ilustração mostra rosto fragmentado de mulher

ilustração mostra rosto fragmentado de mulher

Fernando Lopes/CB/D.A Press/detalhe
 
Cuandu é neta e bisneta de escravizados, vive na fronteira do Brasil com o Uruguai. Impetuosa, questionadora e talvez a primeira da família a ascender socialmente, Cuandu é uma gaúcha que olha para a ancestralidade com a obstinação de resgatar um passado doloroso.

No oposto geográfico, Lourença é uma mulher destruída por duas tragédias: a perda de uma filha e ter sucumbido ao discurso religioso evangélico. A combinação fez Lourença perder as referências, migrar para a ilusão e dar fim à segunda filha. Há algo que faz estas duas personagens dialogarem, talvez atadas pela fatalidade inevitável num Brasil violento, que não soube encarar a tragédia da escravidão e enfrenta uma desigualdade mortal.

Cuandu é protagonista de “Louças de família”, da gaúcha Eliane Marques, e Lourença é a mãe desesperada de “Caminhando com os mortos”, de Micheliny Verunschk, dois romances que falam de um Brasil duro, real e atual.
 
Micheliny Verunschk, escritora

Em 'Caminhando com os mortos', Micheliny Veruschk narra o sofrimento de Lourença, vítima da violência imposta pela religião

Instagram/reprodução

'É uma questão que vai atravessar minha narrativa em prosa, esse lugar da intolerância para com o outro'

Micheliny Verunschk, escritora

 

NORTE: BARBARIDADE E RELIGIÃO

“Caminhando com os mortos” é o último volume da trilogia iniciada em 2014 com “Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida”, seguido por “O som do rugido da onça” (2021), vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance.

Escrito durante a pandemia, traz a história da mãe que, anos depois de perder o bebê devorado por uma porca em um acidente terrível, decide queimar a filha que lhe resta para dela extrair o demônio. Convencida pelo pastor e pelo discurso evangélico de que a moça retornara da cidade grande possuída, Lourença acredita participar apenas de um exorcismo, mas Celeste acaba morta.

Dois episódios do Brasil real e contemporâneo motivaram a pernambucana Micheliny Verunschk a escrever o romance que encerra a trilogia. Um deles foi o assassinato de um amigo no interior de Pernambuco, episódio da homofobia que faz vítimas com recorrência.

“Ele foi assassinado queimado na minha cidade, e não é a primeira vez. Venho do interior, de Arco Verde, cidade maravilhosa, muito pujante culturalmente, mas onde ocasionalmente acontecem barbaridades, como no resto do Brasil”, conta.

A história de Fabiane Maria de Jesus, vítima de fake news, linchada após ser erroneamente apontada como sequestradora de crianças no Guarujá (SP), completou a motivação de Micheliny para tecer a trejtória de Lourença e Celeste.

“Nesses lugares da violência que assola o Brasil, uma violência relacionada a preconceitos religiosos, à homofobia, ao exercício mesmo da alteridade é que nasce 'Caminhando com os mortos'”, ressalta a autora.

Celeste já está morta quando começa a narrativa. Depois de passar anos fora do Tapuio, a moça volta para casa com o filho a tiracolo e a desenvoltura de quem precisou se virar na metrópole. De lá, sustentou os pais e fez a própria vida. Mas não é a mãe de outrora que encontra, e sim a mulher convencida de que um pastor duvidoso é a própria voz divina.

Com ritmo que tem algo de detetivesco, mas também profundamente sombrio e cru, a autora conduz o leitor pelo interrogatório de Lourença e do marido, pelas revelações sexuais em relação ao pastor e pela agonia final de Celeste.

“O livro trata desse lugar violento da religião, mais especificamente do discurso evangélico, mas sem isentar a Igreja Católica”, explica a autora, que situa “Caminhando com os mortos” em um projeto literário bem definido.

“A gente tem um arco aí, não temático, mas rizomático. Nos três livros da 'Trilogia infernal', tenho o projeto literário de pensar o Brasil a partir de suas violências fundantes. A violência colonial, a de cunho religioso e a violência de Estado, agrária, contra a mulher”, diz Micheliny Verunschk.
 
Eliane Marques, escritora

Em 'Louças de família', Eliane Marques revela a saga de Cuandu, bisneta de escravizados obrigada a lidar com a crueldade do apagamento dos negros

Instagram/reprodução

'O que é herdado pode ser quebrado e engendrar outra dinastia, louça é permanência e também ruptura'

Eliane Marques, escritora

 

 

SUL: ESCRAVIDÃO E REVOLTA

“Louças de família” também é filho da pandemia. O romance de Eliane Marques começou a tomar forma no final de 2019. Auditora do Tribunal de Contas do Estado, ela escreve poesia há anos. Há duas décadas mantinha o blog “Nunca fui disso”, no qual publicava histórias em prosa.


