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Estado de Minas MÚSICA

Criolo deixa a raiva fluir, mas alimenta a esperança em "Sobre viver"

Depois de seu elogiado disco de samba, o rapper retorna ao gênero que o consagrou com um álbum que fala de sua recusa em aceitar "a morte matada"


15/05/2022 04:00 - atualizado 14/05/2022 21:24

foto em p&b com close no rosto de Criolo, que sorri
Criolo renova parceria com Milton Nascimento em uma faixa do novo disco (foto: Helder Fruteira/Divulgação )

Criolo não é o tipo de artista que está sempre compondo. Antes de "Sobre viver", seu quinto álbum, recém-lançado nas plataformas digitais, ele passou um bom tempo sem escrever rap. "Nos últimos três anos, antes da pandemia, eu tive um período de não escrever nada de nada", conta. 

"Acho que os sentimentos me visitavam, mas não desaguavam em rap. Sentia que eles não estavam à altura do rap. E quando o sentimento me visita, mas não deságua, eu não forço e sofro as consequências disso."

Uma delas foi a forma como o gênero ficou de lado na carreira do artista. O último trabalho dele no estilo, "Convoque seu buda", é de 2014. Depois disso, Criolo se converteu ao samba com o elogiado álbum "Espiral de ilusão" (2017) e, desde então, trabalhou singles avulsos, como  "Boca de lobo" (2018) e "Etérea" (2019), mas nunca chegou a sinalizar que estava produzindo um álbum cheio.

Isso mudou em 2020, já durante a pandemia da COVID-19, quando o artista se aproximou ainda mais da dupla de música eletrônica Tropkillaz, formada pelos DJs e produtore

"Os canais da minha produção começaram a desentupir a partir da aproximação com eles, muito por conta das músicas 'Sistema obtuso' e 'Cleane'. A convivência criou alguma coisa dentro de mim que as emoções voltaram a desaguar em forma de rap. Estar com eles, numa espécie de irmandade que a gente vem construindo desde 2013, quando a gente se conheceu, fez com que eu me sentisse extremamente acolhido", ele conta.

"Cleane" é um dos três singles que Criolo lançou entre 2020 e 2021. A música presta homenagem à irmã do artista, Cleane Gomes, que morreu, aos 39 anos, vítima da COVID-19, em junho do ano passado. Assim como "Sistema obtuso" (2020) e "Fellini" (2021), ela não faz parte de "Sobre viver", mas a sua motivação, ou seja, o luto e a indignação, estão bastante presentes no disco.  

Nos últimos três anos, antes da pandemia, eu tive um período de não escrever nada de nada. Acho que os sentimentos me visitavam, mas não desaguavam em rap. Sentia que eles não estavam à altura do rap. E quando o sentimento me visita, mas não deságua, eu não forço e sofro as consequências disso

Criolo, cantor e compositor

 

SOFRIMENTO

"A pandemia criou um momento muito fúnebre e triste para mim. Eu olhava ali minha mãe e minha irmã cheias de medo de pegar o vírus e, depois que a Cleane pegou, a gente acompanhou todo o sofrimento. É muito doloroso passar por todo esse processo de ter um ente querido na UTI. Eu via diariamente a dor e o sofrimento da minha família", ele conta.

Esses sentimentos aparecem em "Pequenina", faixa produzida somente por Criolo, com arranjo de Jaques Morelenbaum e participação da mãe do rapper, Maria Vilani, além do funkeiro MC Hariel e da cantora Liniker. "Cuidar da minha irmã/ Agora só em prece/ Ela não está mais aqui/ É que esse mundo não te merece", diz um dos versos.

"A gente tem que reagir", Criolo afirma. "Não dá, a gente não pode nunca mais deixar, na história deste país, uma pandemia ou qualquer outro problema dessa magnitude e natureza ser conduzido da forma como foi. A gente tem que reagir. E o que é mais forte na minha vida do que o rap para me dar forças para reagir? Só o amor da minha mãe."

Ao longo das 10 faixas que formam o trabalho, Criolo faz uma anatomia de sua própria revolta e transmite uma mensagem de amor e esperança. Os grandes temas de sua produção continuam sendo a injustiça social e o racismo estrutural, mas o rapper joga nesses assuntos a luz de quem acredita que dias melhores virão.

