HKU5-CoV-2: "Não há qualquer risco para nós", diz Margareth Dalcolmo
Em entrevista ao Estado de Minas, Margareth Dalcolmo fala sobre novas linhagens do coronavírus, aquecimento global e os perigos do cigarro eletrônico
compartilhe
Siga no“Nós estamos mais preocupados hoje com uma eventual epidemia causada pelo H5N1”, afirma a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo ao comentar as recentes notícias sobre novas linhagens do coronavírus identificadas no Brasil e na China. Em entrevista ao Estado de Minas, a ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, referência nacional e internacional em pesquisa e controle de doenças respiratórias, destacou os desafios atuais da saúde respiratória, influenciados por fatores como política, desigualdade social e políticas públicas.
A especialista abordou temas urgentes, como o aumento significativo das complicações causadas pelo vírus sincicial respiratório (VSR) e as novas projeções que indicam que o Brasil não atingirá as metas da Organização Mundial da Saúde (OMS) para 2030 no combate à tuberculose - cenário agravado pela pandemia de COVID-19 e pelo isolamento social. Além disso, alertou que o aquecimento global já é uma crise presente. “Vemos isso nos eventos climáticos extremos, como as recentes inundações no Rio Grande do Sul. Os governos precisam mudar suas prioridades e investir em medidas preventivas para minimizar os danos dessas mudanças”, afirmou.
Leia Mais
A pneumologista também voltou a criticar a regulamentação dos cigarros eletrônicos, um tema que estava em pauta no Senado na época de sua última entrevista ao Estado de Minas, no ano passado. “Do ponto de vista da saúde pública, [o PL] é um desastre. O cigarro eletrônico faz mal, pode matar e já há casos documentados de adoecimento grave e morte associados ao seu uso”, reforçou. Veja abaixo a entrevista completa com a pesquisadora Margareth Dalcolmo:
Novas linhagens do coronavírus foram identificadas recentemente, como o HKU5-CoV-2 e uma semelhante ao MERS-CoV. Qual é o impacto real dessas descobertas?
Primeiramente, é importante diferenciar dois pontos. Uma coisa são as novas linhagens do SARS-CoV-2, originadas a partir da cepa Ômicron, que sofreu mutações. Hoje, as vacinas estão sendo reformuladas para dar conta dessas novas variantes. A COVID-19 tornou-se uma endemia, e nós vamos precisar ser vacinados sempre, provavelmente uma vez por ano, a partir do momento em que nós vivemos a pandemia.
Outra questão é a descoberta feita pelo monitoramento da vigilância genômica em um laboratório de biossegurança máxima (NB4) na China, na província de Wuhan. Esse laboratório detectou uma nova cepa de coronavírus, mas que até o momento, ela não apresenta risco algum para nós. Nesse monitoramento regular, foi identificado um novo coronavírus em morcegos – conhecidos por serem portadores de muitas linhagens virais. Esse vírus demonstrou ser potencialmente capaz de se transmitir para pequenos mamíferos, onde já foi testado, e também tem a capacidade de se replicar em células humanas.
Porém, isso fez parte de uma descoberta regular do laboratório. Até agora, não há qualquer risco para nós. Nós estamos mais preocupados hoje com uma eventual epidemia causada pelo H5N1, chamada de gripe aviária - um vírus influenza identificado nos Estados Unidos.
Esse vírus contaminou vacas leiteiras, que, por sua vez, transmitiram a infecção a pessoas que tiveram contato com o gado ou com aves infectadas. Além disso, já há registros de contaminação em gatos e outros animais domésticos. Tudo isso está sendo monitorado, notificado e publicado. Até o momento, não houve mortes, mas já existem casos da doença. A grande preocupação é que, se houver transmissão de pessoa para pessoa, poderemos enfrentar uma nova epidemia. E, infelizmente, ainda não temos uma vacina para essa nova cepa do vírus influenza.
Quais são os impactos da gripe aviária diante dos cortes na área da ciência feitos pelo governo dos Estados Unidos?
Os cortes promovidos pelo presidente norte-americano são extremamente preocupantes. Ele proibiu a publicação do Morbidity and Mortality Weekly Report (MMWR), uma revista semanal do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) que era uma das principais fontes de informação sobre doenças emergentes no mundo. Há quase um mês, não temos acesso a esses dados atualizados.
Além disso, houve um corte significativo no financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), resultando na demissão de aproximadamente cinco mil funcionários, incluindo brasileiros. Muitos desses profissionais tiveram que voltar para os EUA, perderam seus empregos e seu seguro de saúde.
Isso não afeta apenas os trabalhadores, mas também as populações beneficiadas por programas de saúde pública. Há grande preocupação, por exemplo, com o impacto no tratamento da AIDS. Se instituições privadas, como a Fundação Bill & Melinda Gates, que financiam muita coisa na área da saúde, não assumirem parte desses programas, haverá um grande retrocesso na área da saúde global.
