e feliz da vida com o resultado da maquiagem feita com os produtos da Avon, marca que ela fez questão de destacar. 

"Qualquer forma de a pessoa se transformar é maravilhoso. Ela vai ser feliz"

Rosemary Aparecida Muniz, mãe de Spencer



Com 13 mil seguidores no Instagram, ela é influenciadora, mas não é embaixadora da empresa de beleza. Destaca que é só consumidora mesmo. Tem uma gratidão, pois a maquiagem permite a ela se ver, quando olha no espelho, como gostaria de ter nascido. O batom ressalta não só a beleza, mas a feminilidade.

retrato de Spencer nas ruas de Ouro Branco
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)


O dia  4 de abril de 2022 é o renascimento de Spencer, por ter sido a data em que a advogada Janaína Vieira Vargas deu início ao processo de mudança no registro civil. Spencer vai alterar o nome e o gênero de nascimento, mas já abandonou o nome com que foi registrada. Ela escolheu Spencer Jill Hastings por duas razões: homenagem a Lady Di, que se chamava Diana Spencer (1961-1997) e a personagem  Spencer Hastings da série Pretty Little Liars.

"O nome é um direito personalíssimo. É um ramo do direito. É um direito da pessoa ter o nome  que ela mais se sente grata em ouvir e receber  o outro. É um direito imensurável", afirma a advogada.

A família e a comunidade

A mudança de nome é o primeiro passo em rumo a transformação que Spencer deseja, que prevê colocação de silicone nos seios, uma abdominoplastia e uma cirurgia de redesignação sexual. Depois, ela será a mulher que sempre sonhou, desde a infância. Nesse processo ela tem o apoio da mãe,  Rosemary Aparecida Muniz, de 54 anos, que, como ela gosta de frisar, desde a infância percebeu o jeito feminino da filha. 
Spencer em janela de casa em Ouro Banco, com a igreja matriz ao fundo
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

"A Spencer, ela para mim assim… Não vou dizer que surpreendi, porque mãe sabe de tudo que passa com o filho. Mas agora, é como se um novo caminho abrisse para ela e abrisse para nós também. Ele está realizando o sonho dele, digo o sonho dela. Eu disse para ela: 'você nasceu com um corpo masculino, mas tem a alma feminina'", diz a mãe. 

"Cabeça aberta"

Spencer é de uma família tradicional de Ouro Branco, com familiares proprietários de comércio e que ocupam cargos litúrgicos na Igreja Matriz de Santo Antônio. Mas a mãe garante que tem a "cabeça aberta". "Qualquer forma de a pessoa se transformar é maravilhoso. Ela vai ser feliz. Ela melhorou 100%. Tadinho do meu amor, eu amo ela demais".
Spencer abraçada ao primo Luís Fernando
O primo Luís Fernando Ribeiro de Paula sempre foi um ponto de apoio para Spencer (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

A mãe ainda oscila, algumas poucas vezes, entre a forma de tratar a filha, chamando de ele, mas sempre se auto-corrige quando percebe que usou o pronome no masculino. "Às vezes, a gente troca, mas ela é ela.  Não tem dúvida. É ela.” Rosemary diz que os tabus estão aí para serem quebrados. “Essa coisa de tabu, não é assim não. As pessoas têm que mudar a mente”, afirma ela que nasceu em Conselheiro Lafayete, mas foi criada em Ouro Branco.

A mãe gostaria que todos olhassem para a filha da maneira que ela a enxerga, mas admite que ainda há preconceito. "Tenho medo dos homofóbicos", revela. Mas diz que nunca viveu uma situação de preconceito com a filha. 

"A gente tem uma relação muito massa" 

O primo, o músico Luís Fernando Ribeiro de Paula, de 24 anos, desde a infância é o confidente de Spencer. Ele não só compreende a prima como sempre procurou ajudá-la no processo de autoconhecimento. "A gente tem uma relação muito massa, que foi construída desde pequenos. Crescemos juntos no quintal da nossa avó. Brincamos de pique pega, bolinha de gude", diz. 
 
A cabeleireira Adriana cuida dos cabelos da Spencer
Spencer recebendo os cuidados no Salão Beleza Pura (foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)
O jovem lembra que a família, embora tradicional, se colocou aberta para o processo vivido por Spencer. "A maneira que minha prima contava, demonstrando outro lado, foi uma maneira diferente de terem esse aprendizado, mas tenho certeza que todo mundo abriu a menta com a nossa prima", afirma.
 
A cabeleireira Adriana Batista, de 48 anos, ajuda Spencer a ficar mais bonita em seu salão  Beleza Pura, que trabalha no ramo há 27 anos.  O estabelecimento está localizado no Centro há três anos. “A gente apoia todas as partes da mudança. A Spencer é uma carinhosa com a gente no salão. Ela gosta muito dessa área da beleza, busca muitas informações e traz para gente”, afirma. A mudança foi radical, mas Adriana não estranhou. “A gente conhece e percebe a transformação.”  Adriana reforça que é preciso respeitar a vontade de Spencer.

"A Spencer é uma carinhosa com a gente no salão. Ela gosta muito dessa área da beleza, busca muitas informações e traz para gente"

Adriana Batista, cabeleireira


 
O presidente da Associação Comunitária do Bairro Siderurgia Michel Nicolau da Silva afirma que há uma discussão sobre diversidade na cidade, inclusive esse é um dos projetos implantados por ele. Ele defende o direito de Spencer seguir com o gênero com que mais se identifica sem sofrer qualquer tipo de preconceito. 

O processo de transição

A advogada ajuizou ação na Comarca de Ouro Branco em 4 de abril de 2022. Ela escolheu o nome Spencer Jill Hastings. "Você pode mudar o nome e o sobrenome e por opção da minha cliente ela vai alterar por completo". A documentação é bastante extensa. Ela terá que mudar a carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento, passaporte. 

Spencer faz as unhas em salão em Ouro Branco
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/DA PRESS)

Também é preciso enviar ao juiz um relatório informando que o processo de transição está sendo acompanhado por psicólogos e por profissionais de saúde. Ainda são exigidas certidões negativas civil, trabalhista, penal e de cartório. 

"A mudança do nome para um nome social abre-se um leque de modificar toda a documentação em todos os órgãos. É bom ressaltar que com a ordem judicial, solicitamos que o cartório mantenha essa situação em sigilo para não haver nenhum tipo de constrangimento", diz a advogada. Spencer guardou o nome de batismo, para nascer de novo. "O cartório se compromete a guardar todas essas informações em segredo", diz.

O processo de transformação de Spencer deve ser acompanhado por profissionais de saúde, médicos de várias áreas e psicólogos. Os primeiros atendimentos foram no centro de saúde em Ouro Branco.

"Por ser uma cidade pequena, nós temos um atendimento de saúde muito bom. Mas eu gostaria de reforçar o pedido de ajuda da assistência social e o secretário de saúde, se puder agilizar, para que a Spencer se torne não só o nome social, mas a primeira levantar essa bandeira tão importante por completo na nossa cidade", afirma a advogada.

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