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Estado de Minas CARLOS STARLING

Poemas perdidos: O Treco e a serenata na zona boêmia

A história do sanfoneiro que era apaixonado por uma prostituta e teve uma crise de ciúmes


(foto: PxHere)
(foto: PxHere)

Poesia é como toda atividade fisiológica, as vezes sai, as vezes não.
Quando a vontade vem, escrevo em qualquer papel que encontro pela frente.

O combustível pode ser um vinho a mais ou a menos, uma tarde, uma manhã, uma paixão, um sonho, um fato qualquer da vida...

Poesia não tem hora marcada. Adoro as madrugadas e as tardes. Dentro de aviões sobre as nuvens ou no boteco da esquina, tanto faz. Entenderam a comparação com necessidade fisiológica?!

Entendo perfeitamente o fato de escritores, músicos e artistas morrerem na miséria. O produto é uma necessidade, que se confunde com prazer e, às vezes, meio e motivo de vida. Um vício, um ofício e uma necessidade.

Poesias marcam a vida de quem escreve e de quem as recebe.

Muitas, ficam perdidas para sempre em gavetas.

Há poucos anos, Joana, minha mulher, arrumando gavetas, achou uma pasta com inúmeras poesias escritas em diferentes épocas. Com enorme paciência, sensibilidade e carinho, organizou o que parecia impossível de ser organizado. Traduziu a minha letra para algo legível e imprimiu. Nasceu o Guardanapos, uma surpresa para mim e para todos os amigos que celebram comigo o dia de São Sebastião.

Os guardados revirados, reinventados e ressuscitados são necessidades da alma. Rastros nossos por este mundo.

Entendo bem o Confesso que Vivi, de Neruda...

Algumas dessas poesias, adoraria resgatá-las. Talvez nem fossem tão boas assim, mas o momento foi tão inesquecível, que tê-las novamente, seria como voltar no tempo e ganhar folego novo.
Um destes poemas perdidos foi escrito para uma prostituta de Ibiá. 
Mulher que era a paixão do Treco. Aqui vale um parêntese para apresentar-lhes o Treco.

Treco foi uma das figuras mais emblemáticas da vida da cidade.  Branco e sardento, era um sanfoneiro e violeiro que animava botecos, prostíbulos, quermesses e velórios. Aliás, solidário com todos e todas as viúvas, varava a noite e ainda carregava a alça do caixão no dia seguinte. Atravessou gerações e fez amigos em todas as regiões da cidade. Festas e velórios sem o Treco não faziam o menor sentido. Era quase da minha família, assim como, de todas as famílias da cidade.

Trabalhava com o mesmo entusiasmo que passava a noite numa farra. Para ganhar a vida, era tratorista. Foi numa destas
que começou a trabalhar na fazenda do meu avô. 

Apesar do trabalho pesado, sempre tinha um momento para uma viola regada a cerveja e conversa fiada. Era o bônus para o empregado e para o patrão... a mais valia que valia a pena para ambos. Talvez a única. O momento do encontro do “capital” com o trabalho, ambos a serviço dos bancos que financiavam este happy hour inesquecível.

O velho fogão a lenha aquecia o ambiente e as chamas, vez por outra, estouravam o nó da madeira, soando como rojões a comemorar encontros inusitados.

Com frequência eu ia com alguns colegas de faculdade e amigos agregados passar uns dias na fazenda e visitar meu avô. Os finais de tarde ficavam bem mais animados com a chegada dos sedentos e barulhentos estudantes. O Treco, depois de alguns segundos de convívio, já quase comentava as nossas provas de anatomia. Era da turma. Sem ele a farra perdia potencia e graça.

Certa vez, chegamos para um final de semana prolongado. Como de costume, começamos com nossa viola e ficamos aguardando a chegada do Treco para se juntar a cantoria.

Mas, estranhamente, ele chegou e não cumprimentou ninguém. Foi direto para o quarto e lá ficou.

Perguntei ao meu avô o que havia acontecido. A resposta foi lacônica: - Brigou com a Laura.  Faz uma semana que ele está assim. Já até emagreceu.

Laura era namorada do Treco. Sim, namorada! Com juras e tudo. Ele tinha o trabalho dele e ela o dela.

Sabedor desse romance que já vinha de vários anos, fui até o quarto dele, pedi licença, perguntei o que havia acontecido e se ele precisava de alguma coisa. Ele nada respondeu e disparou a chorar. Treco estava deprimido!

- Que isto cara! Levanta este astral! Conta aí, o que foi que aconteceu? 
- Briguei com a Laura...
- Como assim, vocês sempre se deram tão bem.
- Pois é, cheguei um lá, encontrei ela com outro homem e não aguentei...quebrei o pau! Tô morrendo de vergonha dela.

Eu nunca tinha visto o Treco tão triste assim. Estiquei a conversa para acalmá-lo e coloquei em prática a matéria optativa de psiquiatria que estava fazendo. Escutar é a chave.

E assim, ele foi contando como havia se apaixonado por ela.

- Ela me chama de fofinho, diz que eu sou o homem mais gostoso que ela já teve...como eu gosto dela!

Eu pensei, como é fácil fazer o ser humano feliz! Neste momento, me veio a cabeça a intervenção psicoterápica mais inusitada e audaciosaque alguém em sã consciência poderia propor.

- Uma serenata na zona! Vamos fazer uma serenata para ela, Treco?! Você leva umas flores, eu escrevo uma poesia e você pedi desculpas...
- Você esta ficando doido?!! Serenata na zona? Onde já se viu isto?! 

A proposta foi o choque necessário para acender o Treco dentro do Treco. Ele saiu do quarto com violão e sanfona em punho.

Fizemos uma breve parada na sala, onde abastecemos do combustível da coragem e partimos para a cidade. 

Lá chegando, apanhei um monte de flores no jardim da praça, dividi em duas partes e escrevi duas poesias. Uma para uma moça em que eu estava interessado, e que se tornaria a mãe da minha primeira filha, e outra para a Laura. 

Fizemos a primeira serenata. Luz piscou, candidato a sogro saiu na porta, forneceu mais combustível...sucesso total!

Fomos para a empreitada final. Subimos a Rua Vinte cantando com um pé no passeio e outro no meio fio... cantar quase sempre nos faz recordar, sem querer...

Chegamos bem devagar na janela da amada do Treco e começamos:
 - Relógio marca las horas...

No meio da música ela abriu a janela com seios de fora...
- Pó Treco, eu tô acompanhada!!

Ele largou a sanfona no chão, pulou na janela, colocou as flores e a poesia no meio dos seios dela, deu-lhe um beijo.

- Num faz mal não, eu te amo e cê num tem nada com isso.

Ela fechou a janela, apagou a luz, nós continuamos cantando mais duas músicas e fomos embora.

Fernando Supimpa sentenciou:
- Fica triste não Treco, esse cara brochou.

No céu havia uma lua minguante, com duas estrelas do lado. O Treco viajou com elas. Está junto delas, fazendo serenata... 

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