Antério Mânica está preso na penitenciária de Unai para cumprir sentença de 89 anos -  (crédito: PAULO FILGUEIRA/EM/D.A PRESS – 4/11/2015)

Antério Mânica está preso na penitenciária de Unai para cumprir sentença de 89 anos

crédito: PAULO FILGUEIRA/EM/D.A PRESS – 4/11/2015

Há exatamente duas décadas, na manhã de 28 de janeiro de 2004, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho, Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage, Eratóstenes de Almeida Gonsalves e o motorista Aílton Pereira de Oliveira faziam fiscalização sobre trabalho análogo à escravidão na região rural de Unaí, no Noroeste de Minas Gerais, quando foram emboscados pelos pistoleiros Rogério Alan Rocha Rios, Erinaldo de Vasconcelos Silva e William Miranda, condenados em 2013 a penas de 94, 76 e 56 anos respectivamente, na penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Eles agiram a mando dos fazendeiros José Roberto de Castro e dos irmãos Norberto Mânica e Antério Mânica.

Para rememorar a chacina de Unaí, como o caso ficou conhecido, a Delegacia Sindical do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho de Minas Gerais realizou na última quinta-feira (25/1) um evento no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, com a participação de integrantes da categoria e do Judiciário e de políticos. A cerimônia também marcou o lançamento do filme “Servidão” de Renato Barbieri, e que teve a narração da cantora Negra Li.

“A chacina de Unaí foi uma tragédia que marcou não só a categoria dos auditores fiscais do trabalho, mas todos os servidores do Ministério do Trabalho no Brasil e especialmente em Minas. Nestes 20 anos, como homenagem, como compromisso da nossa carreira, nós nos dedicamos com ainda mais fervor ao combate às irregularidades trabalhistas”, afirmou Marcelo Gonçalves Campos, auditor fiscal do trabalho.

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Um dos mandantes, Antério Mânica, chegou a vencer as eleições para prefeito de Unaí, no mesmo ano das execuções, com 72,37% dos votos, mesmo estando preso em Belo Horizonte, após denúncias do Ministério Público Federal de Minas Gerais (MPF-MG). Em 2008, ele foi reeleito. Os irmãos Mânica contactaram Francisco Elder Pinheiro e Hugo Alves Pimenta, responsáveis por intermediar a contratação dos assassinos, segundo o processo.

A condenação dos quatro mandantes do crime veio em 2022, mas, por serem réus primários, puderam recorrer em liberdade. Em 2023, a prisão provisória de José Alberto de Castro, Hugo Alves Pimenta e dos irmãos Mânica foi determinada pela Justiça. José Castro foi detido pela polícia, enquanto Antério Mânica se entregou em Brasília. Norberto Mânica e Hugo Alves Pimenta ainda estão sendo procurados pela Justiça.

“Eu não posso desanimar, tenho esperança de que eles paguem. O que acontece é o retrato de como a Justiça no Brasil trata os pobres. Quantos poderosos, ricos estão pagando pena por algum crime? E quantos pobres, humildes, estão pagando vários crimes, inclusive sem sentença e sem mandado de prisão”, disse Carlos Calazans, superintendente do Ministério do Trabalho em Minas, que acredita que os foragidos estão aguardando habeas corpus ou medida preventiva para se entregar. Calazans afirmou que está cobrando das autoridades uma solução para que os responsáveis que estão sendo buscados pela polícia sejam detidos e cumpram as penas. “Cobrei a Polícia Federal hoje. Eles estão na lista da Interpol.”

Outro envolvido, Humberto Ribeiro dos Santos, foi responsável por desaparecer com a folha do registro do hotel em que os pistoleiros ficaram hospedados na época do crime, com a intenção de dificultar as investigações. Ele chegou a ficar quatro anos preso, mas, após sucessivos recursos, os crimes de favorecimento e formação de quadrilha, pelo qual havia sido acusado, prescreveram, segundo o MPF-MG.

Norberto Mânica confessou, em 2018, e alegou ser o único mandante da morte dos auditores-fiscais. Apesar de ele ter se entregado, a defesa de Mânica disse à época que eles iria recorrer da decisão que considerava “ilegal e injusta”.


TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO

A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, deputada estadual Andréia de Jesus (PT), diz que são necessários investimentos do poder público para que os servidores tenham segurança e melhores condições de trabalho. No momento, Minas Gerais conta com 206 auditores fiscais. O número mínimo para que o trabalho seja realizado no estado, segundo Calazans, é de 400 servidores.

“São dezenas de famílias que vivem essa situação (de trabalho análogo à escravidão) há três gerações, resgatadas nas mesmas fazendas. Existe uma situação de pobreza e miséria que precisa ser enfrentada pelo governo do estado com incentivo, oportunidade de emprego, renda e é preciso pensar alternativas para as famílias que são resgatadas, senão elas voltam para a mesma situação”, afirma a parlamentar.

Andréia de Jesus também chama a atenção para trabalhos análogos à escravidão em ambiente doméstico. “Precisa fiscalizar os serviços domésticos, que é outro desafio. Nas fazendas, fábricas, ainda é possível fazer a fiscalização, já dentro do ambiente doméstico existe uma barreira do espaço privado”. Nos últimos quatro anos, dois casos de trabalho doméstico análogo à escravidão ganharam mídia em Minas Gerais. Em Nova Era, na Região Central, em 2022, uma mulher de 63 anos, que trabalhava durante 32 anos cuidando de dois idosos e em atividades domésticas em duas casas, nunca tinha recebido salários, tirado férias ou tido a carteira de trabalho assinada.

O outro caso, em 2020, foi o de Madalena Gordiano, de 46 anos. Ela vivia reclusa, não recebia salários, não tinha direitos e era constantemente vigiada pelos patrões durante 38 anos, até ser resgatada por auditores fiscais do trabalho e pela Polícia Federal. O crime ocorreu em Patos de Minas, no Alto Paranaíba.

Para tentar sensibilizar a população sobre o problema do trabalho análogo à escravidão em ambiente doméstico, Andréia de Jesus afirmou que existe um projeto de lei para criar a “Semana do Trabalhador Doméstico” que levaria o tema para ser debatido em escolas, CRAS e CREAs.


ACORDO DESCUMPRIDO

A fiscalização de denúncias de trabalho análogo à escravidão está paralisada em 20 estados, inclusive Minas Gerais, desde 11 de janeiro, devido a reclamações dos servidores públicos pelo descumprimento de um acordo que foi firmado com o governo federal em 2016. “É uma luta constante pela reconstrução e valorização da carreira, que há anos vem sendo sucateada, e que tem atuado sob condições precárias de trabalho. Acima de tudo, nossa reivindicação tem como objetivo garantir um cenário adequado para a atuação do sistema federal de inspeção do trabalho, o que resultará em um serviço de proteção efetivo ao trabalhador brasileiro”, afirmou o auditor fiscal Marcelo Campos.

Uma bonificação que também havia sido acertada para os funcionários públicos por desempenho e que ainda não alcançou os auditores fiscais também é cobrada pela categoria. "Há uma expectativa também dos auditores fiscais de receber esse bônus. Foi recebido pela Receita Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e os auditores fiscais reivindicam. Essas carreiras merecem, fazem um trabalho importante para o estado”, afirmou Carlos Calazans, que disse ter esperança de que a situação se resolva em breve.

 

DIA NACIONAL DE COMBATE

A data da chacina dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho que realizavam fiscalizações em fazendas de Unaí, 28 de janeiro, foi escolhida para marcar o dia de combate ao trabalho escravo no Brasil. O país ocupa a 11ª posição nas práticas análogas à escravidão e tráfico de pessoas, segundo levantamento da ONG Walk Free.


Em 2021, foram registradas 1.915 denúncias sobre trabalho análogo à escravidão. Os números registraram forte aumento nos últimos anos, 2022 foram 2.119 e 2023, 3.422 casos relatados. Minas Gerais liderou a quantidade de fiscalizações, com 117, onde foram resgatados 651 trabalhadores. Já quem lidera em número de trabalhadores libertados é Goiás com 739 pessoas em 84 ações.


LINHA DO TEMPO

2004

- Os auditores fiscais Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira do Ministério do Trabalho são assassinados a tiros em uma emboscada durante fiscalização de rotina na zona rural de Unaí.

