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Estado de Minas ELEONORA CRUZ

Sopros e lamentos

'A quem interessa produzir estudos técnicos que apontam os problemas, mas que não saem das gavetas(?)'


10/10/2023 06:00 - atualizado 10/10/2023 08:21
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Angus Deaton
Angus Deaton, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2015 (foto: Jessica Kourkounis/Getty Images/AFP)
Nesse fim de semana, comecei a ler o novo livro do laureado ao Nobel de Economia, Angus Deaton – “Economics in America: an immigrant economist explores the land of inequality”. O livro ainda não tem tradução para o português. Ao mesmo tempo, li o novo relatório do Banco Mundial, lançado na última sexta (6/10) – “Conectados: Tecnologias Digitais para a Inclusão e o Crescimento”. Ambos dialogam na noção subjacente de que é do conhecimento de especialistas, governos, empresários e outros “agentes” a desigualdade e seus impactos não inclusivos. 

Deaton fez um trabalho impressionante, durante 40 anos, com sua esposa, também economista, sobre a indústria farmacêutica americana, suas relações promíscuas com o Parlamento e seus efeitos nefastos sobre o adoecimento psíquico da sociedade américa. Há poucas semanas, algumas imagens de americanos caídos nas ruas circulou pelas redes sociais, chocando sociedades que se tornam vítimas e alienadas de si próprias. 

Nos Estados Unidos, os opioides tornaram-se, após décadas de alerta do casal Anne Case e Angus Deaton, problema de saúde pública de difícil ou impossível solução. No Brasil carente de estatísticas e estudos longitudinais da envergadura daquele produzido por esse casal, o problema dos moradores de rua, em especial dos craqueiros, também vem se alastrando por todos os grandes centros urbanos, sem sinais de políticas públicas efetivas para combatê-lo. 

No Brasil, o tráfico de drogas, há décadas, já mobiliza jovens e crianças pobres, em periferias e favelas, mas “o tráfico não quer o craque no morro”. Com esse lema, os consumidores são forçados a “descerem” e morarem nos centros, em geral, nas proximidades das áreas mais antigas das grandes metrópoles. A Cracolândia, em São Paulo, já era um problema, há décadas, na maior metrópole do país e agora dá sinais de transbordamento de seu espaço social de origem.  

Deaton, em seu “Economics in America”, abre a escrita para além da técnica. Traz suas impressões pessoais, suas reflexões e choques culturais como um imigrante escocês, formado em Londres, e “aportado” nos Estados Unidos, na Universidade de Princeton – sobre a questão do código cultural, em especial para quem nunca viveu fora de seu lugar de origem, sugiro a leitura de Clotaire Rapaille, na minha opinião, a leitura mais simples e clara para se entender as diferenças de “consumo” das sociedades em função de suas culturas. 

O ponto alto do novo livro de Deaton, até o momento (ainda não o li por completo!), tirando a dedicatória à sua esposa, que achei lindo e, confesso, tive uma pitada de inveja (rs!), é sua reflexão sobre o papel dos economistas, devido ao protagonismo que esses profissionais vêm tomando, sobretudo a partir dos anos 80 do século passado, em cargos diretivos e conselhos para governos, bancos centrais, agências internacionais etc. 

Nessa narrativa, Deaton levanta uma questão que há muito me pergunto: até que ponto a racionalidade dos economistas no processo de tomada de decisões, dadas as restrições aos problemas investigados, é efetivamente adotada para solucionar problemas, sem que seja carregada por vaidades e posicionamentos doutrinários, políticos ou de interesses privados? 

Deaton é um grande defensor da análise dos dados para tomada de decisões, sem necessidade de grandes arcabouços teóricos etc. Ele parte da noção básica de que os dados são capazes de nos trazer as respostas, desde que tratados com racionalidade imparcial e boa fé. 

Estou simplificando muito para chegar ao ponto que mais tem me acompanhado. Sem rupturas estruturais, produziremos pilhas de belos e elegantes relatórios para se tornarem peças decorativas de prateleiras, mesas de salas de visitas ou gavetas de escritórios. 

O relatório sobre conectividade digital, do Banco Mundial (BM), divulgado na sexta-feira passada, é mais um bom exemplo desse desperdício cognitivo se não for acompanhado de pactos e ou acordos que gerem ações estruturantes dos governos e do setor privado. É do conhecimento dos governos que o custo de acesso dos serviços de banda larga são proporcionalmente muito mais caros para os primeiros quintis da distribuição de renda do que dos últimos, nos países da América Latina e do Caribe. 

O estudo também revela os potenciais impactos das taxas mais altas de penetração das bandas largas fixas sobre o Produto Interno Bruto (PIB): para os países da América Latina e Caribe (ALC), uma penetração 10% maior de banda larga na região estaria associada a um aumento de 3,19% no PIB e de 2,61% na produtividade. Tudo isso em um cenário de defasagem na transferência de novas tecnologias na ALC em relação ao resto do mundo. 

Nessa região (ALC), 20% das empresas ainda adotam métodos manuscritos para fazerem suas gestões, mesmo tendo acesso a computadores e internet. A aproximação da tecnologia tem se dado mais para o consumidor do que para soluções business-to-business (B2B). Nesse ponto, entra a questão estrutural básica: como romper o ciclo da ausência tecnológica se os indivíduos não são capazes de alcançar o potencial da tecnologia em seu dia a dia e em seus negócios? 

O Programa Desenrola, lançando ontem (09/10) pelo Governo Federal do Brasil, é um exemplo do nosso atraso de conectividade digital: 44% das pessoas elegíveis ao programa não têm certificação pela plataforma do governo federal no nível permitido para acessar as propostas de negociação. Além disso, 13% não têm qualquer tipo de certificação, ou seja, não são sequer cadastradas na principal plataforma de acesso aos serviços públicos federais – são os adultos invisíveis da tecnologia. 

A falta de acesso digital das famílias mais pobres, altamente escancarada pela pandemia, especificamente no caso brasileiro, mostra a ausência de conectividade digital: dentre 13 países da ALC, o Brasil é o terceiro que conta com menor investimento em conectividade por aluno. Além do baixo custo de investimento governamental por aluno, a ausência de treinamento para professores e profissionais da educação constituem a tempestade perfeita na educação. Soluções digitais não substituem professores qualificados e motivados, mas  sua ausência só agrava o quadro atual.

A essa altura, quem conseguiu chegar ao final dessas parcas palavras, driblando anúncios e uma escrita fragmentada, deve estar se perguntando o que o livro do Deaton tem a ver com os resultados do relatório do BM. A simples crítica de Deaton aos economistas, ao tocar na vaidade e no jogo de interesses, levou-me à indagação sobre  o sentido dessa profusão de estudos e relatórios que, muitas das vezes, tornam-se peças decorativas de escritórios. Enfim, “a quem interessa produzir estudos técnicos que apontam os problemas, mas que não saem das gavetas(?)”.  

A dúvida sempre foi minha maior companheira. Na vida profissional, permito-me usá-la para vaguear entre pensamentos e ideias e, ingenuamente, acreditar, apesar de toda sorte de vaidades e interesses ocultos, que sempre será possível construir boas práticas e políticas, mesmo tropeçando em desesperanças. 

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