A atriz Zar Amir Ebrahimi, sentada, em cena de 'Holy Spider'

A atriz Zar Amir Ebrahimi interpreta jornalista que investiga o caso do serial killer real, que foi celebrado por matar mulheres no Irã, em "Holy spider", pré-selecionado ao Oscar de Filme Internacional

O2play/divulgação

Entre agosto de 2000 e julho de 2001, Saeed Hanaei vagou pelas ruas de Mexede, conhecida como a capital espiritual do Irã, em busca de mulheres. Não qualquer mulher, mas aquelas com cores fortes cobrindo lábios e pálpebras e com fios de cabelo vazando do hijab.

Ele atraía as desconhecidas para sua casa, as estrangulava e depois se livrava de seus corpos. Foram 16 mulheres – prostitutas ou usuárias de drogas – vítimas do episódio, que ficou conhecido como os Assassinatos da aranha.

Inspirado pelo modus operandi do serial killer, o termo agora batiza "Holy spider" – algo como aranha sagrada –, filme que chega aos cinemas nesta quinta-feira (19/1), antes de estrear na plataforma Mubi, que o arrematou após a bem-sucedida passagem pelo Festival de Cannes, de onde o longa saiu com o prêmio de atuação feminina.

Como o título evidencia, a série de assassinatos tem um fundo religioso. Preso, Hanaei, seguidor fervoroso do islã, alegou que estava fazendo um favor a Mexede ao "limpar" suas ruas do "pecado" e da "corrupção moral", numa espécie de cruzada pela fé. E muita gente comprou sua justificativa.

Dois atos

Líderes religiosos, a mídia conservadora e uma fração significativa da população local celebraram as mortes e pressionaram publicamente o sistema judicial iraniano. É por isso que "Holy spider" se divide em dois atos – um mais óbvio, que segue a cartilha do thriller policial ao acompanhar os crimes, e outro bastante específico, sobre o debate fervoroso e polarizado depois da prisão.

"Esta é uma história com muitas camadas, que cristalizam tudo o que há de errado com a sociedade iraniana. Os assassinatos em si não têm nada de especial, há certa banalidade neles. Mas o que está no entorno do assassino e o respeito que ele inspirou, isso, sim, é fascinante", diz o diretor Ali Abbasi, que colecionou elogios e prêmios com o estranhíssimo "Border", de 2018.

Iraniano, Abbasi migrou para a Europa no início dos anos 2000 para estudar. Da Suécia, foi para a Dinamarca, onde reside e faz seus longas – "Holy spider" é o escolhido do país para tentar uma vaga no Oscar de filme internacional e foi pré-selecionado pela premiação.
 
 

Não é fácil tocar um projeto sensível como esse no Irã. O cineasta bem que tentou gravar por lá, mas acabou recriando as ruas de Mexede na Jordânia, após a lentidão para aprovarem as filmagens. Com a estreia de "Holy spider" em Cannes, as reportagens daqueles que cobriam o festival foram suficientes para enfurecer o governo iraniano, que disse que o filme insultava a fé muçulmana – mesmo sem que seus representantes tivessem comparecido a alguma sessão.

O incômodo cresceu e trouxe consigo ameaças de morte depois da cerimônia de premiação francesa. Zar Amir Ebrahimi, ao vencer o troféu de atuação feminina, foi novamente tragada pelo turbilhão de assédio moral que a expulsou do Irã há 15 anos.

No auge da popularidade em seu país natal, a atriz teve um vídeo de sexo vazado. Banida pelo governo de aparecer em filmes ou séries por uma década e sob risco de ser presa num país aterrorizado por sua polícia da moralidade, ela se exilou na França.

Em "Holy spider", ela encarna a parte mais ficcional da trama. É por meio de sua personagem, uma jornalista decidida a investigar o caso do serial killer e a expor a misoginia ao seu redor, que adentramos o submundo de cinema noir pelo qual o filme trafega.

É irônico pensar que a premiada em Cannes, originalmente, não pretendia protagonizar "Holy spider". Ela entrou no projeto como produtora e diretora de elenco, mas depois que a atriz escolhida desistiu do papel em cima da hora, por medo dos desdobramentos políticos, ela assumiu a missão.

"Eu me acostumei com o governo do Irã, ninguém os leva a sério mais", diz sobre a indiferença com a qual vem lidando com os ataques de autoridades e civis. Devido à trajetória artística e política, enquanto ativista, Ebrahimi foi eleita no ano passado, pela BBC, uma das 100 mulheres mais inspiradoras do mundo.

Protestos e hijab

Em relação aos protestos que tomaram o país nos últimos meses, após a morte de Mahsa Amini, espancada e assassinada pela polícia da moralidade por usar o hijab incorretamente, ela se sente otimista.

"Desta vez é diferente, porque as pessoas perceberam que não dá para mudar alguns aspectos do sistema – é preciso mudar tudo. Enquanto este governo continuar, não haverá liberdade. O uso obrigatório do hijab não é o principal problema do país, mas as pessoas perceberam que, se não pudermos nem decidir como nos vestir, não haverá liberdade nenhuma. É uma revolução em curso."

Abbasi, ao também ser confrontado com a ebulição social de seu país, é mais direto. "O que se diz sobre um governo que atira numa criança de 10  anos com um AK-47? Não há muito a dizer", afirma, em alusão às mortes de menores de idade em protestos no Irã.

“HOLY SPIDER”

(Dinamarca, Alemanha, Suécia, França, 2022) Direção: Ali Abbasi. Com Zar Amir-Ebrahimi, Mehdi Bajestani e Forouzan Jamshidnejad. Classificação: 18 anos. Estreia nesta quinta-feira no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 14h e 18h30)