- Oito meses após o crime, a 9ª Vara Federal de Belo Horizonte atende ao pedido do Ministério Público Federal de Minas Gerais e decreta a prisão de sete pessoas.

- O Ministério Público Federal de Minas oferece denúncia contra Norberto Mânica, Hugo Alves Pimenta, José Alberto de Castro, Francisco Elder Pinheiro, Erinaldo de Vasconcelos Silva, Rogério Alan Rocha Rios, Willian Gomes de Miranda e Humberto Ribeiro dos Santos. Posteriormente, Antério Mânica é incluído como um dos mandantes.

- Em dezembro, é decretada a prisão preventiva dos réus e determinado o julgamento dos envolvidos. Antério Mânica, que havia sido eleito prefeito de Unaí em 2004, tem o processo encaminhado ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) por foro privilegiado.


2005

- Os réus recorrem da sentença, os autos vão para o TRF-1 para serem julgados.

- A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concede liberdade provisória a Norberto Mânica


2006

- Hugo Pimenta, que estava solto por decisão de instância superior, é preso por tentar subornar os autores da chacina para não ser delatado. No mês seguinte, Norberto Mânica tem nova prisão decretada pelo mesmo motivo.

- Dois meses após a prisão de Norberto ter sido decretada, o STJ concede habeas corpus e ele volta a responder em liberdade.


2010

- Humberto Ribeiro dos Santos, responsável por tentar apagar indícios de que os executores estavam hospedados em um hotel da cidade, é libertado devido à prescrição do crime. Ele era acusado de favorecimento pessoal e formação de quadrilha.


2011

- Um dos executores, Wilson Gomes de Miranda, é solto após um erro de interpretação da decisão da Justiça estadual de que ele deveria ser libertado caso as penas a que ele foi condenado tivessem sido cumpridas, mas que deveria seguir encarcerado caso estivesse cumprindo pena por outros motivos. Ele estava em prisão preventiva por decisão da Justiça Federal.

- Três meses após a soltura indevida, William Gomes é recapturado em Mato Grosso.


2013

- O réu Francisco Elder Pinheiro, de 77 anos, morre devido a um AVC, sem ir a julgamento.

- Em agosto, quase nove anos após o crime, começa o julgamento dos pistoleitos Erinaldo Vasconcelos Silva, Rogério Alan Rocha Rios e William Gomes de Miranda. Eles são condenados por quatro homicídios triplamente qualificados. Erinaldo e Rogério ainda são condenados por formação de quadrilha. Erinaldo tem a pena reduzida ao confessar o crime e acertar delação premiada.


- Os julgamentos de Norberto e Antério Mânica, Hugo Pimenta, José de Alberto Carvalho e Humberto Ferreira são suspensos por decisão da Justiça Federal.

 

2015

- A Justiça Federal de Belo Horizonte conden José Alberto de Castro, Norberto e Antério Mânica. Hugo Pimenta também é condenado, mas tem pena reduzida por delação premiada. Os quatro recorrem em liberdade por serem réus primários.


2018

- A defesa de Norberto Mânica assume que ele foi o mandante do assassinato do auditor-fiscal Nelson José da Silva. Desembargadores decidem pela anulação da pena de Antério e pela realização de um novo julgamento.


- As penas de Norberto Mânica, Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro são reduzidas.


2022

- A Justiça Federal de Belo Horizonte inicia, em maio, o novo julgamento de Antério Mânica. Ele é condenado a 64 anos de prisão, mas pode recorrer em liberdade por ser réu primário.

- Em setembro, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decide pela manutenção dos julgamentos de Norberto Mânica, José Alberto de Castro e Hugo Alves Pimenta.


2023

- A 5ª Turma do STJ determina, em setembro, a execução provisória das penas de três dos quatro envolvidos. A 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) ordena a execução provisória da sentença dos irmãos Mânica, após pedido do Ministério Público Federal (MPF).

- Dias após a decisão, José Alberto de Castro é preso e Antério Mânica se entrega na sede da Polícia Federal em Brasília. A pena dele foi ampliada de 64 anos para 89 anos em regime fechado.

- Norberto Mânica, condenado a 56 anos e três meses de prisão, e Hugo Alves Pimenta, condenado a 27 anos, ainda são procurados pelas autoridades.