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Estado de Minas REPORTAGEM DE CAPA

Mudança com responsabilidade

Especialistas garantem que há toda uma avaliação multidisciplinar antes do diagnóstico de transgênero para garantir mais segurança ao processo ao qual o jovem se propõe a passar


postado em 08/03/2020 04:00

Ailin Cabral
 
 
(foto: Open Clipart Vectors/Pixabay)
(foto: Open Clipart Vectors/Pixabay)

O processo de transição tem etapas. A primeira delas é o bloqueio puberal ou hormonal, feito nos pré-adolescentes e adolescentes. O ideal é que seja realizado antes de a puberdade se iniciar, impedindo, assim, o aparecimento dos caracteres sexuais secundários do sexo biológico do jovem, como a barba ou o crescimento dos seios.

Quanto mais tarde é feito o bloqueio, mais chances a pessoa tem de desenvolver características físicas típicas do gênero no qual nasceu e não se identifica. “Quanto mais velha a pessoa, mais difícil é a transição em termos de passabilidade. Quanto antes interferir, melhor”, explica Luiz Fernando Marques, médico de família e comunidade no Adolescentro de Brasília.

Tanto Luiz quanto o psiquiatra Alexandre Saadeh deixam claro que, em nenhum momento, duvidam da criança ou do jovem que se identifica como transgênero, mas existe uma avaliação multidisciplinar para que se tenha certeza do diagnóstico, garantindo, assim, mais segurança ao processo pelo qual o jovem se propõe a passar.

Alexandre esclarece que é necessário estar atento e acompanhar a criança, observando como e com o quê ela se identifica e deixá-la seguir o próprio curso de autodescoberta. “É importante acompanhar e estimular que a criança revele o que se passa dentro dela, mas não podemos ir na frente da criança e definir se ela é cis, trans, homo ou heterossexual”, completa.

Algo que comumente ocorre, tanto por parte das famílias quanto das próprias crianças e jovens, achar que é homossexual antes de se perceber trans. Quando começa a chegar à puberdade e o corpo inicia a mudança, o jovem tende a experimentar um sofrimento intenso com suas características físicas. “Quando entramos com o bloqueio, damos um tempo a mais para que aquele jovem se descubra e se conheça.”

Entre as vantagens do processo de transição iniciado na adolescência está, justamente, o fato de que o bloqueio hormonal é reversível e não causa danos ao desenvolvimento. Alexandre explica que, caso a criança ou o jovem desista durante o processo, não haverá danos. Parando com o bloqueio, ele passará pelo processo de puberdade do corpo em que nasceu, sem prejuízo ao seu desenvolvimento ou ao crescimento.

FACILITADORES

No Brasil, apenas três lugares começam o processo antes dos 18 anos – além do ambulatório da USP, um projeto vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul e outro à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Com a nova determinação do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em 9 de janeiro, as terapias hormonais poderão ser iniciadas, de forma geral, a partir dos 16 anos. Os atendimentos realizados são baseados em projetos de pesquisa, de acordo com determinações do CFM. O acompanhamento inclui as especialidades de psiquiatria, psicologia, endocrinologia, pediatria generalista, fonoaudiologia, enfermagem e serviço social. Os protocolos se baseiam em pareceres do CFM e de pesquisas feitas em outros países, como Canadá, Holanda, Estados Unidos e Inglaterra.


(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press )
(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press )

Caminho de autodescoberta
Desde pequena, a estudante Samantha Carvalho Gregório, hoje com 17 anos, se identificava com temas e objetos relacionados ao universo feminino. Sentia-se livre e feliz quando podia brincar de boneca com as amigas. Gostava de observar a mãe se maquiando e sonhava em ser como ela. Mas, desde os 8, sentia que não podia querer tudo o que queria porque eram “coisas de menina”, e ela nasceu em um corpo masculino.

