Diário da quarentena
E se eles aprenderem
a tristeza?
Júlia Medeiros
EscritorA

Nunca tive um diário. Aparentemente, eles existem desde o século 16, quando, no Renascimento, nasce o individualismo (Google). Nasci quatro séculos depois do individualismo (RG) e nunca tive um diário. Talvez por ser gêmea e o individualismo ser um aspecto difuso nessa modalidade fraterna (Freud, acho). Receio, portanto, que o que faço aqui é escrever – não um diário, mas um dia. Só um dia.
24 de agosto de 2020, século V desde o individualismo (d.i)
Querido dia,
Eu não venho sempre aqui. Digo, ontem eu vim, antes de ontem, enfim, tenho vindo há 34 anos, mas não aqui-aqui. Aqui é a primeira vez, em você, desse jeito assim, de papel. Das outras vezes que eu vim você era de rua e gente e carro na porta da escola.
Quero dizer, antes. Lembra? A gente terminava o almoço, apressava as crianças, ficava chamando sem paciência lá do portão e no caminho ouvia Novos Baianos.
Lembra? O mais novo cantando Besta é tu e o mais velho querendo mudar pra Taj Mahal, com a Partimpim (claro, o carro virava uma festa no “tetê teretetê”). Mas era outro dia, desculpe, não quis ofender.
Hoje você até que começou bem. Mamão, pãozinho com manteiga, vitamina de banana e café. Eu tinha prometido andar de bicicleta com os meninos na estrada-deserta-de-gente e fomos nos arrumar. Fingi que precisava ir ao banheiro e fiquei despachando umas coisas no celular enquanto os dois batiam na porta me apressando (aposto que você viu). Tá difícil juntar trabalho e criança e casa e casamento e banho no saquinho de pipoca, sabia?
Pra variar eu esqueci alguma coisa e dessa vez foi o patinete. Era pra mim mesma, azar. Fiquei pensando se, com 4 anos, eu já andava de bicicleta sem rodinha. O menorzinho quase desistiu na terceira vez que eu soltei o banco e ele tombou pra esquerda, sempre pra esquerda, mas o mais velho o incentivou a retomar as tentativas (fofo) e, depois, gritou lá da frente: – Máscara! Um cara vinha correndo e o combinado era vestir o acessório sempre que surgisse alguém e eles repararam que este alguém não estava cumprindo o combinado como eles, “você viu, mãe?”. Era a segunda vez que dávamos um passeio, depois de cinco meses de confinamento.
Você reparou que eu tomei cerveja no almoço? Passei o fim de semana todinho no romófice e me vinguei na segunda-feira, qual o problema? Minha quarentena, minhas regras. E o maridón fez arroz com costelinha, tão temperadinho... Dois goles e já eram três da tarde. Você tem feito três da tarde com uma facilidade! Antes, três da tarde era só lá pro meio da tarde, agora mal a manhã acabou, pá, três da tarde. Lá fui eu pro romófice de novo.
Mentira, fui fuçar as redes e ainda chamavam a menina de assassina, em nome de Deus. Dez anos. Se você encontrá-la amanhã ou depois, diga, por favor, que Deus não é bile, nem tio, nem arcebispo? Que Deus não é cartolina, hashtag, que Deus é ela? Todinha ela? Diz assim, ó: bendita seja, meu docinho. E, aí, canta com voz de anja ou passarinha ou mãe?
[Você precisa melhorar as notícias.]
O trabalho foi só duas vias, rubrica, scanner, nota eletrônica, anexo (é tão chatinho fazer essas coisas, mas aumenta o saldo da conta), atenciosamente, obrigada. Você fez sol depois de muito tempo e os meninos brincaram de fute-sabão: um plástico que estendem na grama e jogam detergente pra escorregar. É impressionante como eles têm se saído bem apesar de tudo, mas é nítido que estão opacos. (E se eles aprenderem a tristeza?)
Meu lanche da tarde foi um pacote inteiro de wafer e duvido que escrevam essas coisas aqui. Agora vai ficar de noite e frio e daqui a pouco tem aula no Zoom. Você até que foi doce, obrigada.
Desculpe escrever uma carta em vez de um dia-de-diário. Talvez eu não leve jeito pra isso, ou seja, aquilo de ser gêmea, ou talvez eu só ande sentindo saudades demais.
Fique bem,
Júlia
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