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Estado de Minas EM DIA COM A PSICANÁLISE

Perder a linguagem é enlouquecer. É se retirar valores comungados

A palavra é o laço que nos permite acesso ao outro. O que faz do sujeito algo único é que cada um tem seus próprios sons, derivados das marcas inconscientes


06/12/2020 04:00 - atualizado 06/12/2020 09:26


Nosso pertencimento ao mundo humano depende da linguagem, do que ela espera de nós. Nos tornamos humanos ao assimilarmos a linguagem comum ao grupo a que chegamos e devemos pertencer. Nascemos virgens de conteúdos e entendimentos, nem mesmo sabemos ter corpo. E corpo sem marcas, saberes, experiências.

Nosso corpo é marcado pelo contato humano, afetado pelo afeto, olhar, pelo desejo do outro. Os sons, a voz – materialidade sonora – abrem caminhos e trilhamentos, que são caminhos de aluvião por onde escorrerão afetos, libido, gozo, desejo determinando escolhas e experiências.

Recebemos nome próprio de nossos pais e então passamos a existir. Assim como ao nomear dia e noite Deus fez com que eles existissem. Ele, mesmo não dizendo seu nome porque se apresentava em sarça ardente com o famoso “Sou o que Sou”, ou mais corretamente traduzido do hebraico “Serei o que Serei”, embora sem nome próprio que o determinasse, nomeava tudo que então tomava existência e corpo.

E aquele que não se insere no discurso corrente perde a linguagem dos outros e fica apartado de seu grupo, alienado em seu delírio solitário, impossibilitado de compartilhar a realidade, restando-lhe apenas restos de real sem nomes.

Ficará sem sinônimo para nenhuma coisa, como disse Clarice Lispector sobre seu personagem Martim, em A maçã no escuro, que, tendo matado sua mulher, se pergunta se sentira algum horror pelo ato, seria o que a linguagem esperaria dele, e não encontrando memória disso, foge para o deserto e enlouquece.

Ele foge para o deserto e lá se senta em uma pedra quando parece integrar-se à natureza inóspita, quase como um elemento a mais, inumano, compondo a paisagem. Um homem desértico no deserto. Um homem que perdeu sua humanidade quando perdeu a linguagem.

Perder a linguagem é enlouquecer. É se retirar do léxico comum, de valores e ideais comungados por um grupo, uma cultura em que se está inserido e cair na marginalidade da loucura. Assim compreende a autora da obra A maçã no escuro, que esperou longos anos para ser publicada devido à hesitação dos editores com tão incomum romance.

Comentou ter aprendido muito ao escrever a obra que até a ela mesma surpreende. Narrar tão precisamente a perda de si próprio a partir da perda linguagem é concluir a importância de pertencer ao discurso, que é como trilhos por onde corre a linguagem comum. Sabia instintivamente, ou por experiência própria talvez, que a palavra é o laço que nos permite acesso ao outro, pertencimento a uma cultura.

Segundo nos conta o biógrafo de Clarice, Benjamim Moser, sobre esta obra, o personagem principal, Martim, é tomado pelo temor da insanidade que paira sobre aquele que “passa para o outro lado da vida”. O homem tinha a tendência de cair na profundidade, o que um dia ainda poderia levá-lo a um abismo, escreveu a autora.

Assim também trabalha o psicanalista, que faz sua escuta do que de mais singular traz cada um que vem para falar de si. Escutamos os sons daquele sujeito, os elementos lógicos de seu sintoma e dos circuitos que percorre. O que difere e faz do sujeito algo tão único é que cada um tem seus próprios sons, registrados desde os primeiros contatos, e sons humanos que afetaram nossos corpos.

Ninguém copia os sons do outro, eles são absolutamente únicos, derivados das marcas inconscientes desde o início de sua existência e que ecoarão nele para sempre.

A clínica da psicanálise nos demonstra que “sabe-se” de tudo isso, sem saber, a escrita de cada um está registrada no próprio corpo. A escuta dos sons de cada um nos ensina a especial função do analista em captar na palavra aquilo que importa e que mais representa aquele que fala.

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