Atriz Keri Russell com a cara assustada está encostada a uma árvore. Do outro lado do tronco, imenso urso negro olha para cima, em cena do filme O urso do pó branco

A atriz Keri Russell e o urso que não mereceu o tratamento como personagem por parte da diretora Elizabeth Banks

Universal Pictures/divulgação

Lançado no Brasil há pouco mais de um ano, o livro “Escute as feras” nasce do encontro da antropóloga francesa Natassja Martin com um urso na Sibéria. Ela lembra os sons ouvidos nos instantes em que parte de seu rosto permaneceu dentro da boca do animal e narra as peripécias que viveu dali em diante.

“À medida que ele se distancia e que eu volto a mim, nós nos recobramos um do outro”, escreve Martin. “Ele sem mim, eu sem ele: conseguir sobreviver apesar do que ficou perdido no corpo do outro; conseguir viver com aquilo que nele foi depositado”, completa.
 
Se a narrativa impressiona tanto, é, entre outros motivos, porque a antropóloga olha para o animal não como oponente, mas como um semelhante, ser que compartilhou com ela o mesmo acontecimento fundamental.
 
 

Animais incompreendidos

Já Elizabeth Banks opta por um partido completamente diferente. Ela narra o confronto entre animal e humanos sob a lente da mais completa incompreensão. O filme conta a história real de um carregamento de cocaína que cai acidentalmente na Geórgia, dentro da floresta de Chattahoochee, nos Estados Unidos, território de ursos negros de porte médio.

Os demais ingredientes da trama são os personagens – um casal de escandinavos, crianças que matam aula para ver a cachoeira secreta, traficantes na tentativa de recuperar a carga perdida, a guarda-florestal, adolescentes desencaminhados e um policial.

A ursa que encontra o pacote de pó branco meio aberto e experimenta em seu corpo os efeitos da substância não chega a se constituir como personagem – esta é uma carência grave do filme. Na maior parte do tempo, os animais são apresentados como alteridade radical, e nada além disso.

Outro grande problema reside na obscenidade com que são retratados os ataques, em cenas frontais de mutilação e muito sangue. Diante delas, surge na plateia um riso constrangido, nervoso, praticamente arrancado a fórceps. Há no filme o desejo de inserir-se no cinema de gênero, na escola do gore e do filme B. Mas não funciona.
 

Já no início, quando o casal escandinavo vê a ursa através da lente de sua câmera, vem à mente a lembrança de “O homem urso”, de 2006.

O brilhante documentário de Werner Herzog se vale das imagens dos ursos já filmados por Timothy Treadwell, que acreditava viver em comunhão com os animais –  até se tornar presa ele próprio, num período de seca e poucos peixes.

A câmera de Tim estava ligada, com a lente tampada, no momento do ataque. A inteligência da montagem de Herzog consistiu em não usar o áudio, terrível demais.

As escolhas de “O urso do pó branco” são, para dizer o mínimo, bem menos elegantes. De fato, Elizabeth Banks, dona de extensa trajetória como atriz, está longe de ser grande cineasta.  

“O URSO DO PÓ BRANCO”

• EUA, 2023. Direção de Elizabeth Banks.
• Com Keri Russell, O'Shea Jackson Jr. e Ray Liotta.
• Em cartaz nas salas das redes Cinemark, Cineart e Cinépolis