Desde a pandemia de COVID-19, houve avanços na vigilância epidemiológica no Brasil?
Sim, houve investimentos importantes. O Brasil estabeleceu normas para a vigilância genômica, e a Fiocruz teve um papel fundamental nesse avanço, especialmente na Região Norte, onde surgiu a cepa Gama, que causou uma tragédia na época.
Ainda há muito a ser feito, mas a vigilância genômica se tornou uma prática regular. Além da unidade da Fiocruz no Rio de Janeiro, esse monitoramento acontece em outros estados, especialmente no Amazonas, em Manaus.
Qual a sua opinião sobre o projeto de lei que regulamenta a produção e comercialização de cigarros eletrônicos no Brasil?
Esse projeto de lei é absolutamente equivocado em todos os sentidos. A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, juntamente com outras entidades médicas e acadêmicas, tem atuado fortemente contra essa proposta. Então já conseguimos tirar de pauta o PL elaborado pela senadora Soraya Thronicke (Podemos).
O Brasil tem uma regulamentação desde 2009, estabelecida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proíbe a fabricação, comercialização e propaganda dos cigarros eletrônicos. Essa proibição foi reafirmada em 2024 após uma ampla consulta pública. O país está sendo um exemplo com esse posicionamento. Em outros países onde o cigarro eletrônico foi liberado, há um movimento de reconsideração devido às consequências graves para crianças e adolescentes, incluindo mortes associadas ao uso abusivo desses dispositivos.
O número de usuários de cigarros eletrônicos têm aumentado no Brasil?
Não é correto dizer que há um aumento significativo no número de usuários. O Brasil tem aproximadamente uma população de 212 milhões de habitantes, e há cerca de três milhões de usuários de cigarros eletrônicos, em sua maioria pertencentes às classes médias. Isso não representa um grande crescimento. No entanto, sabemos que há muita comercialização ilegal desses produtos. Tudo o que entra no Brasil é contrabando, já que não há fabricação nacional. A Polícia Federal tem apreendido enormes quantidades desses dispositivos.
Recentemente, conduzimos um estudo no Instituto de Química da PUC-Rio, com amostras apreendidas, e demonstramos a composição extremamente nociva desses produtos. Há uma dose de nicotina que pode ser até 100 vezes maior que a de um cigarro convencional, além da presença de metais pesados como alumínio e antimônio. Isso é especialmente perigoso para crianças e adolescentes, que têm uma maior predisposição à adicção (vício).
Pesquisas científicas mostram que, em apenas cinco dias de uso, um jovem ou mesmo um adulto pode se tornar completamente dependente desses dispositivos.
Por que esse projeto de lei é um equívoco?
Primeiro, do ponto de vista da saúde pública, ele [o PL] é um desastre. O cigarro eletrônico faz mal, pode matar e já existem casos documentados de adoecimento grave e morte associados ao seu uso. Estamos cobrando da Anvisa a criação de um registro nacional para acompanhar esses casos para que nós saibamos quantos adoeceram e quantos morreram pelo uso deste produto.
Segundo, há um equívoco econômico. O projeto prevê a arrecadação de impostos sobre a comercialização desses produtos. Ora, com isso temos dois problemas graves, um de natureza ética, como se pudéssemos arrecadar imposto sobre a vida das pessoas. E segundo, um problema matemático, pois vai se arrecadar dois bilhões, enquanto os custos com o tratamento de doenças pulmonares, como enfisema pulmonar, doenças pulmonares crônicas e câncer do pulmão poderiam chegar a R$ 100 bilhões.
A indústria do tabaco não tem qualquer preocupação com a saúde pública. Seu único objetivo é lucrar, tornando pessoas dependentes. Não há outro interesse envolvido.
O aquecimento global já afeta diretamente a saúde, principalmente as doenças respiratórias. Há estratégias de mitigação que podem reduzir esses impactos?
Em primeiro lugar, o aquecimento global exige que as moradias, onde as pessoas vivem, tenham saneamento básico - um fator essencial. A falta de acesso à água potável agrava os efeitos das mudanças climáticas e aumenta a incidência de doenças, como infecções respiratórias e diarreicas. O Brasil ainda tem um problema grave de saneamento básico, pois os investimentos são muito desiguais.
Eu estou muito muito ligada a esse assunto no momento. Estamos tentando mensurar nos locais onde a água já é tratada e potável, o impacto que isso resulta na diminuição, primeiro lugar, das doenças diarreicas, sobretudo em crianças, e nas doenças respiratórias como pneumonia. E esse impacto, ele já é possível de ser mensurado nos locais onde tem-se saneamento básico.
