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Estado de Minas

A roça vai à cidade em novo restaurante da chef Mariana Gontijo

Depois do bem-sucedido Roça Grande, mineira de Moema continua a servir comida caipira, só que com apresentação mais moderna


postado em 29/12/2019 04:00 / atualizado em 05/01/2020 09:36

Rosca caseira torrada na manteiga, coalhada seca, melado de cana, azeite mineiro, flor de sal e pimenta(foto: Daniel Chico/Divulgação)
Rosca caseira torrada na manteiga, coalhada seca, melado de cana, azeite mineiro, flor de sal e pimenta (foto: Daniel Chico/Divulgação)
Uma casa para morar, um bairro inexplorado, uma chef que defende a cozinha caipira, um cardápio com produtos do cerrado. Escolhas que fazem do Tacho, no Carlos Prates, um restaurante diferente de tudo que já se viu em Belo Horizonte. Mariana Gontijo, já conhecida na cidade pelo Roça Grande, se desviou de fórmulas prontas para seguir um conceito verdadeiramente inovador. Ao lado de Igor Fernandes, ela dá mais um passo para manter viva a cultura alimentar mineira.

O nome Tacho já diz muito sobre o restaurante. Vem de uma fala de Mariana, que se define como cozinheira de tacho, e não de pinça. “Isso significa que a minha cozinha representa a cozinha das mulheres do interior, indígenas, negras, sertanejas, quilombolas, mulheres que a meu ver foram as grandes responsáveis pela criação da cozinha mineira. Cozinha farta, feita para compartilhar”, explica. Além disso, tacho na roça é praticamente uma unidade de medida.

Mariana brinca que, no Tacho, a comida caipira está “vestida” com roupa de domingo. Explica-se: a chef se desafiou a apresentar pratos mineiros de raiz de uma forma mais delicada e contemporânea, sem perder a essência, é claro. “A proposta do Tacho é justamente propor o diálogo entre roça e capital, entre antigo e moderno. Por isso, falo que é o caipira do interior que vem para a cidade, se entusiasma, se apaixona, mas na hora de sentar na mesa quer sentir o sabor da roça.”

Em uma das entradas, a chef reproduz a forma como se come frango no interior. “Quando o frango está quase pronto, pegamos o fígado refogado, o angu e comemos com o caldo”, descreve. Na versão dela, a raspa de angu, bem crocante, serve como base para patê de fígado de galinha, chutney de cagaita e conserva de jiló. Para acompanhar, uma xícara com caldo quente de galinha.

Peixe do rio, purê de abóbora assada no borralho, conserva de maxixe e farofa de buriti
Peixe do rio, purê de abóbora assada no borralho, conserva de maxixe e farofa de buriti

Até mesmo o galopé tem vez no cardápio. Já dessossado, o pé de porco recheado com refogado de galo chega à mesa com mamão verde, mandioca, brotos de abóbora e molho de tamarindo.

Os miúdos de porco também se “vestem” de forma diferente. No cardápio, temos pelotas (como se chamam as almôndegas na roça) envolvidas em redanho, tripa de porco que parece uma rede, com chips de banana verde, creme de pequi e beldroegas frescas. A entrada é servida em um prato fundo com caldo frio de beldroega, para comer de colher. Em outra entrada, a tripa aparece frita e inflada com patê de fígado, salsa de manga, compota de casca de jabuticaba e gabiroba.

O desafio, neste primeiro menu, era incluir pelo menos um ingrediente do cerrado em cada prato. “Sou declaradamente apaixonada pelo cerrado, é onde eu nasci, meu lar, minha bandeira”, aponta. O nome Caminhos do Cerrado faz uma conexão entre Moema, cidade do interior de Minas onde a chef nasceu, e a Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Lá, ela fez um curso sobre identificação e uso dos frutos do cerrado na cozinha. Na volta, decidiu criar os pratos do Tacho com tudo o que aprendeu.

Segundo Mariana, esse cardápio é um manifesto em defesa do cerrado – o segundo mais extenso do país e com uma das ricas biodiversidades do mundo – e dos povos que ainda preservam suas riquezas. De norte a sul do Brasil, várias comunidades estão representadas nas receitas.

PIMENTA No Tacho, conhecemos o trabalho das quebradeiras de coco babaçu do Maranhão e do povo indígena kisêdjê, do Xingu, no Mato Grosso, que produz pimenta. A chef também mostra a baunilha do cerrado dos quilombolas de Cavalcante, em Goiás. Januária, no Norte de Minas, fornece derivados de pequi (óleo e castanha cristalizada), arroz de pilão, farinha de jatobá e farinha de buriti. Assim como no Roça Grande, toda a base do cardápio, como carnes, ovos, legumes e verduras, vem de Moema.

Mariana traz de sua cidade natal a galinha-d'angola para fazer uma receita diferente de galinhada, preparada com o arroz de Januária, que não passa por processos industriais. “Quero aproveitar uma ave muito consumida por nós lá em Moema, mas que quase não se acha aqui. A d'angola tem uma carne mais saborosa, mais potente e escura”, detalha. O prato ganha ainda mais sabor com conserva de açafrão-da-terra, batata-baroa palha, salada de rúcula selvagem e molho de laranja.

Uma das sobremesas do Tacho pode ser definida como menu degustação de doces de ovos. “Celebro a nossa doçaria tão rica, fundamentada em ovos, que é uma herança portuguesa.” Fazem parte do prato duas “merendas” feitas pela mãe de Mariana: lambedor (espécie de ovos nevados da roça) e maria gordinha (crocante de queijo, açúcar, manteiga e farinha de mandioca). Para completar, quindim, fio de ovos, ambrosia e compota de cajuí.

