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Estado de Minas COLUNA

Cravo bem temperado

Neste último domingo de janeiro é também dia de exigir muitos afinadores de piano como este


31/01/2021 04:00 - atualizado 26/02/2021 11:27



Neste tempo de pandemia, ela se acostumou a contar histórias para os netos, vizinhos e velhas amigas. Ela conta os casos com uma memória incrível e, com um sorriso encantador, se mantém atualizada acompanhando as voltas que o mundo dá.

Ao final dos casos, ela costuma contar a historinha de um afinador de pianos. Neste último domingo de janeiro, ou quarto domingo do tempo comum, é também dia de exigir muitos afinadores de piano como este.

Ele era um moço que afinava pianos. Era tão competente que a sua fama se alastrou pelas cidades do interior e ele passava os dias viajando de um lugar para outro reajustando o mecanismo, regulando cordas e sons na caixa do instrumento, deixando “o cravo bem temperado”, como gostava de dizer.
 
Quando ele chegava a uma cidade, todos os proprietários de piano contratavam seus serviços, de qualidade garantida. Certa tarde, entre um piano e outro, ele se assentou para descansar no banco da praça da pequena cidade mineira. Deixou no chão a bolsa de instrumentos parecida com essas de metal usadas pelos bombeiros hidráulicos. Cinco minutos depois, assentava-se ao seu lado um menino de rua, de oito, nove anos, talvez.

– Você é bombeiro? – o menino puxa conversa.

– Não, sou um afinador de pianos.

– O que é isso?

– Você sabe o que é piano?

– Sei. Já vi pela janela na casa dos outros. É bonito.

– Pois, para ficar mais bonito, o piano tem que tocar bonito. E, para isso, tem que estar afinado. Você levanta a tampa do piano e lá dentro estão as cordas. Cada uma tem um som diferente. Tons maiores e menores. Ascendentes e descendentes. Bemóis e sustenidos. Quando o som não está legal, o afinador conserta. São aproximadamente 220 contas e 88 notas do piano, fora o cuidado com o esforço de concentração e o absoluto silêncio do ambiente.

– Você conhece o som de cada corda?

– Sei direitinho. O piano é um instrumento de afinação fixa, por isso você tem que deixar o som no tom certo, o som vai ser aquele sempre. Precisamos ter o cuidado com a umidade do piano, a variedade de temperatura, eventual deslocamento do aparelho, afinar pelo menos uma vez por ano, ter um ouvido absoluto e paciência. A gente precisa recorrer a um bom conhecimento de harmonia, das oitavas e dos acordes. Quando o artista vai apresentar um espetáculo, aí é preciso afinar naquele dia. Para cada concerto uma afinação.

– Você também toca piano?

– Não, infelizmente. Geralmente, todo afinador sabe tocar. Eu não pude aprender, era muito pobre. Mas eu cresci dentro de uma oficina de piano e aprendi a trabalhar com o dono, que era meu padrinho. Sabe que não existe escola que ensine a afinar pianos? É de pai para filho. Ou de padrinho para afi- lhado.

– Você queria tocar piano?

– É meu sonho. Eu sou afinador, mas sei também tudo de música. Tenho minhas músicas preferidas.

– Você gosta do Luan Santana?

– Prefiro o Mozart.

– Mô... O quê?

– Música clássica, você não conhece. Os meninos hoje em dia só gostam de sertanejo, rap, rock, pop rock, né?

– Posso ver o que você tem nesta maleta?

O afinador mostra seu material de trabalho para o menino de rua. Explica, conta histórias sobre a surdez de Beethoven, a tuberculose de Chopin, os nove filhos de Bach. Conta sobre o compositor alemão Handel, que em 1742 estreou seu oratório, O messias, com mais de duas horas de duração. Vai aumentando o entusiasmo, fala como se estivesse ouvindo a composição e mistura nas palavras o dó, o ré e o mi. Ele não segura a emoção:

– Encenado em vários países, na Europa e nos EUA, é tradição o público se colocar de pé quando o oratório chega ao Aleluia. “O Senhor Deus onipotente reina/aleluia, aleluia, aleluia.” É a ressurreição emocionando o mundo milênios depois. Mais tarde viria o poeta, cantor e compositor canadense Leonard Cohen compor uma canção pop, Hallelujah, sucesso mundial.

Ele não queria parar de cantar e de sonhar... Mas chega a hora de visitar outro cliente. O afinador fecha a maleta, dá alguns passos, quando ouve o menino falar:

– Quando crescer vou ser igual a você.

– Um afinador de pianos?

– Não. Vou conversar com as crianças.

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