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PENSAR

Juan Cárdenas faz romance sobre a involução das espécies

Em ‘O diabo das províncias’, escritor colombiano expõe a irracionalidade humana a partir das desventuras em série de um biólogo de volta à cidade onde nasceu

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Um narrador onipresente mas nada onisciente, chamado simplesmente de “o biólogo”, volta à “cidade anã” de onde saiu para ser confrontado pelas consequências das ações incessantes de conterrâneos que, ao contrário dele, vivem intensamente suas vidas em vez de as examinarem pelo microscópio. O tal biólogo, ao se tornar professor de um internato feminino e revisitar traumas familiares, acaba vivendo desventuras em série até conseguir, de novo, habitar a própria casa no interior da Colômbia (mas poderia ser no Brasil).

Assim é “O diabo das províncias” (DBA), único romance do escritor colombiano Juan Cárdenas a ganhar edição brasileira. Nascido em 1978, o autor faz do livro um vertiginoso passeio pelo coração da América Latina a partir dos embates, alguns inadvertidos, de seu protagonista com aspectos intrínsecos à formação do continente, como a religiosidade e a violência estrutural. Mas não pensem que Cárdenas enxerga esses confrontos como uma forma de o seu biólogo quitar pendências do passado. “Não creio que o romance seja um acerto de contas com nada, nem mesmo com os horrores dos nossos países, que no romance aparecem observados com uma espécie de objetividade entomológica”, afirma, em entrevista ao Estado de Minas.

Pesquisador e coordenador do programa de mestrado em Escrita Criativa no Instituto Caro y Cuervo, em Bogotá, e tradutor de Machado de Assis e Eça de Queiroz, Cárdenas participou da mais recente edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em outubro último. Dividiu a mesa “Inventar a América Latina” com o brasileiro Joca Reiners Terron. “Não sou tão catastrófico quanto o Joca, mas gosto da incompletude, do assimétrico, do incompleto. Esse romance (‘O diabo das províncias’) está cheio de histórias que não têm desfecho. Recebi algumas críticas, mas o livro é assim, tinha de ser assim”, afirmou, em resposta a uma das perguntas da mediadora, Noemi Jaffe. “Foi uma experiência muito linda, pelo lugar especial onde se realiza o festival, mas também pelas pessoas maravilhosas que conheci lá, as palestras, pelo forró do outro lado do rio”, lembra ao Pensar.

A partir do olhar desapaixonado do biólogo, que tenta encarar a irracionalidade com a objetividade científica, Cárdenas apresenta passagens particularmente brilhantes, como a explicação do motivo de o personagem ter aversão às cada vez mais populares teorias da conspiração. “Sempre as considerava deselegantes, muito caóticas e, em resumo, destinadas a favorecer explicações simplistas e ideológicas para fenômenos complexos, muitas vezes baseando-se em falácias, raciocínios circulares, coincidências inverossímeis e emboscadas argumentativas”, afirma.

Leia, a seguir, a entrevista de Juan Cárdenas ao Estado de Minas.

Como surge “O diabo das províncias”?


É uma pergunta difícil de responder porque nunca se sabe de onde vem ou como surge um livro. Na verdade, eu diria que o ponto de partida de um livro como “O diabo das províncias” é precisamente uma ignorância, um não-saber, uma perplexidade que inicia uma pesquisa. O livro de fato tem a forma superficial de um romance policial. E o que eu não sabia? Eu não sabia, e ainda não sei, por exemplo, se o capitalismo é uma estratégia evolutiva da nossa espécie. Uma adaptação que visa a nossa sobrevivência que, ao que tudo indica, está a correr muito mal e provavelmente acabará por provocar o contrário, ou seja, a nossa extinção. A natureza conspira apenas para garantir que a vida continue, em nenhum caso para garantir a sobrevivência de qualquer espécie em particular. E é possível que as nossas conspirações humanas façam parte dessa conspiração maior da vida.

Poderia explicar ao nosso leitor por que incluiu o subtítulo “Fábulas em miniaturas”?


Gosto muito da ideia de que os romances modernos são como repositórios de formas arcaicas de contar histórias. Além disso, nas fábulas os animais contam, eles interagem com as pessoas, tal como acontece nos mitos amazônicos, que são outra das fontes nas quais este livro se baseia.

Como surgiu o personagem do biólogo? O que você emprestou de sua vida e de suas experiências e observações ao personagem?