O arroz-doce, tão comum no interior, não perde em nada para as outras receitas. Cozido no leite de coco, ele é combinado com castanhas cristalizadas de pequi e caju, caramelo e farofa de coco queimado.
 
Os chefs Mariana Gontijo e Igor Fernandes recebem as
Os chefs Mariana Gontijo e Igor Fernandes recebem as "visitas" como se fosse em casa

Receber em casa 
Na varanda, fotos de família preenchem a parede. A sala tem cristaleira e sofá, enquanto a biblioteca exibe livros e máquina de escrever. Já o quarto de visitas está mobiliado com mesa coletiva e geladeira. No andar de cima, a copa com uma vista surpreendente do Centro da cidade. O Tacho parece casa, e é mesmo, já que Mariana mora no restaurante. Tirando o seu quarto, todos os outros cômodos são compartilhados. “É como se estivesse vivendo em casa com uma grande família. Todo mundo se encontra para comer e depois cada um vai para um canto.”

A chef “namorou” a casa por oito anos. Mas, na época, era inviável para uma estudante vinda do interior abrir um restaurante totalmente fora do circuito. “O Roça Grande foi um passo cauteloso. Abri primeiro no Centro um restaurante de prato feito para ser conveniência, agora quero que o Tacho seja destino”, explica. O imóvel, de 1935, estava em bom estado. Mariana mudou apenas a decoração e adotou a praça ao lado, onde quer manter viva a cultura das festas populares, como reinado e são-joão.

Em destaque no quintal da casa, um forno a lenha construído com terra de formigueiro. Era um sonho antigo de Mariana. “O forno me faz lembrar dos tempos de infância. Toda vez que via fumacinha saindo da casa da dona Chica gostava de ir lá observá-la fornear as quitandas”, conta.

Mariana prepara no forno a lenha o biscoito montanha servido no couvert caipira para receber as “visitas”. A massa à base de polvilho, fina e delicada, vai crescendo e formando alturas no tabuleiro, daí o nome. Acompanham creme verde de pequi com inhame e chutney de fruta da estação (atualmente manga). Do forno também sai a rosca caseira, uma receita de família, que chega à mesa como se nem fosse quitanda. Depois de ser torrada na manteiga, ela vira base para coalhada seca de leite jersey, melado de cana, flor de sal, azeite mineiro e pimenta.

Legumes como a abóbora passam a noite no forno assando no borralho (nome que se dá à brasa mais amena). “É um processo de assar mais lento, que deixa um gosto defumado”, descreve. No dia seguinte, ela vira purê para acompanhar um peixe do rio, que pode ser surubim, curimatã ou pacamã, farofa de buriti e conserva de maxixe. Usando o mesmo método, Mariana assa o inhame do prato com carne de boi curada e grelhada, farofa de andu e ovo e vinagrete de maxixe.

Canjica branca cremosa com coco, refogado de frango caipira, farofa de baru e trevinhos azedos
Ingredientes 
400g de canjica branca; 700ml de leite de coco; 300ml de leite integral; 1 cebola amarela média; 3 dentes de alho; 100g de manteiga; sal a gosto; 1 frango caipira inteiro; 2 cebolas amarelas médias; 4 dentes de alho; 3 colheres de sopa de banha de porco; 1 cenoura grande ralada; 2 cebolas amarelas médias cortadas em cubinhos; 1 talo de salsão médio ou talos de um molho de salsinha; 1,5 litro (aproximadamente) de água fervente; sal a gosto; pimenta-de-macaco ou do-reino a gosto; 100g de baru descascado; trevinhos azedos a gosto
 
Modo de fazer
Tempere o frango com alho, sal e pimenta amassados. Deixe descansar por meia hora. Em uma panela de pressão, coloque 2 colheres da banha de porco e a cebola cortada em tiras. Deixe dourar até ficar bem escura. Acrescente as partes do frango e mexa para envolver a cebola. Deixe no fogo médio até dourar o fundo da panela. Pingue um pouco de água até cobrir o fundo da panela. Mexa o frango para envolver neste caldo e espere até “fritar” e secar novamente, mexendo de vez em quando. Pingue água novamente. Repita esse processo até o frango ficar moreno (essa técnica é conhecida como pinga e frita). Neste momento, cubra o frango com a água fervente, tampe a panela de pressão e conte 30 minutos após a panela começar a chiar. Após cozido, desfie todas as partes do frango, aproveitando, inclusive, os miúdos e pele, que devem ser repicados. Reserve o caldo da cocção e o frango desfiado, separadamente. Em uma panela, acrescente 1 colher de sopa de banha e a cenoura, refogue até ela ficar dourada, acrescente o salsão e repita o processo. Por último, a cebola. Quando a cebola já estiver dourada, acrescente o frango desfiado ao refogado e deixe tostar. Vá acrescentando conchas do caldo e deixando tostar, repetindo o processo do “pinga e frita”. Quando o refogado já estiver bem moreno, acrescente caldo até cobri-lo e deixe ferver um pouco para encorpar. Enquanto o refogado fica pronto, em uma panela acrescente o leite de coco, a canjica e o sal. Deixe cozinhar até a canjica estar al dente. Em um liquidificador, processe levemente a canjica cozida nos leites, para que ainda seja mantida a textura dos grãos. Se necessário, acrescente um pouco mais de leite integral. Em uma panela, acrescente a manteiga e refogue a cebola repicada e, por último, o alho. Neste refogado, acrescente a canjica batida e deixe reduzir até ficar cremosa. Acerte o sal. Em um processador ou com a faca, quebre grosseiramente as castanhas-de-baru para que ainda mantenham textura crocante. Lave os trevinhos. Sirva a canjica, o refogado por cima com um pouco do caldo e finalize com a baru e os trevinhos.

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