“Quando a pandemia nos atinge, como a maioria das pessoas, fui pensar no sentido da minha vida. Havia uma espada sobre nossa cabeça e, como escritora, queria fazer algo que chegasse a um público maior. Além disso, estavam me perturbando histórias que ouvia da minha avó, das tias, das vizinhas”, conta. “Decidi escrever essas histórias. Eram histórias soltas, esparsas. Quem as uniu foi essa personagem atrevida, ressentida, um tanto malcriada chamada Cuandu.”

Cuandu estrutura a trama, mas está pelas beiras. É das avós, tias, mães, primas e irmãs que ela fala. “Louças de família” é uma metáfora, a condensação dessas mulheres de cuja dinastia Eliane faz parte.

“Essa dinastia vinha passando de mão em mão, como louças passam de mão em mão ou são herdadas em famílias brancas que têm posses. Mas o que é herdado pode ser quebrado e engendrar outra dinastia, louça é permanência e também ruptura”, avisa a autora.

A narrativa de Eliane é especial. Cuandu usa um léxico de palavras criadas por ela mesma, fruto de sobreposições, para situar o cotidiano dos personagens familiares que a rodeiam. O pai violento é expaimeu. Minhamãe minhatia, assim juntas, denominam duas das protagonistas do romance, que tem um lado lírico, apesar da história trágica.

“Na tradição de matriz africana, há várias palavras unidas, eu trouxe isso para o livro”, explica a autora. “É uma tradição, mas também diz respeito ao sentimento de posse que temos em relação a nossas parentas. Então, a escrita de tudo junto fala dessa coisa empossada que temos dos nossos familiares, de como eles vivem em nós.”

Duas famílias são observadas por Cuandu. A sua e a dos brancos para os quais suas parentes trabalharam. Nas duas a violência está presente e provoca o apagamento, sobretudo das mulheres.

“Essa dinâmica é marcada por um sentido do desaparecimento. O pai pensado idealmente pela Cuandu desaparece em meio à violência cotidiana, a mãe não pensada como ideal também desaparece em meio à violência cotidiana. Essas relações familiares provocam um apagamento”, explica a autora, que gosta da metáfora que une memória e ancestralidade com as louças que passam de mãos e mãos, mas também se espatifam e se perdem.

Três perguntas para

Micheliny Verunschk

romancista


“Caminhando com os mortos” aborda temas relacionados à morte e ao luto. Por que você escolheu explorar esses temas em seu livro?
É um livro muito duro, uma história muito dura, tem muitos pontos de partida e muitas chaves de leitura. Esse luto mal vivido dessa mãe, de Lourença, e de como uma tragédia como a dela, de perder uma filha pequena e não ter amparo, acolhimento psicológico, não ter algo que a console, como isso acaba detonando uma série de acontecimentos que vão desembocar numa tragédia. Para escrever esse livro, precisei me distanciar um pouco dos fatos que me dizem respeito para poder trabalhar os temas de uma forma que dissesse respeito ao coletivo, mais do que a mim.

É um universo diferente de “O som do rugido da onça”, mas, ao mesmo tempo, muito parecido: as raízes, a chegada de outra cultura, o roubo dessas raízes, o outro que rouba as referências.
Acho que sim, é uma questão que vai atravessar minha narrativa em prosa, esse lugar da intolerância para com o outro. O outro não pode exercer a sua existência em sua plenitude por conta da ideologia, ou da religião, ou da ciência, de quem detém a posse da terra. É, de fato, uma questão.

A presença de temas que dizem respeito à construção da identidade, ao olhar não colonizado sobre a história, a temáticas ligadas ao campo e à violência estão mais frequentes na ficção brasileira?
A ficção brasileira vive momento ímpar em dois lugares. Um é o dessas histórias, desses personagens e narradores que dizem respeito a nossa construção enquanto povo. De outro lado, a gente tem também um leitor mais atento a isso. Então, acho que é uma via de mão dupla. A literatura vai se escrevendo e puxando seus leitores. Então, tem um diálogo aí entre o que está se fazendo e um olhar mais atento. Essas narrativas talvez estejam de fato prontas para esse momento, ou, pelo menos, se não prontas, preparando esse momento de chegar afetivamente ao público, de as pessoas reconhecerem esses personagens, esses lugares, essas histórias.


Capa do livro Caminhando com os mortos

Capa do livro Caminhando com os mortos

Reprodução
“CAMINHANDO COM OS MORTOS”

• De Micheliny Verunschk
• Companhia das Letras
• 144 páginas
• R$ 59,90
 
 
 
 
 
 
 
 

Capa do livro Louças de família

Capa do livro Louças de família

Reprodução
“LOUÇAS DE FAMÍLIA”

• De Eliane Marques
• Autêntica Editora
• 278 páginas
• R$ 53,90