A arte de Pujol Filho: fazer literatura com textos de parede
Em ‘Nosso corpo estranho’, o gaúcho usa a paródia para construir narrativa a partir de textos semelhantes aos utilizados nas mostras de arte contemporânea
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Siga noGraça Ramos
Especial para o EM
O espanhol Manuel Borja-Villel, no livro “Campos magnéticos: escritos de arte e política”, faz questão de afirmar que “a arte atual adoeceu por às vezes ser discursiva demais”. Em “Nosso corpo estranho”, o escritor gaúcho Reginaldo Pujol Filho vai um pouco mais além do que ocorre nas exposições contemporâneas e constrói uma mostra feita apenas de relatos. Não existem objetos nas salas visitadas, e os textos nelas presentes resultam nos capítulos de um romance de caráter inovador.
Pujol é professor, doutor em Letras na área de escrita criativa e fez valer a sua formação. Levou dez anos entre a pesquisa e a conclusão do romance. Criou narrativa que leva a pessoa leitora a imaginar serem as exposições de arte da atualidade algo próximo de uma obra literária de ficção. São muitos os exercícios intertextuais e paródicos estabelecidos, a começar pelo clichê da frase de abertura – “Caetano já nos disse: de perto, ninguém é normal”.
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Tudo gira em torno da vida e da obra do artista João Pedro Bennetti Bier. Assim como o autor do romance, o personagem nasceu em Porto Alegre, mas se mudou jovem para Nova York, onde cresceu e se iniciou na arte. Da mesma maneira que falta materialidade à sua exposição retrospectiva póstuma, a vida de JP ou JayPee – apelido da época do High School – se pauta por indefinições e ausências.
O trauma da morte do pai quando criança e o casamento da mãe com um diplomata são circunstâncias devastadoras, e refletiram em sua produção artística. Menino rico sem aconchego, adolescente a sofrer discriminações xenófobas, jovem de sexualidade fluida, ele se assume gay, contrai HIV, aparentemente de maneira voluntária, e vem a morrer. Nesse intervalo do existir, João Pedro se encanta com as ideias de Joseph Kosuth, artista fundamental da arte conceitual surgida nos anos 1960, e se aproxima da literatura de Albert Camus.
Nascido em 1960, vinte anos depois, ele vivenciou a loucura livre da vida novaiorquina de então. Por meio do padrasto, conheceu Andy Warhol, mas sem deslanchar a carreira à maneira do astro da pop arte. “É que João Pedro parece ter trabalhado a vida inteira para não ser: da família, do país, da política, de correntes artísticas, do mercado. Ser e não ser”, diz o curador, que tem nome do escritor do romance e assina o prefácio do livro.
A rememoração da angústia à moda do Hamlet shakespeariano constitui a atualização paródica de uma existência em transição do dramático para o trágico. E a paródia, como bem alerta Verônica Stigger, na orelha do livro, se faz “o principal procedimento” das narrativas de Reginaldo Pujol, aqui se referindo ao autor do livro, maneira de evitar confusões entre as superposições de nomes operadas na narrativa.
Na opção por escrever sobre uma exposição feita somente de textos, Pujol parece radicalizar também de forma paródica a máxima do artista contemporâneo norte-americano Lawrence Weiner (1942 – 2021), também figura central da arte conceitual. Defensor da ideia de que a linguagem tem um caráter escultural, ele pregava: “o artista pode arquitetar a peça; a peça pode ser fabricada; a peça não precisa ser construída”, e esse processo já se denomina arte.
O fato de o curador expor, em cada parede, um texto com a identificação da obra e explicações sobre a vida do artista naquele momento, além de explorar sentidos para o trabalho descrito, isso se torna a obra de arte. Na soma de muitas salas, se arma o outro jogo fundamental: o romance sendo construído. O formato do objeto livro ajuda a dar a ideia de algo em construção. Com poucas exceções, a edição ignora as páginas de numeração par, que permanecem em branco. Quase tudo se passa nas páginas ímpares.
