Realismo mágico de 'Cem anos de solidão' ganha múltiplas cores
Romance clássico do escritor colombiano Gabriel García Márquez tem nova edição no Brasil com ilustrações da artista chilena Luisa Rivera
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Durante quase 30 anos, entre 1986 e 2013, as edições de “Cem anos de solidão” no Brasil foram ilustradas pelo argentino naturalizado brasileiro Carybé, nome artístico de Héctor Julio Páride Bernabó (1911-1997). O próprio Gabriel García Márquez (1927-2014) esteve em 1978 em Salvador, onde Carybé vivia, para uma visita e recebeu os originais do desenhos da fictícia Macondo. Mas essas ilustrações desapareceram do romance desde então, talvez pelo caráter politicamente incorreto para os padrões atuais. As edições seguintes da obra tiveram versão minimalista e linear, em capas com design discreto e sem ilustrações.
Recentemente, a editora Record inovou “Cem anos de solidão” com ilustrações adaptadas de Liza Glanz/Viktorija Reuta/Pixel Buddha/Watercolor Nomads, em belíssima capa dura com uma grande borboleta amarela no centro, entre flores também amarelas, ramos e formigas, todos símbolos do livros.
Agora, mais uma novidade. Acaba de chegar ao mercado brasileiro, também em capa dura, nova edição com ilustrações em aquarela e cores vivas da artista chilena Luisa Rivera, em outra versão da borboleta amarela, flores e formigas e detalhes pertinentes ao famoso romance que levou o escritor colombiano a ganhar o Nobel de Literatura de 1982. O realismo mágico ganha novas cores.
A edição espanhola com as ilustrações de Luisa Rivera foi lançada em 2017 para comemorar os 50 anos de lançamento de “Cem anos de solidão”. Recentemente, a artista comentou o seu trabalho em seu perfil no Instagram. “Há oito anos, a edição ilustrada de ‘Cem anos de solidão’ estava prestes a ser lançada. Até hoje, continua sendo um dos projetos mais belos e desafiadores que já fiz. Naquela época, eu não imaginava que estaria ilustrando mais dois romances de Gabriel García Márquez. Mas, em 2019, chegou ‘O amor nos tempos do cólera’ e, em 2022, ‘Ninguém escreve ao coronel’, cada um com sua própria história e processo”, descreve Luisa Rivera.
Já em entrevista ao perfil Bibliofilia.pty, também no Instagram, a artista chilena falou dos desafios de ilustrar “Cem anos de solidão”. “O primeiro desafio: saber que muitas pessoas leram este livro e, portanto, há um imaginário na cabeça de todas. E cada uma tem uma visão muito diferente de como é Macondo. Como damos a ela uma espécie de verdade imaginária?”, refletiu Luisa.
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“E outro desafio é o realismo mágico, muito difícil de ilustrar. Funciona muito bem em palavras. É difícil porque não é fantasia, nem surrealismo. Tanto assumir essa imagem coletiva que já existia em torno do livro quanto dar forma e imagens ao realismo mágico foram as partes mais difíceis”, detalhou Luisa Rivera.
A saga centenária da família Buendía, da matriarca Úrsula Iguarán, dos muitos Aurelianos, José Arcádio, Remédios e o realismo mágico ganham muitas cores nos traços de Luisa Rivera, condizentes com as histórias e os múltiplos personagens.
A fictícia Macondo, inspirada em Aracataca, no interior da Colômbia onde García Márquez nasceu, é o cenário da estirpe solitária da famílía, uma extensa árvore genealógica na qual os personagens percorrem cem anos de solidão, cada uma à sua maneira, entre glórias e tragédias, da alvorada ao crepúsculo de todas as sucessivas gerações.
POR QUE LER
Mas por que ler, reler, contemplar agora a edição com ilustrações em cores e recomendar “Cem anos de solidão”? Para começar, pelo caráter histórico, porque o romance conta a trajetória do própria América Latina, explorada por europeus e norte-americanos. Em “Cem anos de solidão”, García Márquez resume essa tragédia por meio da companhia bananeira norte-americana United Fruit Company e do “Massacre das Bananeiras”, ocorrido em 1928, quando o exército reprimiu com violência a greve de trabalhadores que reivindicavam melhores condições de trabalho.
Esse colonialismo sem fim, segundo García Márquez, jogou o continente em profunda solidão e atraso. Em seu longo discurso em Estocolmo, em 1982, quando recebeu o Nobel de Literatura, o escritor declarou: “Por que pensar que a justiça social que os europeus desenvolvidos tratam de impor em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano, com métodos distintos e em condições diferentes?”
“Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão”, protestou o escritor diante da realeza sueca.
Em “Cem anos de solidão”, esse abandono histórico é emblemático, representado, por exemplo, pelo impressionante e gradual enlouquecimento de José Arcádio, patriarca dos Buendía, e pela chuva constante como um dilúvio eterno.
Outra razão para ler “Cem anos de solidão” é o talento de García Márquez, um exímio contador de histórias, para mesclar realidade e fantasia, tragédia e lirismo, como a chuva de flores amarelas durante um enterro. Disse ele que por mais imaginativas que sejam as histórias narradas no livro, cada uma foi inspirada na realidade. É o caso de Remédios, a Bela, que não morreu, levitou e subiu ao céu levada pelo vento diante dos olhos de parentes. García Márquez revelou que essa passagem não saiu de sua imaginação, ele a ouviu de pessoas de seu povoado.
A fusão do escritor com o repórter, que García Márquez também foi, criou uma literatura que leva o leitor a mergulhar na cultura e na política da América Latina, o que já basta para tornar seus livros indispensáveis.
“CEM ANOS DE SOLIDÃO”
• De Gabriel García Márquez
• Ilustrações: Luisa Rivera
• Tradução: Eric Nepomuceno
• Editora Record
• páginas
• 167,88