Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile, e é considerado um dos grandes nomes da literatura mundial. -  (crédito: Site Companhia das Letras/Reprodução)

Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile, e é considerado um dos grandes nomes da literatura mundial.

crédito: Site Companhia das Letras/Reprodução

 

GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO
ESPECIAL PARA O EM

 

“Devemos um fígado a Bolaño”. A frase é de Nicanor Parra, poeta chileno como Roberto Bolaño, e foi divulgada poucos meses depois da morte do escritor, em 2003. É o mais conhecido e talvez o mais radical dos epitáfios de Bolaño. Além de lamentar a perda do amigo e de incluir todos no processo do luto, o autor de “Poemas e antipoemas” foi capaz de nomear, através dela, questões chave da obra de Bolaño. Com a contundência que caracteriza sua poesia, Parra oferece, numa única palavra de sentidos contraditórios – “dever” – uma senha de leitura para muitos trabalhos de Bolaño.

 

Dessa palavra é possível derivar tanto o compromisso e a responsabilidade (a consciência do dever) quanto a perseguição e os apertos da dívida. Ou em outros termos: são questões de princípios e de pobreza. E quem fala em deveres e dívidas fala também de legado, isto é, das contas a prestar e do que ficará para trás depois do fim.

 

 

“O gaucho insofrível”, que a Companhia das Letras acaba de publicar, traz ao centro da cena as questões cortantes do dever, da dívida e do legado. Os textos que constam no volume são alguns dos escritos finais do autor. Neles, a presença da morte e da doença são incontornáveis. Mas não ofuscantes. Como antecipa a epígrafe colhida em Kafka (nome decisivo na constelação desse livro), para o autor parece importar mais o que resta, o que sobrevive; aquilo que, afinal, não se perderá de todo.

 

Nesse sentido, os contos e conferências reunidos no livro não são prefigurações da morte, mas desafios lançados a ela. Provocações e ironias diante do abismo. Algumas, aliás, engraçadíssimas. De par com a tragédia da violência, da catástrofe econômica e da enfermidade incurável, o humor avulta. É um dos componentes fundamentais daquilo que o escritor quer deixar depois de tudo – a herança de um deserdado.

 

A releitura que Bolaño faz, no conto título, da literatura viril dos pampas é disruptiva porque ri do caos, da desagregação e dos mitos da macheza latino-americana. A fim de discorrer sobre as relações entre a criação literária e a doença, o autor, ele mesmo já bastante doente, vai deslendo poetas célebres e sérios da tradição para desvelar-lhes o ridículo, todos adoentados ou hipocondríacos: Mallarmé, Alfonso Reyes, Baudelaire.

 

Leia: Conheça os principais livros da literatura de Cuba traduzidos no Brasil

 

O avanço contemporâneo da má literatura – uma literatura de grandes vendas que é, sobretudo, “amena”, “clara”, “legível” – é apresentado de modo divertido em “Os mitos Cthulhu”, que faz piadas com a maquinaria grotesca da publicidade literária, seus talk shows, autógrafos e sorrisos. O humor é uma das respostas de Bolaño ao seu tempo. Mas nem só de gracejos é feito “O gaucho insofrível”.

 

Falemos agora de dívidas. A bancarrota argentina de 2001, que levou o país à falência e a população às ruas (a Argentina teve quatro presidentes em poucas semanas), estava ligada ao alto endividamento externo.

 

O confisco das contas bancárias que se seguiu produziu fome e mais dívidas. Esse contexto serviu a Bolaño como mote para um dos seus melhores contos. Nele, o autor explicita as leituras portenhas que fez e tenta quitar o débito que tem com os argentinos.

 

Bolaño reescreve Borges, Cortázar, Di Benedetto, Wilcock, buscando infiltrar-se na tradição do país. Reescrever, para o autor, não é produzir um pastiche bem armado. É intervir, desfazer, sabotar.

 

“O gaucho insofrível” é a história de um homem dos pampas. Não a biografia de um gaúcho, mas de um advogado de Buenos Aires que, ante o desmoronamento da economia, decide voltar ao sul a fim de conectar-se com o passado – e a verdade – da Argentina. Seu conhecimento da região é apenas livresco.

 

A cada passo reconhece cenários de Güiraldes, do “Martín Fierro”, dos cavaleiros de Benedetto: “Recordou, como era inevitável, o conto “O sul”, de Borges, e depois de imaginar o armazém dos parágrafos finais seus olhos se umedeceram”. O conto é uma farsa, mas não só isso.

 

Leia: Leonardo Padura: 'O tempo e a história são implacáveis'

 

Hector Pereda atravessa a planície como “se passeasse por um museu portátil”. Tudo o que encontra são ruínas. No lugar da valentia, figuras apáticas; dos amplos rebanhos, estranhos coelhos. Tudo em volta está deserto. Ou quase.

 

O personagem quer refundar a comunidade e recuperar a vida, mas ele habita um simulacro. A paródia de uma paródia. Os gauchos autênticos não existem mais – talvez nunca tenham existido fora do imaginário romântico do país. Apesar disso, Pereda permanece. Investe o que tem e o que não tem na empreitada. Começa a não ver ao redor apenas personagens de ficção.

 

O ‘gaucho insuportável’ (numa outra tradução, talvez mais precisa, do título do livro) que é Pereda age sobre o pampa e algo, ínfimo, se move. O trabalho de reinvenção de si e da vida começa a dar frutos. A perspectiva do conto é esperançosa.