O biólogo surge, é claro, da minha própria experiência como emigrante retornado. Mas é também uma espécie de monstro de Frankenstein feito de pedaços de muitas outras vidas de amigos, vizinhos, conhecidos.

Em várias passagens do livro o biólogo é confrontado pela fé e pela violência em seu país. Como arquitetou esse embate?


Não tenho fé na nossa atual estratégia de sobrevivência, ou seja, não tenho esperança colocada no capitalismo vivido como religião. E, pelo contrário, tenho medo da religião vivida como uma forma de capitalismo, que é o que acontece diariamente em países como a Colômbia ou o Brasil, onde o fogo religioso do nosso povo é usado contra o próprio povo. Por outro lado, tenho fé numa espécie de espírito antropofágico, nos elevados mistérios da razão tropical. Meu romance fica sobre toda aquela lama, como uma humilde e luminosa palafita.

Quais são as características intrinsecamente colombianas da “cidade anã” do livro e quais podem ser encontradas em toda a América Latina?


Nem sei se existe algo intrinsecamente colombiano, brasileiro ou paraguaio no mundo. Sinceramente, não procuro captar qualquer tipo de essência nacional. Estou interessado no concreto, não no nacional. E quanto mais concreto for, mais traduzível será para outras formas do concreto. Conversei com pessoas de Nebraska, Tailândia ou Grécia que me disseram que tudo o que conto no livro lhes é familiar, especialmente o processo de entrega do personagem às forças das trevas que o cercam. A experiência humana deve ser procurada aí, no superconcreto.

Um dos personagens aconselha o narrador a “tomar banho no escuro” por ser “a melhor forma de organizar as ideias”. Como você organizou suas ideias para esse romance? E o que aconselha aos seus alunos de mestrado em escrita criativa?


Suponho que o processo tenha algo daquela experiência estranha e misteriosa de se sentir no escuro, embora exista um sistema, é claro. Sou muito fiel à linha conceitual dos meus livros porque daí surgem os procedimentos que me permitem escrevê-los, mas a partir de um momento também há desvios, improvisações, saltos, traições. Geralmente não dou conselhos, nem mesmo para alunos de mestrado. Na verdade, rejeito completamente a ideia do discípulo ou do aprendiz de feiticeiro.

Você foi um dos convidados da Flip 2024. O que mais o marcou na passagem por Paraty?
Foi uma experiência muito linda, pelo lugar especial onde se realiza o festival, mas também pelas pessoas maravilhosas que conheci lá, as palestras, pelo forró do outro lado do rio. E é sempre, sempre uma alegria conversar com meu amigo Joca Reiners Terron.

Você já traduziu Machado de Assis. A fina ironia que aparece em algumas passagens do livro é inspirada na obra de Machado? O que mais o fascina nos livros de Machado? Quais outros escritores brasileiros você admira?


Gostaria que minha ironia fosse tão fina e cortante quanto a de Machado, que é um dos grandes escritores latino-americanos de todos os tempos. Um gênio total e uma fonte inesgotável de situações e recursos romanescos. Sou um grande leitor e admirador da literatura brasileira. Para citar alguns nomes, além de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, que são diretamente deuses para mim: Ferreira Gullar, (João Gilberto) Noll, Hilda Hilst, Dalton Trevisan, João Cabral de Melo Neto e Elvira Vigna. 

Trecho
(De “O diabo das províncias”, de Juan Cárdenas)


“O biólogo pensou ter visto algo se mover naqueles frascos. Eram coisas vivas ou mortas? Veio à mente o que o díler dissera das suas descobertas nas viagens no chuveiro, aquilo de que quase tudo acontece dentro da cabeça e na língua: uma desculpa para esquecer o corpo, para tirá-lo da equação por alguns minutos, mas na verdade o corpo é o corpo. Tudo que acontece é corpo. Não existe fora do corpo. Ou melhor, o fora ocorre dentro do corpo. Somos organismos vivos como todos os outros. Agora vou morrer.”

Mais dois livros

Depois de “O diabo das províncias”, lançado no segundo semestre de 2024, a DBA promete editar no Brasil mais dois romances de Juan Cárdenas. “Ornamento” chega às livrarias no segundo semestre deste ano. Em 2026 será a vez de “Peregrino transparente”.

“O diabo das províncias: Fábula em miniaturas”


De Juan Cárdenas
Tradução de Marina Waquil
DBA
148 páginas
R$ 64

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