Paulo Pederneiras

Paulo Pederneiras diz que coesão do núcleo que comanda o Grupo Corpo é fundamental para a sobrevivência da companhia

Túlio Santos/EM/D.A Press

Não acho que o Corpo envelheceu. Pelo contrário, amadureceu e se tornou mais exigente. Isso me deixa feliz. Em termos de bailarinos, de equipe, é um grupo que vem rejuvenescendo

Paulo Pederneiras, diretor artístico do Grupo Corpo

 

É com a credencial de quase meio século de êxitos acumulados que o Grupo Corpo chegou a 2023 como uma das mais importantes companhias de dança do Brasil e do mundo. Vide o convite do maestro venezuelano Gustavo Dudamel para a criação da coreografia apresentada ao lado da Orquestra Filarmônica de Los Angeles, sob sua regência, cuja estreia ocorreu em 18 de julho, nos Estados Unidos.

Mirando o cinquentenário, Paulo Pederneiras, fundador e diretor artístico do Corpo, fez um balanço dessa trajetória em entrevista ao “EM TV”, programa da TV Alterosa, Estado de Minas e Portal Uai exibido no sábado (14/10).

A seguir, Paulo aborda os momentos marcantes do grupo, os processos de criação e suas singularidades. Também analisa o cenário da dança no Brasil, destacando a coesão do núcleo que compõe o Corpo desde o início, uma das razões de seu sucesso.

Com 48 anos de trajetória, cabe dizer que o Grupo Corpo é hoje patrimônio não só mineiro, mas mundial?
Fico muito feliz que a gente tenha chegado até aqui, e mais feliz ainda de pensar que o Grupo Corpo, desde sua inauguração até hoje, segue enchendo os teatros. Ou seja, até hoje a gente tem o que dizer. Artisticamente, não acho que o Corpo envelheceu. Pelo contrário, amadureceu e se tornou mais exigente. Isso me deixa feliz. Em termos de bailarinos, de equipe, é um grupo que vem rejuvenescendo. No caso dos bailarinos, a cada dois ou três anos há renovação, mudança mais profunda em matéria de idade mesmo. Os espetáculos vão ficando cada vez mais exigentes em termos físicos, de modo que essa renovação é necessária.

De um ano para cá, oito novos bailarinos passaram a fazer parte do Grupo Corpo. Como é o processo de renovação do elenco?
Antigamente, fazíamos audição e acontecia de ter uma enormidade de candidatos, 400 ou 500, às vezes, para duas vagas. No final, eu achava meio contraproducente, porque você ia fazer, sei lá, 380 ou 398 pessoas tristes, frustradas, porque não passaram, para duas muito felizes, porque passariam a integrar o Grupo Corpo. Então, a gente vem modificando esse processo. Como o Corpo faz turnês pelo Brasil todo, acabamos conhecendo os bailarinos de cada cidade, e os próprios bailarinos têm suas redes de contatos. Atualmente, a gente prefere fazer uma pré-seleção, em vez da audição com dia marcado.

A profissão de modelo é muito glamourizada, as pessoas tendem a achar que é uma vida de estrela, mas a realidade é bem diferente. Na dança, isso também ocorre? Como é a vida do bailarino e da bailarina?
É um trabalho de segunda a sexta, quando o grupo está em Belo Horizonte. Eles têm compromisso a partir das 9h, quando fazem aula de técnica clássica, e depois têm ensaio até as 15h ou 16h. Agora, quando a companhia está em turnê, claro que isso muda, porque tem as apresentações. É muito puxado fisicamente. Como o Corpo tem compromissos assumidos em vários locais, a gente leva várias obras diferentes para cada um. Assim, os bailarinos têm de estar com pelo menos umas cinco coreografias em dia, que a gente mantém no repertório durante o ano. É uma vida muito pesada, eu diria. Maravilhosa também, com oportunidades de viajar, de se apresentar em teatros grandes no mundo todo.

 

Espetáculo Estância, do Grupo Corpo

Último espetáculo da companhia, 'Estância' foi encomenda ao Grupo Corpo feita por Gustavo Dudamel, regente da Filarmônica de Los Angeles

José Luiz Pederneiras/divulgação
 

 

O trabalho mais recente do Corpo, “Estância”, é uma coreografia feita sob encomenda do aclamado maestro Gustavo Dudamel, da Orquestra Filarmônica de Los Angeles. O grupo já havia aceitado um convite assim?
Não. Essa foi a primeira vez, e ficamos muito reticentes, porque normalmente temos uma ideia do que vamos fazer para o próximo ano. Aceitamos o convite e ficamos três meses criando essa obra com o Rodrigo (Pederneiras), coreógrafo residente do Corpo. Foi uma experiência única. Não é o lugar com que estamos acostumados, porque dividimos o palco com a Orquestra Filarmônica de Los Angeles, que é maravilhosa. A apresentação foi no Hollywood Bowl, teatro ao ar livre para 18 mil pessoas, uma coisa extraordinária. A gente também ficou muito feliz, porque o convite partiu desse maestro, Gustavo Dudamel, que hoje é o queridinho do mundo todo. Daí resolvemos repetir a experiência em Belo Horizonte, na Sala Minas Gerais, com a Orquestra Filarmônica, que é fabulosa. Foi das coisas mais emocionantes que já fizemos.