Estive em Manaus, em dezembro, onde não havia nada, eles colocaram luz elétrica e saneamento básico. Assim, já há uma redução possível de ser medida no número de internações, sobretudo de crianças - a partir dessa disponibilização de água potável.
O saneamento básico é estratégico para controlar as doenças, sobretudo as doenças transmitidas de uma pessoa para outra. E, é claro, o aquecimento global está muito ligado às diferenças sociais e a disponibilização de condições de moradia adequadas. Quanto mais pobre, mais tem-se um impacto na saúde. Seja pela falta de ventilação, de condições sanitárias nessas comunidades. E isso vai afetar profundamente, não apenas o Brasil, como outros países da Ásia, por exemplo, onde a densidade demográfica é enorme, como algumas áreas da Índia.
O aquecimento global é uma realidade. Ele não é algo do futuro, já está impactando nossas vidas. Vemos isso nos eventos climáticos extremos, como as recentes inundações no Rio Grande do Sul. Os governos precisam mudar suas prioridades e investir em medidas preventivas para minimizar os danos dessas mudanças.
O aumento da temperatura também tem relação com o avanço de epidemias, como a dengue?
Sim, sem dúvida. O calor e as chuvas favorecem a proliferação de vetores como o Aedes aegypti, o que torna a dengue uma preocupação crescente. A situação das doenças transmitidas por vetores exige atenção, e negar a relação entre mudanças climáticas e saúde pública é ignorar uma realidade que já estamos vivendo.
Quais fatores podem estar contribuindo para o crescimento nas complicações causadas pelo vírus sincicial respiratório (VSR)?
O VSR era tradicionalmente um vírus que infectava crianças prematuras de baixo peso. Isso mudou completamente nos últimos anos. Ele tinha uma sazonalidade que foi alterada após a pandemia de COVID-19, pois as crianças não frequentaram creches e ficaram confinadas em casa por quase dois anos. Isso fez com que elas não tivessem a chamada primeira exposição, que garante imunidade.
Com isso, a sazonalidade começou a se modificar. Em 2022, tivemos uma espécie de epidemia de viroses respiratórias em crianças em dezembro, um período completamente diferente do padrão anterior. Hoje, os vírus respiratórios mudaram seu perfil epidemiológico e passaram a ser uma preocupação não apenas para as crianças, mas também para os idosos.
Esse cenário levou a indústria farmacêutica a desenvolver vacinas. Atualmente, sabemos que o vírus sincicial respiratório é responsável por um grande número de pneumonias graves, resultando em internações hospitalares, inclusive em unidades de terapia intensiva, especialmente em pessoas acima dos 60 anos. Por isso, a vacinação é estratégica.
Recentemente, o Brasil aprovou a vacina para gestantes, garantindo que os anticorpos sejam transferidos para o bebê recém-nascido, proporcionando aproximadamente seis meses de proteção. Além disso, foi aprovado um imunomodulador recomendado para essas crianças, que será disponibilizado pelo SUS para aqueles que precisarem.
O que ainda não foi aprovado na saúde pública, estando disponível apenas no setor privado, é a vacina para pessoas acima de 60 anos. Essa vacina já existe no Brasil, e recomendamos que aqueles que possam tomá-la o façam, já que, por enquanto, não está disponível no SUS. Ainda assim, esperamos que, em algum momento, ela seja incorporada ao SUS, considerando o envelhecimento acelerado da população brasileira. É essencial destacar que o Brasil já conta com mais de cinco milhões de pessoas acima de 80 anos, e essa população precisa de proteção.
Pesquisadores da Fiocruz Bahia analisaram o cenário da tuberculose no Brasil e estimam que o país não atingirá as metas da OMS para 2030. É possível reverter esse cenário?
Não é possível, pois o impacto da epidemia de COVID-19 nas doenças endêmicas foi muito alto, e a tuberculose foi a mais afetada. O número de casos anuais aumentou de 72.000 para 80.000, além do crescimento no número de mortes.
Muitas pessoas não foram tratadas ou sequer diagnosticadas, e muitas que estavam em tratamento o abandonaram, o que levou a essas consequências. Estimamos que o Brasil tenha retrocedido de cinco a 10 anos no controle da doença. O país vive um paradoxo: a situação epidemiológica é preocupante, mas, ao mesmo tempo, a oferta de diagnóstico e tratamento é extremamente positiva.
O Brasil é um dos poucos países que têm um dos tratamentos mais sofisticados, inteiramente oferecido pelo governo. Temos todas as condições para diagnosticar e tratar os pacientes, mas é necessário garantir o acesso. As pessoas precisam reconhecer a doença, buscar atendimento no SUS, realizar o diagnóstico e seguir o tratamento pelo tempo necessário.