heloisa Starling é professora titular do Departamento de História da UFMG -  (crédito: Reprodução)

Heloisa Starling é professora titular do Departamento de História da UFMG

crédito: Reprodução

A recordação dos 60 anos do golpe militar que destituiu o governo legalmente eleito de João Goulart e deu início a uma ditadura que perdurou por 21 anos no comando do Brasil ocorre em um contexto emblemático da história brasileira. Desde a redemocratização, talvez em nenhum outro momento o aniversário dos dias 31 de março e 1º de abril de 1964 tenha parecido tão associado ao noticiário contemporâneo, em que são desvendadas tentativas recentes de abolição do Estado democrático de direito em narrativas tingidas de amarelo e verde (por vezes, verde-oliva).

 

É sob a égide de disseminar o conhecimento sobre o passado para ampliar o repertório de defesa da democracia que a historiadora Heloisa Starling se debruça sobre seis dias marcantes para entender o que acontecia no país há seis décadas em livro que teve seus dois primeiros capítulos lançados neste mês pela Companhia das Letras.

 

Em “A máquina do golpe - 1964: Como foi desmontada a democracia no Brasil”, a professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) traz um relato minucioso dos movimentos que deram cabo à democracia brasileira na sinfonia composta e executada há 60 anos pelos militares e setores da sociedade civil. A obra é dividida em seis capítulos, sendo dois deles lançados a cada mês.

 

O primeiro terço está disponível para download na biblioteca digital de plataformas como o Google, Apple e Amazon por R$ 9,90. O próximo será em abril e os dois últimos em maio. Finalizado o lançamento segmentado, a obra será publicada em edição completa e impressa ainda no primeiro semestre.

 

 

Cada capítulo do livro narra os acontecimentos de um dia entre 31 de março e 15 de abril de 1964, datas que marcam a saída das tropas comandadas pelo general Olympio Mourão de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro e a posse de Humberto Castello Branco, primeiro a comandar a ditadura militar.

 

Com foco em narrar os acontecimentos que deram origem ao sistema de repressão que se garantiu no poder por mais de duas décadas, Starling não se furta em fazer digressões oportunas que ajudam a contextualizar como o sucesso do golpe de 64 remonta a uma tradição de intervenções antidemocráticas das Forças Armadas no Brasil.

 

Em entrevista ao Pensar, a historiadora fala sobre o processo de escrita do livro, comenta semelhanças entre os elementos de 64 e os que novamente ganharam às ruas nos últimos anos e teve seu epítome nos atentados de 8 de janeiro, e questiona o posicionamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao tentar retirar a lembrança dos 60 anos do golpe dos holofotes da agenda oficial do país. Ao falar sobre a postura do governo federal, a professora é categórica: o Brasil não pode perder a chance de pôr fim à ‘tutela militar sobre a república’.

 

Como surgiu a ideia de escrever um livro especificamente sobre o golpe de 1964? E como serão divididos os próximos capítulos?


A ideia é contar o que é um golpe de Estado, quais são suas fases e como ele deu certo, foi vitorioso. A minha ideia é mesmo “A máquina do golpe”. Como foi montada a conspiração, o momento em que você precisa criar uma situação de desordem institucional. Pense no 8 de janeiro, por exemplo: aquela cena que vimos na Praça dos Três Poderes é a tentativa de criar uma situação de desordem institucional que permita depor o presidente e entrar na terceira fase, que é , efetivamente, ocupar o poder. No caso do golpe de 64, o movimento estava planejado para sair entre os dias 2 e 4 com um exército poderoso que era o de São Paulo.

 

E o general Mourão antecipou o golpe, mas a fase de desordem institucional era essa. Nos próximos capítulos, eu vou contar como foi ocupado o poder. A deposição do Jango aconteceu no dia 2 de abril, e depois os outros dias que contam como foi conquistado o poder e como ele foi conservado. Existem várias formas de tirar um presidente da República. Você pode forçar o sujeito a renunciar; você pode fazer um impeachment; você pode matar, fazer um atentado; e existe o golpe. E nem tudo é golpe, então, eu queria pensar nessa estrutura, que até o golpe existe um amplo tempo e muitos movimentos. Lá no primeiro capítulo, por exemplo, eu vou voltar para ver um outro golpe bem-sucedido no Brasil e que também teve a participação do general Mourão, que foi o golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, em 1937.

 

De alguma forma, há também então uma discussão sobre o termo ‘golpe’?


Algo que acho que a gente precisa ficar atento é que nem tudo é golpe. Se nós começarmos a dizer que tudo é golpe, o risco é a gente perder a dimensão do perigo. Por isso eu estou preocupada em mostrar as etapas, como tudo foi concebido, quem concebeu. A importância de se conhecer a história de 64 também é essa: ao entender o que aconteceu lá a gente cria repertório para hoje. Para que a gente possa defender a democracia, é importante entender os momentos em que ela foi destruída.