“Eu era muito reprimida em tudo que tinha de mais feminino, e passei a enxergar esse lado meu como algo muito negativo”, lembra. Aos 12, sentia que precisava se reafirmar como “homem de verdade”. Fez uma lista das meninas da sala para eleger de quem “ia gostar” e tentar namorar para “provar que era macho”.

Com muita dificuldade de autoaceitação, aos 13 Samantha se assumiu aos amigos mais próximos como bissexual; aos 15, se disse gay. Mas algo ainda não se encaixava. A jovem não se sentia bem com o próprio corpo, não gostava de ser tratada com pronomes e nomes masculinos, mas não conseguia entender direito o que a incomodava.

Em uma conversa com uma amiga, expressou a possibilidade de talvez ser trans. “Ela, que já tinha perguntado uma vez se eu achava que era trans, só perguntou como eu queria ser chamada. Dois dias depois disso, eu não tinha dúvidas de que era uma mulher e queria viver como tal”, lembra.

Samantha morava com o pai, que sempre a aceitou como era, mas o processo, desde a autodescoberta, foi difícil para a jovem, que lutou contra crises constantes de ansiedade e depressão. Entre os 15 e os 16 anos, começou a usar maquiagem e a modificar as roupas que ainda eram masculinas, deixou os cabelos e as unhas crescerem. No segundo semestre do segundo ano do ensino médio, mudou o nome na escola, e ali tudo melhorou. “Eu me sentia mais livre.”

Samantha faz questão de se apresentar como “uma mulher trans, travesti”. E assume a militância, lutando contra o assédio e reafirmando seu lugar de direito na sociedade. “Acho necessário. Pessoas morrem por isso, e preciso fazer a minha parte, lutar para que o mundo seja melhor.”

Quando completar 18, Samantha vai começar o processo de transição com a hormonoterapia, mas afirma não ter vontade de fazer a cirurgia de redesignação por se sentir bem com o órgão sexual.




 
(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Dificuldade em se enxergar trans
O estudante Lucas Miguel Epaminondas Silva, de 19 anos, percebeu que havia algo diferente por volta dos 5, 6 anos de idade, mas somente se reconheceu trans quando estava prestes a completar 18. O processo foi longo e, antes de se descobrir um homem trans, achou que era uma mulher lésbica. “Sabia que tinha algo que não se encaixava, mas não conseguia identificar o que era.”

Quando criança, sempre queria interpretar um menino nas brincadeiras. Os nomes que mais gostava de usar nesses momentos eram Lucas e Miguel. Na pré-adolescência, o incômodo e o desconforto pioraram, as características femininas começaram a aflorar e o incomodavam profundamente. “Eu me sentia um estranho, odiava vestidos e tudo o que se referia ao padrão de comportamento e à aparência que deveria ter. Eu me questionava ‘quem sou eu’ o tempo todo, porque não me enxergava naquela pessoa”, lembra.

Vivendo uma adolescência marcada pelo sentimento de não pertencimento, Lucas disse à família que era uma mulher lésbica, fato que não foi aceito. Por volta dos 14 anos, o jovem começou a ter crises de ansiedade e depressão e chegou a se automutilar. Quando a situação se tornou insustentável e até perigosa, ele e a família buscaram auxílio no Adolescentro, onde começou um processo de aceitação.

Aos 16, viu o vídeo de um homem trans contando sua história e, finalmente, começou a se identificar e a se enxergar como quem realmente era. Com uma família muito fechada, ele só pôde começar a mudar as roupas depois de mais velho – e aos poucos. Escondia-se em camisetas e calças folgadas, o cabelo estava sempre na altura do ombro.

No ano passado, Lucas começou a usar o nome social e se assumiu para os amigos mais próximos. Foi somente aos 18 anos que começou o processo de transição, com a hormonoterapia e o bloqueio dos hormônios femininos. E, finalmente, pôde cortar os cabelos como sempre quis. “Tudo se tornou mais evidente quando fiz 18. Depois que comecei o processo, resolvi contar. Eu sofri demais, mas agora que sei quem sou, quero ser feliz, me libertar.” 


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