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Se beber, não duvide

Como num milagre, eles fizeram da cerveja sua mais perfeita tradução


postado em 01/11/2019 04:00 / atualizado em 30/10/2019 15:53

Só acreditei porque estava lá. Vi, ouvi, testemunhei. A distância, tamanha riqueza de detalhes cairia na conta do exagero e da miragem. Mas, creiam, é verdade esse bilhete. Com o próprio convite para o concurso prometendo desvendar o DNA de cada cerveja artesanal inscrita e, mais do que isso, até dos respectivos cervejeiros ou cervejeiras.

Descrente desses fenômenos – não me inspiravam tarô, ciganas, futurólogos, jogos de búzios, cartomantes –, cheguei ao salão com a alma desarmada. Até que me despertasse o som da tampinha se desprendendo do gargalo, seguido pelo encontro espetacular de líquido e espuma formando aquela imagem sedutora.

O primeiro sommelier emborcou a taça, a que sentisse vagarosamente os aromas, para depois levar uma fração à boca. A descrição cabia em qualquer manual. Anotei em minha caderneta. Exaltação aos ésteres frutados na medida desejável, nobre delicadeza no buquê e notas de ameixa em meio a um grau de acidez que tornavam tudo caprichosamente equilibrado.

Eu com uma ponta de decepção, imaginando que a interpretação ficaria naqueles marcos simplificados, quando o especialista soltou as pérolas iniciais do dia:

– Uma cerveja feita à base de fogo direto e armazenada em fermentadores de parede dupla.

Anotando, dei de me perguntar se a série de revelações de análise sensorial, ficando surpreendente, se encerraria por ali. Qual nada...

– Ah, com malte moído minutos antes, o que potencializou habilmente a extração de açúcar, e lúpulos europeus das safras 2016 e 2018 cujos óleos essenciais...

Uouuuuu!!!! A sensação agora era de espanto. Ao fundo, uma figura comovida tentava pôr freio ao choro. Ninguém mencionou, mas muito provavelmente o dono da receita. Ele ainda soluçava no momento em que se ouviu o segundo destampar de garrafas. Ligeiramente mais grave que o anterior.

E o jurado repetiu todo o ritual, o de rodopiar a taça, abrindo caminho à migração dos perfumes. A cena comovia. O rubi pronunciado no cristal, num translúcido que remetia a joias de museus. Uma aspiração aromática, um trago curto. Foram alguns segundos de suspense:

– Fermentação de 26 dias. Adição de grãos de torra média. Boa parte da cevada colhida nos dias que abriram a primavera brasileira.

Ele manteve o exame da bebida, erguendo-a no contraluz de pegada barroca. E emendou:
– Veio de uma panela de 100 litros, cujo cozimento foi embalado por uma típica colher de madeira.

Caramba!! Aquilo, afinal, era concurso de cerveja ou disputa de especialistas em degustação? Ah, esperasse pela última avaliação do dia. Assim que cessaram os comentários incrédulos da plateia sobre aquela etapa, espocou-se a terceira tampinha.

A espuma rica e a turbidez já entregavam. Era uma trigo. A sommelier fechou os olhos, como se ampliasse o raio de percepção olfativa. Não deixou transparecer, mas notei que se alegrara. Levou à boca, ainda com as pálpebras cerradas, e deixou longo o líquido rumar às papilas gustativas. Lembrava alguém entregue a um mantra. E sugeria sair de um transe ao retornar com um olhar que, eu jurava, não lhe pertencia.

– Cerveja feita por mulher. Com controle tão preciso sobre a temperatura de fermentação, que banana e cravo aqui dialogam como ponteiros suíços.

A analogia levava um quê de contraditório. Exatidão não representava processo mecânico em lugar de artesanal? A sommelier tratou de colocar todos os pingos nos is.
– Mesmo milimetricamente precisa, essa Weiss traz notas em curvas tão generosas, que aparenta ter sido produzida ao pé de montanha mineira.

À minha esquerda, uma garota ali por volta de seus 20 anos não mandava mais nas mãos. Iam da boca (as unhas miseravelmente roídas) ao cabelo e se fechavam em concha sobre a face. Claro, a cerveja era dela. Ao que a jurada arrematou, sem medo de que a vissem no exercício das bruxarias:

– No processo de fervura, pelo menos por quatro vezes foi tocada Casa no campo, de Zé Rodrix e Tavito.

Conferi, e a menina acabava de desmaiar. Ela se recompunha, até ouvir mais da sommelier:
– Ah, com interpretação de Elis Regina. E não pensem em celular. Foi no vitrolão. 

O que veio dali em diante me contaram, porque desmaiamos eu, a garota e mais uns oito. Irremediavelmente mergulhados no caldeirão das alquimias cervejeiras.

Esta coluna é publicada quinzenalmente
eduardomurta.mg@diariosassociados.com.br

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