Os primeiros espetáculos do Grupo Corpo foram pautados pela música popular. As criações da década de 1980 e início dos anos 1990 partiram do universo erudito. A partir de “21”, em 1992, a música popular volta à cena. O que determinou o trânsito entre esses dois universos?
O primeiro espetáculo do Corpo foi “Maria, Maria”, com música do Milton Nascimento. O roteiro era do Fernando Brant e a coreografia do argentino Oscar Araiz, que já era bastante conhecido no mundo e veio especialmente para isso, trazendo com ele toda sua equipe de criação. Éramos muito dependentes na parte de criação, não só no primeiro espetáculo, como também no segundo, “O último trem”, em que a gente repete praticamente a mesma turma. Daí resolvemos que era necessário ter uma certa autonomia criativa. O Rodrigo começa a fazer as coreografias para o Grupo Corpo, se torna o residente da companhia, e ele tinha preferência pela música clássica. Mesmo assim, a gente pegou compositores eruditos brasileiros como Bruno Kiefer, Villa-Lobos, Henrique Oswald, pouco conhecidos do público. Foi uma linha que Rodrigo foi criando e depois se voltou para a música popular, porque, a partir de certo momento, deu vontade de encomendar outras músicas para a companhia.

 

Espetáculo Maria, Maria, do Grupo Corpo

'Maria, Maria', que estreou em 1976, abriu as portas do mundo para a companhia de dança BH

José Luiz Pederneiras/divulgação

 

Quais espetáculos você considera mais marcantes?
Primeiro, claro, “Maria, Maria”, porque é a fundação da companhia. Foi o que nos possibilitou viajar boa parte do mundo, o que acelerou o processo de aprendizagem do Corpo. Um outro espetáculo marcante é o “21”, com trilha sonora do Marco Antônio Guimarães, com o Uakti. Esse espetáculo foi realmente uma virada muito importante, porque ali a gente testa várias possibilidades, cênicas inclusive. É um espetáculo mais radical. Tem vários importantes, como o do João Bosco, “Benguelê”, e depois o “Parabelo”, aquele que o Grupo Corpo mais apresentou durante sua trajetória toda, com trilha do Zé Miguel Wisnik e do Tom Zé.

 

Espetáculo 21, do Grupo Corpo

O espetáculo '21' representou virada marcante na trajetória do Grupo Corpo

José Luiz Pederneiras/divulgação
 

 

O que você entende como a principal singularidade do Grupo Corpo?
São duas coisas, que têm correlação. Uma é a honestidade artística, que vai dar no fato de estarmos sempre considerando a inteligência do público. Ou seja, não facilitamos nada, o público tem participação no entendimento. Isso quer dizer que estamos sempre em busca de alguma coisa que ainda não fizemos, que desconhecemos. Isso é muito importante na parte criativa. Acho que, por isso, o Corpo, com 48 anos de história, é uma companhia contemporânea, pois está sempre propondo alguma coisa nova. Essa particularidade se relaciona com a noção de grupo muito forte, a noção de comprometimento.

 

Não adianta você só ter excelência criativa, excelência artística, porque a gente já viu muitas vezes isso acontecer em outras áreas, e realmente é uma coisa que pode terminar rápido, pode ser efêmera. É muito importante uma boa administração, isso sim

Paulo Pederneiras, diretor artístico do Grupo Corpo

 

 

Quais são os maiores desafios para manter uma companhia de dança ativa por tanto tempo?
É um desafio constante. Não adianta você só ter excelência criativa, excelência artística, porque a gente já viu muitas vezes isso acontecer em outras áreas, e realmente é uma coisa que pode terminar rápido, pode ser efêmera. É muito importante uma boa administração, isso sim. No nosso caso, nunca desejamos fazer um espetáculo que fosse entretenimento. Isso poderia ser o lado comercial, mas nunca abrimos mão do lado artístico, porque ele é o que nos interessa.

 

O que orienta o convite do Corpo a determinado compositor para a criação da trilha sonora?
Primeiramente, a gente escolhe um compositor pelo qual temos admiração. Depois, pensa-se na possibilidade de esse compositor ter fôlego para fazer uma obra de 40 minutos, o que é diferente, porque normalmente os convidados são da música popular, seguem o formato mais curto das canções, e a proposta aqui é de um trabalho com duração bem mais estendida. Convidamos, até hoje, Marco Antônio Guimarães, Milton Nascimento, João Bosco, Arnaldo Antunes, Zé Miguel Wisnik, Lenine, Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Só fera, porque temos um leque imenso.

Já aconteceu de não dar certo, de a trilha encomendada não satisfazer as expectativas?



