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Estado de Minas CORAÇÃO DE MÃE

Alucinógenos do bem

Que os seus dias sejam contaminados por doses terríveis de profundidade, de mergulhos interiores, de descobertas fantásticas%u2019


postado em 24/11/2019 04:00



O reencontro com Luiz Carlos Faria, engenheiro civil, que não se contenta só em construir prédios, mas que ergue paredes, cômodos e quartos com a argamassa da vida, que ele mistura com música, arte, pincéis, tintas, livros, sabedoria e, como facilitador da biodança, levou-me a um tempo incrível.

Sem filhos, Luiz Carlos Faria não tem herdeiros biológicos, mas pedagógicos. Meu filho foi aluno dele, às vésperas do vestibular para ciências sociais. Como um pai de verdade, Luiz Carlos dedicou-se a estudar com ele, que passou, entrou para a PUC Minas, completou a graduação e hoje é cientista social. Claro, entre as aulas de biodança, música, arte e literatura. Luiz Carlos criou e ensina o método Bioarte.

O tempo passou. Cada um para o seu lado e caminho, com desvios, tropeços, feridas e curas. Não sei se foram 10 anos ou mais até o reencontro recente. Ele me disse que fez quadros de alguns de meus textos da coluna Coração de Mãe. Os textos estão na parede da casa dele, na Pampulha, e que um, em especial, lê e relê sempre, mesmo com o correr da vida. Pediu que o republicasse, pois o considera “superatual”,

Topei e quero compartilhar com você, leitor, a crônica Drogas alucinantes (título original) – e também em homenagem a Luiz Carlos Faria, que me elevou às alturas, com ternura, serenidade e que curou as minhas asas quebradas, para que eu pudesse voar de novo. Mesmo que um voo tímido, rasante, mas firme. Aqui vai o texto:

Sou viciada. Compulsiva. Tenho que tomar doses exageradas de algumas drogas que sumiram do mercado, como criatividade, alegria, afetividade, prazer e bom humor. Quando as drogas da educação, solidariedade, talento, esperança e ideal desaparecem do mundo, começo a sofrer da síndrome de abstinência. Tenho calafrios, arrepios pelo corpo, vômitos, febre e até penso em me internar na clínica da alma, onde as drogas do sonho, da arte, da música, da poesia, das artes plásticas e da transcendência tenham espaço. Dependo das poderosas drogas da sensibilidade, do companheirismo e do amor. Subo morros, desço ruas, corto avenidas atrás dessas drogas, que, a cada dia, vão ficando raras.

Tenho o péssimo hábito de sonhar. Injeto, todos os dias, nas veias, a droga da utopia, que me faz levitar, abrir as portas da percepção. Não tomo chá de ayashusca para dançar e viajar por caminhos desconhecidos, mas tenho a droga das palavras para me alimentar, para me levar a lugares secretos do inconsciente.

Poesia para mim é a droga mais excitante de todas, pois mexe com a emoção e me faz curtir o devido barato. Faz bem ao coração. Fico em estado de graça, me sinto alucinada quando aplico no meu filho os clássicos da literatura. Ele também é viciado em música. Enlouquece quando toca Milton Nascimento, Caetano e Chico Buarque. Sua coleção de discos de vinil o deixa neurado. Não espero que ele dê, no futuro, um grande concerto no Palácio das Artes, mas que descubra suas notas musicais submersas.

Quando ele mergulha em pincéis, não preciso que ele se transforme em Picasso, Miró ou Monet. Mas que conheça a droga da arte. Com ela, nossos filhos, com certeza, não vão optar pelas drogas da morte. Quero que ele seja dependente de valores eternos como justiça, paz, felicidade, paciência e compaixão. Que ele tenha o vício das conversas demoradas, longas, produtivas, que levam ao conhecimento, à sabedoria. Quero que ele fuja das relações superficiais.

Não quero nem saber de maconha, cocaína ou crack, mas posso morrer de overdose com belos textos que colam lembranças, histórias, personagens, exemplos que me contaminam, que me provocam arrepios, que me falam do belo, de caminhos novos. Amigos também me causam dependência. Sou viciada em gente, dependente de afeto, em casa, no trabalho, na vida. Meu corpo pede música, muita música, de MPB, passando por jazz, blues, samba, chorinho, bossa-nova.

O meu desejo é ver o mundo completamente contaminado pelo vírus da arte. Que os nossos filhos sejam loucos por essa droga bendita. Tenham oportunidade de experimentar, de compor, cantar, dançar, pintar, escrever. Fiquem longe do consumismo. Não queiram nunca acumular fortuna e angústias. Que nossos filhos possam limpar o mundo com canções e poemas, com pincéis e tintas, que possam alterar o estado de consciência com a droga da felicidade.

Que nossos filhos possam se sentir donos de sua própria vida, artífices do tempo, artesãos de suas escolhas, escultores de sonhos, pintores do amanhecer de cada dia. Que eles expulsem a mediocridade do mundo, a mesmice das coisas, o anteontem, as ideias preconcebidas, as teias de aranha da comodidade. Que tenham piedade. Façam da vida uma excitante e tresloucada obra de arte. Que os seus dias sejam contaminados por doses terríveis de profundidade, de mergulhos interiores, de descobertas fantásticas. Dessa inabalável fé no ser humano. Que os nossos filhos sejam viciados em integridade, caráter e senso de coletividade.

Sou escrava da droga do sentimento, que é escandalosamente tóxica e mostra a saída para a maioria dos problemas. Que nossos filhos aprendam a ouvir o coração. Corram atrás da droga da intuição. Quando eu tiver uma forte recaída e não for mais dependente dessas drogas, por favor, me internem num centro de recuperação e me deem muita música. Apresentem-me os novos e velhos escritores, presenteiem-me com livros e versos, com belas e estonteantes palavras. Não quero ficar curada desse vício cotidiano de achar que nossos filhos terão o direito de ir e vir, de caminhar, sem sobressaltos, pelas ruas deste país, onde todos serão irmãos e escravos da ternura.

PS: Para confessar que, nesses tempos angustiantes, há falta de essência, pois tudo é irrelevante. Há consumismo, solidão, morte nas esquinas, olhos grudados no celular e nas redes sociais. Há um diz que me diz que não quer dizer nada. Há urgência de ternura, de abraços, de encontros, de conversas, de presença, de olhos nos olhos – e de arte, pois o que vale é a vida, o ser humano.

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