 

Essa correlação entre 1937 e 1964 e a elaboração do Plano Cohen mostra como essa raiz golpista já vinha sendo gestada?


É porque isso que estamos chamando da preparação do golpe faz parte da dinâmica e das fases de um Golpe de Estado. Os conspiradores vão pensar o seguinte: como é que eu crio uma situação de desordem institucional para derrubar o presidente e ocupar o estado? No 8 de janeiro a situação de desordem é o caos. O Bolsonaro tentou fazer isso, por exemplo, quando ele tenta um movimento golpista chamado de pronunciamento, que é quando se convoca a sociedade às ruas, chama um golpe militar e as Forças Armadas respondem dizendo que estão atendendo à sociedade brasileira. O que aconteceu em 64 foi uma terceira modalidade de desordem institucional, a quartelada.

 

Eu saio do quartel com a tropa e espero as outras unidades do exército aderirem. Foi o que o General Mourão fez. Certamente, se ele não tivesse precipitado o golpe, o movimento militar seria um pouquinho diferente, porque sairia o exército de São Paulo. No caso de 1937, o que é interessante na história do General Mourão é ele estar metido na criação dessa situação nos dois golpes bem-sucedidos da nossa história republicana. Só que em 1937 ele faz algo que hoje nós chamamos de fake news, o chamado Plano Cohen.

 

Ao invés de botar as tropas na rua, criou-se uma situação de pânico porque os comunistas iriam tomar o poder. Essa situação foi amplamente divulgada pela imprensa e permitiu que (Getúlio) Vargas declarasse o estado de guerra, suspendesse as garantias e decretasse o que seria equivalente a um estado de sítio hoje. Ele fecha o congresso e decreta a Ditadura do Estado Novo.

 

Mesmo entre 1937 e 1964 houve outras tentativas malogradas de golpe.


Sim, Aragarças e Jacareacanga, por exemplo, foram tentativas de criar essa situação de desordem institucional. Em uma delas a ideia era bombardear o Palácio das Laranjeiras com o Juscelino (Kubitschek) dentro e a outra envolvia interceptar aviões, um deles aqui em Belo Horizonte, e esperar a adesão do resto das unidades. Nenhum dos dois deu certo.

 

Quais elementos explicam a concretização do golpe em 64?


Você monta uma rede de conspiração com alguns atores muito importantes. Um são os empresários que vou tratar em um capítulo também sobre como os grandes empresários e banqueiros vão se articular junto com a Escola Superior de Guerra e como esse nó da rede vai permitir recursos financeiros, montagem de projeto político e consideração. Esse é um elo. Outro elemento importante de apoios que permite a sustentação do golpe é o fato de que uma fatia da sociedade vai para a rua fazer a Marcha da Família apoiando o golpe, então tem uma fatia larga da sociedade.

 

O terceiro elemento foi a criação de uma propaganda ao mesmo tempo capaz de desmoralizar o governo de Goulart e criar o pânico do comunismo, de que o Brasil estava correndo perigo. Essa propaganda passa tanto pela imprensa como pela criação de revistas, panfletos… eles também fazem algo interessantíssimo que são filmes curtos de propaganda e passam isso em cidades do interior. Pensa só: se reuniam todos na praça para ver um filme e ali você faz propaganda ideológica. Além disso, houve apoio internacional. Se você junta esse quebra-cabeça, a gente consegue começar a entender que os militares não estavam sozinhos e esse foi um projeto muito grande. Na outra ponta, a reação das forças progressistas, do campo das esquerdas, se estilhaça.

 

O governo de Goulart não reage de forma incisiva contra esse processo que está acontecendo desde 1961. A esquerda não se unifica. No dia 1º, por exemplo, vai pipocar uma ação aqui outra acolá, mas nada com comando unificado. Jango, por sua vez, sai do Rio de Janeiro, que era o centro político no momento, e não convoca a resistência. Ele poderia ter convocado as rádios que estavam a favor do governo, que eram muitas, convocado a imprensa, ter ficado no Rio de Janeiro e assumido a resistência. Os movimentos preparatórios do golpe foram acontecendo sem enfrentar uma resistência direta e isso tem consequências, claro.


De alguma forma essa resistência já tinha impedido golpes antes?


Sim. Em 1961. Quando Jânio Quadros renuncia e os ministros militares tentam dar um golpe dizendo ao congresso que o Jango não poderia assumir, (Leonel) Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, faz uma campanha extraordinária pela democracia, uma das coisas mais bonitas da história, que foi a Campanha da Legalidade, unindo o Brasil todo não na defesa de uma figura, mas na defesa da democracia.

 

Uma coisa importante que acontece no 8 de janeiro agora é o fato de que uma fatia larga da sociedade se dispôs a defender a democracia, o que é muito importante. A imprensa estava toda ao lado da democracia, assim como o Supremo Tribunal Federal (STF). Se você compara com 1964, o presidente do STF (Ribeiro da Costa) estava lá abençoando a deposição do Jango e rasgando a Constituição.