Narrativa diferenciada, pois, ao caráter de seriedade, comum aos “textos de parede” das exposições que ocorrem no mundo real, soma-se certo gosto pela zombaria por ser tudo obra de ficção. Uma jocosidade que em leitura mais apressada pode ser entendida apenas como crítica a uma certa pasteurização encontrada em curadorias de muitas exposições.
São muitas as outras paródias estabelecidas: com um dos mais antigos livros da história da arte, o clássico “Vida dos artistas”, de Giorgio Vasari, escrito em 1550; com o formato das exposições de arte contemporânea, quase sempre pendentes de textos nas paredes com o objetivo de ampliar a recepção do exposto; com a linguagem usada por grande número de curadoras e curadores, que abusam de palavras à semelhança de “atravessamentos”, “devir” e “potência”.
Mesmo o percurso artístico de João Pedro, como assina suas obras, se estabelece em torno à paródia. Quase tudo por ele produzido está mais ancorado e menos em diálogo com algum nome consagrado do cenário artístico. Aqui, a pesquisa feita por Pujol mostra-se imensa. Muitos são os nomes e as técnicas mencionadas. Um dos exemplos é a peça “Please, do not touch” (Por favor, não toque), de nome inspirado na icônica “Please touch”, de Marcel Duchamp. A aproximação se dá também na semelhança ocorrida no tempo de produção, pois os trabalhos surgem após um tempo de silêncio.
Ao longo das páginas, as operações intertextuais ganham corpo. A paródia intensifica-se. Se, à primeira vista, o sentido desse gênero literário parece exalar apenas a ideia de ridicularizar tendências ou estilos, em última instância, o recurso paródico significa reverência. Aquele que parodia reconhece qualidades do texto anterior, e, ouço pensar, termina por elogiá-lo.
Reginaldo Pujol Filho, o autor do romance – faz-se necessário novamente identificá-lo – se arriscou muito ao exagerar no recurso paródico, pois poderia ter resultado em um romance burlesco e caricatural. Mas no final, a estratégia deu certo. “Nosso corpo estranho” constitui-se em um desafio narrativo a investigar limites da linguagem e da arte. Quem ler com atenção, despido de preconceitos, dificilmente verá uma exposição com os olhos de antes.
GRAÇA RAMOS, doutora em História da Arte, é autora de “O apagamento de Volpi: presença em Brasília” (Tema Editorial).
Trecho
“Food for the soul”, 1984
(Alimento para a alma)
Fezes, fotos, caderno
Exemplo eloquente do desafio que a arte contemporânea impõe ao público, “Food for the soul” surge à primeira vista como instalação escultórica cujo objeto central (barro? argila?) conforma-se entre o fálico e o totêmico. É, porém, epílogo de um processo. Bobby Neizvesten recorda que “ele via no Joseph Kosuth um tipo de pai, guia. Pediu o contato”.
A visita de Kosuth de visitar o “studio” do artista reviveu velhas e novas cicatrizes. “Um e trinta mil egos”, anotou. Ato contínuo, por trinta dias, alimentou-se apenas em vernissagens e eventos artísticos. Coletou as fezes do período e registrou pictórica e reflexivamente o percurso.

Sobre o autor
Nascido em Porto Alegre em 1980, Reginaldo Pujol Filho é autor dos livros “Azar do personagem”,“Quero ser Reginaldo Pujol Filho”, “Só faltou o título”e“Não, não é bem isso”.Com pós-graduação em Artes da Escrita pela Universidade Nova de Lisboa, mestre e doutor em Escrita Criativa pela PUC-RS, ministra atividades e cursos relativos à produção literária.

"Nosso corpo estranho"
“Nosso corpo estranho”
• De Reginaldo Pujol Filho
• Fósforo
• 112 páginas
• R$ 69,90