Sim, porque quando a gente convida, o compositor tem liberdade total, inclusive de propor o tema ou o conceito para o espetáculo. Com isso, pode acontecer de um ruído qualquer levar para um lado um pouco equivocado, como se tivesse de ter uma história, como se tivesse que ter um roteiro, e na verdade não precisa se apegar a nada. Às vezes tem um pouquinho de ajuste da trilha, mais em função da dinâmica que você deve ter no espetáculo, e em função também da questão física dos bailarinos. Você deve ter momentos em que eles possam descansar um pouco, porque, no palco, se ficar pulando durante 40 minutos, mata a pessoa. É pedreira.

 

O jornalista Benny Cohen e Paulo Pederneiras no estúdio da TV Alterosa

O jornalista Benny Cohen e Paulo Pederneiras no estúdio da TV Alterosa

Túlio Santos/EM/D.A Press

Ainda bem que temos as leis de incentivo, porque senão seria impossível a existência de companhias como o Grupo Corpo e a maioria das companhias do mundo, que, digamos, não são do Estado

Paulo Pederneiras, diretor artístico do Grupo Corpo

 

 

E já aconteceu de algum compositor declinar do convite para fazer uma trilha para o Grupo Corpo?
Não, até hoje não. Tem que estar no momento em que o compositor tenha essa disposição, porque é novidade para ele também. Com Lenine, que é maravilhoso, já fizemos mais de um trabalho – até agora foram dois espetáculos, e queremos fazer mais. Com o Zé Miguel Wisnik já fizemos quatro. Tem pessoas que estão aí, sempre mais próximas. No caso do Lenine, ele disse que depois do primeiro trabalho com o Corpo, sua maneira de compor se modificou totalmente. Para os compositores, é também uma empreitada muito importante. Só que tem de ter essa disposição, essa abertura, o que não é pouca coisa.

Voltando no tempo, à década de 1970. O que te motivou a criar o Grupo Corpo?
Eu tinha uma história no teatro, fazia teatro e fazia arquitetura. Era uma época difícil, o diretor com quem eu trabalhava teve de sair, era um contexto de ditadura. Meus irmãos estavam no grupo de dança experimental da Marilene Martins, muito importante. Eu me interessei por esse grupo e comecei a trabalhar com eles, até que pensei em fazer uma companhia profissional, em que as pessoas pudessem se dedicar totalmente à dança.

Você já enxergava o Grupo Corpo como ele é hoje?
Eu era até mais presunçoso, com vinte e poucos anos a gente é muito presunçoso – eu, pelo menos, era. Achava que ia fazer uma coisa importante, e essa coisa foi feita, não só por mim, mas pelo grupo todo. Não nego minha participação, mas a história do Corpo é resultado do esforço de um grupo que até hoje é muito coeso.

 

Hoje você tem um público de dança impressionante no Brasil. Na época do 'Maria, Maria', não. Você tinha pouquíssimas companhias, aquelas de repertório, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, do Theatro Municipal de São Paulo

Paulo Pederneiras, diretor artístico do Grupo Corpo

 

 

Que avaliação você faz do cenário atual da dança no Brasil?
A dança evoluiu, e o público principalmente. Hoje você tem um público de dança impressionante no Brasil. Na época do “Maria, Maria”, não. Você tinha pouquíssimas companhias, aquelas de repertório, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, do Theatro Municipal de São Paulo, que atuavam poucas vezes por ano, com público bastante restrito, formado só por quem realmente era muito ligado à dança. Hoje é diferente, não acho que o Corpo tenha público de dança, é um público de artes cênicas, muito grande e diverso. Por ser linguagem universal que não depende da palavra, do idioma, isso possibilita se apresentar em vários lugares do mundo, o que também ajuda a evolução da dança aqui no Brasil.

 

Existe algo que você deseja realizar com o Grupo Corpo e ainda não conseguiu?
Não, acho que não. Sempre quis que o Corpo estivesse num meio artístico mais amplo. Isso, sim. Eu tinha vontade, há mais tempo, de ter um centro cultural onde o grupo pudesse conviver com outras áreas do fazer artístico. Mas é uma coisa que hoje não passa mais pela minha cabeça, até porque são tantas as dificuldades para manter uma companhia de dança nesse nível, com quase 60 funcionários. Ainda bem que temos as leis de incentivo, porque senão seria impossível a existência de companhias como o Grupo Corpo e a maioria das companhias do mundo, que, digamos, não são do Estado.

 

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Falando dos 50 anos, que projetos vêm por aí?
A gente se sente um pouco na obrigação de deixar alguns registros. Então, devemos fazer uma série de filmes sobre o Grupo Corpo e, com certeza, um livro também. Acho muito importante ter o registro impresso. Lógico que o mais importante seria um trabalho novo, mas, com relação a isso, confesso que ainda estou perdido, aceitando sugestões. Passam coisas pela cabeça, porque a gente não para de pensar, mas nada conclusivo.

Veja a entrevista na íntegra: