Altar da Igrejinha de Brasília, com as 12 banderinhas de Volpi de cada lado

Altar da Igrejinha de Brasília, com as 12 banderinhas de Volpi de cada lado

Arquivo Público/reprodução

'O que Volpi ofereceu não foi entendido. Acho que ninguém se preocupou em ler, a reação foi à bandeirinha. Ele foi lido como ingênuo, profano, porque usou bandeirinhas de São João, infantil. Mas Volpi pega a simbologia católica e faz dela uma nova ideia'

Graça Ramos, historiadora


Muitos enigmas cercam os painéis projetados por Alfredo Volpi para as paredes da Igreja Nossa Senhora de Fátima, conhecida como a Igrejinha de Brasília. O artista criou cinco esboços para afrescos da obra projetada por Oscar Niemeyer, que escolheu três. Sabe-se que, com certeza, que duas paredes do prédio em formato triangular acabaram pintadas. O que teria havido com a terceira? Foi pintada e apagada? Ou nunca chegou a ser feita?

Este é um dos primeiros mistérios que cercam a obra. Com essa interrogação na cabeça, a historiadora de arte e pesquisadora Graça Ramos iniciou a investigação que resultou no livro “O apagamento de Volpi – Presença em Brasília”, publicado pela Tema Editorial.
 
Niemeyer escolheu três composições, mas os registros levam à realização de apenas dois painéis. “Acho que a terceira parede não foi pintada, porque, nas fotos do casamento inaugural da igreja, ela não aparece pintada, nem nos filmes da inauguração”, diz a autora.

“Nas matérias iniciais, fica claro que ele foi contratado para pintar duas paredes. Tem muitos questionamentos que me fiz ao longo da pesquisa, não tenho a posição de senhora absoluta do saber. O importante é a gente se dedicar a tentar entender”, afirma Graça.

 

• Leia também: O legado de Oscar Niemeyer a Belo Horizonte

Volpi se baseou na simbologia católica para criar painéis

Outro mistério, que na verdade está mais para lacuna, é a falta de interpretação da obra criada ali por Volpi por parte da literatura ligada à história da arte brasileira. “O apagamento de Volpi” tenta preencher esse vazio com análise bastante embasada dos desenhos do artista, que não era católico, mas, de certa forma, se preocupou em estudar a simbologia religiosa ao conceber os painéis.

Na parede esquerda de quem está de frente para o altar, formas retangulares finalizadas com um vértice superior lembravam, de acordo com a pesquisa de Graça, portas com arcos.

Sobre elas, pairavam grupos de bandeirinhas, as mesmas que se repetiam no painel ao fundo, este destinado ao altar e com a imagem de Nossa Senhora a flutuar ao meio.
 
“O que Volpi ofereceu não foi entendido. Acho que ninguém se preocupou em ler, a reação foi à bandeirinha. Ele foi lido como ingênuo, profano, porque usou bandeirinhas de São João, infantil. Mas Volpi pega a simbologia católica e faz dela uma nova ideia. Ele se apropria de símbolos católicos, faz uma codificação e ninguém soube ler isso”, lamenta Graça Ramos.
 
Dos três esboços escolhidos por Niemeyer, em um deles Volpi trabalhou com a lógica do ternário para a disposição das bandeirinhas, que acabam por somar 33, número importante para a narrativa católica. Ao realizar a obra, no entanto, ele abandona a sequência de números primos e pinta 37 bandeirinhas.
 
Pintor Volpi ao lado de quadro mostrando bandeirinhas

Volpi levou suas bandeirinhas para Brasília. Artista pesquisou a iconografia católica e, nas obras da Igrejinha, se inspirou também em símbolo cristão usado nas igrejas primitivas

Romulo Fialdini
 
 
Outra pergunta sobre a qual a historiadora reflete durante a pesquisa é o porquê desta decisão. Ao lado da imagem da santa, que levita ao centro do altar, há 12 bandeirinhas de cada lado, número associado a Nossa Senhora pelo catolicismo.
 
“Na parede que dá para a 308 (a igreja fica na Asa Sul EQS/307/308), interpreto que ele começa com três bandeiras como referência às três crianças que veem a santa”, explica Graça, referindo-se às aparições de Nossa Senhora de Fátima em Portugal, em 1917.

O número de bandeiras aumenta, na interpretação da autora da pesquisa, numa referência à ampliação do círculo de pessoas que teriam presenciado a aparição, para depois retornar às três crianças.

Obra de Volpi foi destruída em 1962

A reação aos painéis foi tão ruim que eles acabaram apagados em 1962, quatro anos depois de serem criados. “A rejeição das pinturas do Volpi mostra o primeiro choque cultural de Brasília. É como se a cidade saísse da prancheta e enfrentasse o teto do real”, afirma Graça Ramos.

“É preciso contextualizar: era uma cidade incipiente, com boa parte da população sem conhecimento de arte, sem formação cultural que permitisse fazer uma leitura diferenciada, e essa má vontade com a pintura foi cristalizada”, analisa. “Me preocupei em documentar essa perda porque acho que a cidade precisa tomar consciência do tamanho dela. Tínhamos uma igreja com uma coisa nova para o Volpi, de simbolizar a transcendência.”

Graça elabora sua interpretação da parede não pintada, ou de um dos esboços propostos, partindo de imagens e também de um texto de Mario Pedrosa, um dos poucos que escreveu sobre a obra, ainda no final dos anos 1950.

Pedrosa, um dos críticos de arte mais respeitados do Brasil, afirma que os desenhos traziam um anjo, um boi, um leão e uma águia, todos alados, que corresponderiam aos evangelistas.

“Acredito que o Volpi, que não era religioso nem crente, conhecia um pouco da tradição católica, e propõe uma forma muito próxima à imagem que remete ao que os primeiros cristãos faziam: o tetramorfo, símbolo cristão usado nas igrejas primitivas”, diz Graça.

“Defendo que, de certa forma, o que ele estava propondo ali, ainda que de forma alegórica e livre, era uma aproximação à própria tradição religiosa, mas em linguagem moderna”, explica. 

Estes seres aparecem na iconografia cristã antiga e foram, mais tarde, associados aos evangelistas, os apóstolos que escreveram os evangelhos.

Em busca da terceira parede

Boa parte da pesquisa de Graça Ramos foi realizada durante a pandemia. Muitas entrevistas por vídeo e consultas a hemerotecas digitais fizeram parte do processo, que esbarrou em vários desafios.

“Tentar achar uma imagem da terceira parede, porque eu tinha dúvidas se tinha sido pintada ou não, foi o mais difícil. Perdi muito tempo nisso, fiquei obsessiva, só pensava nisso, sonhava com isso”, conta.

Em alguns arquivos, ela não conseguiu respostas, especialmente o de fotógrafos e cineastas que passaram por Brasília entre 1956 e 1961 e poderiam, eventualmente, ter registrado os painéis.

“Escrevi para vários arquivos, e, por incrível que pareça, não recebi nenhum retorno. Aí pensei: tenho de acreditar no que vejo, e o que vejo em filmes e fotos é que essa parede não foi pintada. Mas se tivesse sido pintada, ficaria linda!”, conta. “Não tive acesso aos arquivos da Igreja. A Igreja não permitiu.”
 
A autora encontrou apenas um texto, assinado pelo então arcebispo de Belém, Dom Alberto Ramos, que descreve a obra como “as infelizes pinturas de Volpi”. Porém, ele não as interpretou, pondera Graça.

Outro desenho

Em 2009, os painéis há décadas perdidos foram restaurados, mas com desenho novo assinado pelo artista Francisco Galeno, convidado para recriar a obra pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pelo tombamento da Igreja Nossa Senhora de Fátima.
 
A reação dos brasilienses continuou negativa. No entanto, a obra foi mantida e protegida. “Em 1960, a democracia estava começando a se fragilizar. Em 2009, as instituições estavam mais fortalecidas. Hoje, há retrocesso maior que o de 1960, porque a destruição, agora, é total”, compara Graça, referindo-se ao ataque do patrimônio público em Brasília por parte dos protagonistas dos atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro.
 
Detalhe de painel de Portinari dedicado a São Francisco de Assis traz um cachorro como detalhe

Portinari levou cachorrinho com São Francisco para a Igrejinha da Pampulha, mas foi censurado por Dom Cabral

Reprodução

Portinari e a Igrejinha da Pampulha também foram alvo de censura

Nos anos 1940, outra “Igrejinha” de Oscar Niemeyer foi alvo de polêmica: o templo dedicado a São Francisco de Assis erguido na Pampulha, em Belo Horizonte. Pela primeira vez no país, utilizaram-se traços e curvas em concreto em uma edificação católica brasileira.

O artista plástico Candido Portinari foi encarregado de criar o painel de São Francisco no altar principal, a Via Sacra e o painel externo em azul e branco com cenas da vida do santo.

Concluída em 1945, a igreja não foi consagrada pelo arcebispo de Belo Horizonte, dom Antônio Santos Cabral, que criticou a obra modernista. “Para um templo, aquilo não fica bem. Não podemos desvirtuar a obra do Senhor, nem a igreja é lugar para experiências materialistas, embora artísticas”, afirmou.

Juscelino Kubitschek, que encomendara o complexo arquitetônico da Pampulha, revelou, anos mais tarde, que Dom Cabral lhe disse: “Um cachorro atrás do altar, senhor prefeito. É inconcebível”. O arcebispo tachou a igreja de “fantasia” de artistas. “Extravagâncias que podem ficar muito bem nos salões de arte”, afirmou.

A primeira missa só seria realizada ali 14 anos depois, em 11 de abril de 1959, celebrada pelo arcebispo Dom João de Resende Costa com a presença de JK, já presidente da República. E o cachorrinho “assistiu” a tudo atrás do altar.
Também pudera. Três anos antes, o papa João XXIII havia manifestado interesse em expor no Vaticano as criações de Candido Portinari para a Igrejinha da Pampulha... (Da redação)
 

Capa do livro O apagamento de Volpi traz ilustração que remete ao interior de igreja

Capa do livro O apagamento de Volpi traz ilustração que remete ao interior de igreja

Tema Editorial/reprodução
"O APAGAMENTO DE VOLPI - PRESENÇA EM BRASÍLIA"

De Graça Ramos
Tema Editorial
238 páginas
R$ 65