Não dá, a gente não pode nunca mais deixar, na história deste país, uma pandemia ou qualquer outro problema dessa magnitude e natureza ser conduzido da forma como foi. A gente tem que reagir. E o que é mais forte na minha vida do que o rap para me dar forças para reagir? Só o amor da minha mãe

Criolo, cantor e compositor

 

CAOS

Uma das provas disso é que o disco, a princípio, se chamaria "Diário do Kaos" - estilizado com "K", em referência ao nome de batismo do rapper, Kleber. A mudança foi feita porque o artista deseja que o trabalho também seja visto como uma forma de superar os problemas que ele mesmo apresenta.

"Muita gente não sabe o que é o Brasil e quais são os verdadeiros problemas que as pessoas enfrentam. O caos que está instaurado aqui; existe antes de mim, dos meus pais e dos meus avós. A pandemia agravou esse caos e apresentou para quem não tinha ideia do que é o Brasil real o tamanho do que é esse descaso com o nosso povo. O caos existe. Fato. Mas tem saída", ele afirma.

"No Brasil, a gente não vive. Viver é plenitude. É dormir tranquilo sem qualquer tipo de insegurança em relação ao amanhã. Aqui a gente sobrevive. O caos existe e a gente é obrigado a seguir em frente como se nada tivesse acontecido", acrescenta.

A partir desse tipo de pensamento que Criolo escreveu, por exemplo, a música "Diário do Kaos", que abre o disco com versos emblemáticos: "Isso aí não vai conseguir nada, mano/ Isso aí, esse sonho de cantar rap/ Isso aí não vai conseguir nada/ Dar mó vergonha pra mãe dele, pro pai dele, entendeu". Com ela, o artista reitera sua crença no gênero com o qual se consagrou.

No Brasil, a gente não vive. Viver é plenitude. É dormir tranquilo sem qualquer tipo de insegurança em relação ao amanhã. Aqui a gente sobrevive. O caos existe e a gente é obrigado a seguir em frente como se nada tivesse acontecido

Criolo, cantor e compositor

 

DISCRIMINAÇÃO

No álbum, há músicas como "Pretos ganhando dinheiro incomoda demais" e "Moleques são meninos, crianças são também", que abordam diretamente questões relativas à discriminação racial; e músicas que tratam da religão como tema, caso de "Ogum ogum" (com Mayra Andrade, cantora nascida em Cuba e criada em Cabo Verde) e "Yemanjá chegou".

Em "Me corte na boca do céu, a morte não pede perdão", Criolo apresenta um jeito de cantar melódico em clima de Carnaval fúnebre. A música ganha ainda mais profundidade por conta da participação de Milton Nascimento, com quem o rapper já trabalhou anteriormente no EP "Existe amor" (2020).

"Quem planta amor aqui vai morrer", que remete A temas afro-brasileiros, é dedicada a ativistas nacionais como o seringueiro Chico Mendes (1944-1988) e a vereadora Marielle Franco (1979-2018), ambos assassinados. Já a derradeira "Aprendendo a sobreviver" é a síntese do discurso do álbum, na qual o artista versa sobre as graças e as desgraças da vida.

"Os refrões e os nomes das músicas foram pensados para criar, de modo afetuoso, respeitoso e carinhoso, uma abertura ao diálogo. Abrem uma porta. O rap abre uma comporta de emoções que podem alimentar o diálogo entre as pessoas", ele explica. 

O grande destaque do disco é "Sétimo templário", na qual Criolo mostra que não abandonou o flow adotado no início da carreira. Nessa música, ele canta sobre o governo atual, sem citar diretamente seu dirigente. A música trata do desmatamento da Amazônia e do genocídio indígena. "Um presidente que diz plau depois pergunta 'isso é matança?'", diz um dos versos.

Questionado se alimenta algum tipo de esperança em relação à eleição presidencial de outubro próximo, o artista afirma que sim e deposita esse sentimento principalmente nas crianças e na juventude, que, segundo ele, "não deixam a peteca cair".

"É muito dramático porque talvez mude a pessoa que ali está por conta do preço da gasolina e não pelas mortes. É duro. É muito duro. Os números falam de mais de 600 mil pessoas que se foram, mas será que eles abrangem todo mundo mesmo? Mas o que se fala é que a gasolina aumentou de novo. Diante da banalização da vida, você aceita a morte, a morte matada. E a gente segue aprendendo a sobreviver", ele afirma.
Capa do disco 'Sobre viver'
(foto: Oloko Records/BMG)

"SOBRE VIVER"
• De Criolo
• 10 faixas
• Oloko Records/BMG
• Disponível nas plataformas digitais 


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