 

Nos dias de hoje, vemos como as investigações apontam que o último governo tentou atuar em várias frentes para se manter no poder de forma antidemocrática. O livro, de alguma forma, também trata sobre essa variedade de ataques à democracia?


Existem várias formas de detonar o golpe. Uma coisa que é interessante em 1964 é que o leitor provavelmente vai reconhecer a permanência de alguns elementos. Em Minas, a organização paramilitar que os golpistas criam para se identificar é uma braçadeira verde e amarela. Eles se autodenominam patriotas. As marchas de 64 lembram muito as de hoje. Isso mostra como devemos prestar atenção na construção de uma cultura democrática, porque isso não é algo que apareceu hoje. Existe um imaginário autoritário dentro de uma fatia da sociedade brasileira há muito tempo.

 

Neste sentido, como a senhora avalia as falas recentes de Lula sobre a recordação dos 60 anos do golpe? Ele fala em não ‘remoer o passado’ e diz que os generais atuais eram crianças ou não eram vivos em 1964.


Há um equívoco nessa fala do presidente. Ele está dizendo que os generais eram crianças, mas não eram. Esses generais e o próprio Bolsonaro foram treinados na formação militar deles por militares que não só participaram do golpe, como participaram da repressão da ditadura brasileira. É assim que se forma uma ideologia. Eles não precisam estar do lado do Mourão saindo de Juiz de Fora, eles foram formados por militares que atuaram diretamente na repressão. Por isso que evocam a ditadura militar como essa utopia autoritária.

 

Outro equívoco que há na fala do Lula é que conhecer a história do golpe significa formar um repertório para que a gente possa defender a democracia no presente. E penso que o Brasil tem hoje uma oportunidade que não deveria perder: a de alterar e pôr fim no que eu chamo de tutela militar sobre a república. É preciso fazer uma boa discussão na sociedade para que a gente possa definir o que é o projeto de atuação das Forças Armadas, como vamos tirar a ambiguidade na leitura do artigo 142 da Constituição.

 

E a terceira coisa é fazer com que as escolas militares tenham o mesmo currículo que o restante das escolas do Brasil, elas não podem ter um currículo próprio, as Forças Armadas não estão à parte do país. Em 1964, há uma diferença na intervenção. Ao longo da república você tem os militares intervindo e devolvendo o poder aos civis. Em 64, os governadores golpistas, Magalhães Pinto (Minas Gerais), Carlos Lacerda (Guanabara) e Adhemar de Barros (São Paulo), acreditavam que ia acontecer a mesma coisa e viriam as eleições de 1965. Mas o golpe traiu parte dos seus protagonistas e esses caras que apoiaram tão fortemente o golpe e que acreditavam que seriam candidatos no ano seguinte, vão descobrir, em outubro de 64, o Ato Institucional nº 2, que acaba com as eleições presidenciais no Brasil.

 

O que houve de diferente em 64 que ajuda a explicar os 21 anos de ditadura?


A primeira coisa foi o projeto de ocupação do poder montado pelos militares e empresários golpistas. Eles não iam devolver o poder. Esse projeto estava sendo montado desde 1961. Há um grupo dentro das Forças Armadas, formado na Escola Superior de Guerra, que pensou em todas as etapas, inclusive na consolidação do poder. É um golpe totalmente diferente nesse sentido, tanto que os empresários vão indicar nomes para os órgãos de planejamento e gestão econômica logo que Castello Branco assume e vão, eles próprios, ocupar a máquina do Estado. Outra coisa que talvez seja interessante para pensarmos é ver como foi montada uma estrutura, já em junho de 64, com os atos institucionais, que foram 17 ao longo da ditadura.

 

Depois, você pensa na estrutura de repressão. Vale lembrar que o SNI (Serviço Nacional de Informações), que vai ser a cabeça dessa estrutura, já é instalado em junho de 1964. É claro que haverá disputa de poder entre os militares, entre civis, mas a diferença é essa: houve um planejamento não só para a deposição do Jango, mas para a ocupação do Estado. Tem uma cena que é muito importante que mostra como esse cara entendia de política. Na hora que o Jango é deposto, Tancredo Neves, líder do governo naquele momento, sai do plenário e diz para os jornalistas: “Estão entregando o Brasil aos militares por 20 anos”. Tancredo entendeu. Ele não era de esquerda, mas era um grande democrata. Todas as vezes que a democracia esteve ameaçada, ele defendeu. 

 

“A MÁQUINA DO GOLPE - 1964:
COMO FOI DESMONTADA A
DEMOCRACIA NO BRASIL”
- Heloisa Starling
- 125 páginas
- Dois primeiros capítulos
disponíveis para download na
biblioteca digital de
plataformas como Google,
Apple e Amazon por R$ 9,90

Capa do livro

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