 

Diferente da tradição argentina, segundo a qual o sul é violento ou infértil, Bolaño muda o rumo esperado. Saem o heroísmo e a tragédia. Pereda encontra outra mulher, a estância ganha telhado e horta, voltam as suas forças. Ele decide ficar no campo depois da crise.

 

Da entropia, Bolaño faz outra coisa. Não há milagres ou retornos reconfortantes às origens. Mas é como se o escritor afirmasse, por meio dessa parábola nada exemplar, que é possível passar da dívida à dádiva. Com Pereda, Bolaño inscreve-se no cânone argentino. Como bom leitor dos mestres portenhos, a homenagem que faz contém uma gota de veneno.

 

Leia: Com humor e sem pudor, contos de escritora recriam Cuba nos anos 1990

 

“O gaucho insofrível” é um dos testamentos do escritor. O manuscrito foi entregue aos editores logo antes da sua internação. Talvez por isso, o livro tem esse tom de desafio à morte. Mas há nele também um lado violento e obscuro.

 

A escuridão das tocas e dos esgotos é o cenário para outro grande momento do escritor, o conto “O policial dos ratos”. É uma história de detetive e melancolia que se passa entre camundongos. Os bichos arrastam-se, angustiados, em espaços apodrecidos debaixo da terra.

 

Quase não há luz. Pepe, o Tira, seu narrador e protagonista, percorre túneis em busca de matadores, animais capazes de estraçalhar corpos de fêmeas ou deixar morrer de fome, pelo prazer do espetáculo, um filhote recém-nascido.

 

A gratuidade dos crimes leva Pepe ao desencanto com o mundo dos ratos. A narrativa lembra “A parte dos crimes”, capítulo principal de “2666”, romance que Bolaño ia escrevendo nessa mesma época.

 

De fato, estilhaços do romance espalham-se por todo “O gaucho insofrível”, que se arma às vezes como desdobramento e contraponto desse projeto.

 

Até o verso de Baudelaire, tomado como epígrafe do romance é retomado, ainda que com outro sentido, em “Literatura + doença = doença”.

 

Em “2666”, Bolaño apresenta – num estilo cartorial no qual críticos viram a linguagem dos relatórios de medicina legal – centenas de assassinatos contra mulheres na fronteira México-Estados Unidos.

 

Os crimes da superfície de um texto ecoam na violência subterrânea do outro, e os fios do relato zoo de Bolaño trazem à tona os mesmos elementos: pobreza, alienação, indiferença.

 

“Tudo leva a pensar que isso não tem saída”, são as palavras de Bolaño no fecho do livro. O contexto é outro – elas fazem parte de “Os mitos Cthulhu” e dizem respeito ao apequenamento da literatura frente aos poderes do mercado.

 

Mas nessa imagem do impasse ouve-se a voz de Franz Kafka. É com essa voz que Bolaño decide abrir e fechar “O gaucho insofrível”. E não se trata de referir Kafka de modo mais ou menos convencional, como um signo do absurdo. Bolaño refaz Kafka, toma o último livro do escritor tcheco, “Um artista da fome”, como horizonte ético e estético.

 

O conto “O policial dos ratos” é uma continuação livre, isto é, uma reinvenção adúltera, de “Josefina, a cantora, ou O povo dos camundongos”. À história da ratazana e seus estrídulos Bolaño acrescenta o mistério e o sangue.

 

A reflexão dolorosa sobre a condição do artista que está em “Josefina”, “Primeira dor” e “O artista da fome”, de Kafka, ganha ares de diatribe e de comédia nas conferências ficcionais de “O gaucho insofrível”.

 

No entanto, o elemento mais importante desse diálogo é a aguda consciência dos deveres do artista diante de um mundo enfermo e da própria finitude. Confrontados com o mal e a doença, instados ao silêncio e à impotência, Kafka e Bolaño optaram por continuar a escrever. E escolheram, até o fim, a forma difícil: o túnel cego, a pergunta sem resposta.

 

Gustavo Silveira Ribeiro é professor de literatura da UFMG e um dos editores da “Ouriço” revista de poesia e crítica cultural

 

capa do livro "O gaucho insofrível"

"O gaucho insofrível"

reprodução

 

Trecho


(De “O gaucho insofrível”)

 

“Os escritores atuais já não são, como bem notou Pere Gimferrer, cavalheiros dispostos a fulminar a respeitabilidade social nem muito menos um bando de desajustados, mas gente saída da classe média e do proletariado disposta a escalar o Everest da respeitabilidade, desejosa de respeitabilidade. São louros e morenos filhos do povo de Madri, são gente de classe média baixa que espera terminar seus dias na classe média ala. Não rechaçam a respeitabilidade. Buscam-na desesperadamente. Para chegar até ela têm de transpirar muito. Assinar livros, sorrir, viajar para lugares desconhecidos, sorrir, se fazer de palhaço nos programas de TV, sorrir bastante, sobretudo não morder a mão que lhes dá de comer, comparecer às feiras de livros e responder de bom grado às perguntas mais cretinas, sorrir nas piores situações, fazer cara de inteligente, controlar o crescimento demográfico, agradecer sempre.”

 

“O gaucho insofrível”
• De Roberto Bolaño
• Tradução de Joca Reiners Terron
• Companhia das Letras
• 152 páginas
• R$ 59,90