Na era da polarização, casas legislativas duplicam pautas
De debates sobre privatização e corrupção à agenda moral e de costumes, temas idênticos têm circulado entre a Câmara de BH e a Assembleia Legislativa de Minas
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Nas últimas semanas, os debates na Câmara Municipal de Belo Horizonte têm soado familiares para quem acompanha o noticiário político mineiro. Temas que polarizaram o plenário da Assembleia Legislativa, como a privatização da Copasa e a Operação Rejeito, reapareceram, quase no mesmo tom, entre os vereadores da capital. A prática de replicar pautas, adotada por espectros da esquerda e da direita, virou estratégia para dar sobrevida a pautas que funcionam bem nas redes e reforçam discursos ideológicos.
“Essas pautas migram porque há um interesse claro dos grupos políticos em manter o debate vivo e ampliar o alcance do discurso”, explica o pesquisador Thiago Silame, professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal) e integrante do Centro de Estudos Legislativos da UFMG. Para ele, o fenômeno tem duas naturezas principais: a replicação ideológica e a reação política, usada para tensionar governos e pautas adversárias.
Os debates mais recentes na Câmara de BH nasceram da mesma inquietação que ocupou o plenário estadual nos últimos meses: o avanço da PEC 24/2023, que pretende retirar da Constituição mineira a exigência de consulta popular para a privatização da Copasa e, assim, abrir caminho para destravar a venda da estatal.
Na semana passada, o vereador Bruno Pedralva (PT) levou o tema à Comissão de Direitos Humanos da Câmara. A audiência, segundo ele, buscava "traduzir em nível municipal" a resistência popular à proposta que, na semana seguinte, seria aprovada em primeiro turno pelos deputados estaduais. Pedralva sugeriu que a Câmara enviasse moção de repúdio à Assembleia e ao governo de Minas, reforçando a oposição à venda da estatal.
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No encontro, a vereadora Luiza Dulci (PT) também destacou o impacto que a privatização teria sobre a capital e defendeu que BH “tem papel central na sustentação da Copasa”. No plenário estadual, o embate levou mais de 10 horas de obstrução que terminou pela derrota da oposição por 52 votos a favor e 18 contra a iniciativa.
Para Silame, o caso ilustra como a esquerda reproduz pautas do Legislativo estadual quando há oportunidade de desgastar o governo. “A esquerda faz o debate para tentar colar no Executivo estadual a responsabilidade por temas sensíveis, como a privatização e, no caso da Operação Rejeito, a corrupção. É uma forma de chamar atenção para as implicações políticas e morais dessas situações”, analisa.
Assim como a privatização da Copasa virou combustível para o embate nas duas Casas, a Operação Rejeito, da Polícia Federal, que revelou um esquema de corrupção envolvendo servidores do alto escalão da política ambiental de Minas, com indícios de favorecimento a mineradoras na Serra do Curral, também passou a ser usada como ferramenta de disputa política. O assunto já havia sido tema de audiência na Assembleia e, dias depois, chegou à Câmara Municipal.
Na Assembleia, o encontro teve a participação da secretária de Meio Ambiente, Marília Carvalho de Melo, que falou pela primeira vez sobre o assunto. Convidada a participar do encontro na Câmara, a secretária não compareceu. A vereadora Iza Lourença (Psol) classificou a ausência de representantes do estado e da prefeitura na audiência como “vergonhosa e preocupante”.
Pautas morais e de costumes
Para além disso, o professor da Unifal chama atenção para pautas morais e de comportamento, ligadas a valores religiosos ou conservadores, que têm se espalhado pelas casas legislativas do país, movimento mais recorrente do que o da pressão política. Ele explica que essas iniciativas cumprem um papel simbólico.
“Mesmo quando são flagrantemente inconstitucionais, essas propostas sinalizam para a base eleitoral que o parlamentar está defendendo os ‘valores da família’. É uma forma de engajamento, mais do que de mudança legislativa real”, disse.
Em Belo Horizonte, exemplos não faltam. A Câmara já aprovou o uso da Bíblia como material paradidático, proposta depois derrubada pela Justiça, além de projetos que tratam da “valorização da vida desde a concepção” e da exigência de atestado de óbito para fetos.
E o que nasce na Câmara de Belo Horizonte também ganha eco na Assembleia Legislativa. Em 30 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça da ALMG retomou o debate sobre a PEC 26/2023, conhecida como PEC do Nascituro, que prevê o direito do feto de ter seus batimentos cardíacos ouvidos pela gestante. A proposta, capitaneada pelo deputado Bruno Engler (PL), ecoa o mesmo tom moralista que domina parte da pauta municipal.
“Essas agendas são nacionalizadas”, diz Silame. “Há uma espécie de mimetismo entre câmaras e assembleias, especialmente em torno de projetos da extrema direita. Vemos isso com temas como ideologia de gênero, união homoafetiva, ensino religioso. É uma forma de manter viva a conexão emocional com o eleitor conservador”, ressalta.
Foi o que ocorreu também com o projeto de Tarifa Zero, que previa transporte gratuito em Belo Horizonte. Enquanto o texto enfrentava resistência e intensa mobilização na Câmara, onde a proposta começou a ser discutida primeiro, a deputada Bella Gonçalves (Psol) apresentou na ALMG um projeto semelhante, prevendo gratuidade no transporte metropolitano.
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Para Thiago Silame, da Unifal e do Centro de Estudos Legislativos, a duplicação da pauta mostra que as casas legislativas não vivem em mundos separados. “Quando há grande mobilização social em torno de um tema, ele naturalmente se espraia. O Tarifa Zero, por exemplo, envolvia transporte metropolitano, que é de competência estadual, então há um diálogo institucional, mas também uma leitura política da oportunidade de repercutir um assunto popular”, afirma.