O monumental

O monumental "Madona dos páramos", obra-prima do mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), ganha relançamento

crédito: QUINHO

 

ANDRÉ DE LEONES

ESPECIAL PARA O EM

 

“Madona dos páramos”, romance do mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), é uma das joias mais bem enterradas da literatura brasileira. Lançado originalmente em 1982, o livro jamais recebeu a atenção que merece e só agora é reeditado por uma grande casa editorial, a Record.

 

Trata-se de um violentíssimo épico da incompletude, marcado por uma jornada cujo destino escapa aos personagens e leitores, estruturado como uma sequência de blocos narrativos e digressivos, sem divisões de capítulos ou quaisquer respiros para o leitor, com parágrafos que se estendem por páginas e páginas. É monumental.

 

Antes dele, Dicke afiara a prosa em dois bons romances: “Deus de Caim” (Prêmio Nacional Walmap 1968) e “Caieira” (Prêmio Remington de Prosa 1977). Neles já estão presentes o estilo abrasivo, febril, e os indivíduos lançados em um ambiente de veredas que se esfarelam, abauladas por um “silêncio armado”, à mercê da natureza devoradora. Mas foi em “Madona dos páramos” que ele melhor equilibrou todos esses elementos e lançou mão de outros.

 

 

O romance começa com uma fuga. Uma rebelião numa cadeia interiorana cospe dezenas de criminosos aos quatro ventos. Alguns deles, liderados por um “pretaço de raça caburé, cuiabano de sangue azougado” chamado Urutu, investe tuaiá adentro rumo a um lugar mítico, a Casa da Figueira-Mãe. “Tuaiá” é uma palavra de origem tupi que, segundo o Houaiss, significa “lugar muito longe, rio acima”.

 

Ela também é usada para designar, “no Alto Xingu, a mais distante região de seringais”. Esses lugares remotos servem de proteção para os fora-da-lei, dificultando o trabalho dos “meganhas”, e também para alimentar a busca última, interminável, pela Figueira-Mãe: “Estavam no centro do tuaiá. Ali era o rodopião, a espiral das ilusões mais profundas”.

 

As páginas iniciais nos trazem o ex-cabo José Gomes. Já em fuga da cadeia (seu crime: flagrou a mulher com outro e matou o sujeito a machadadas, deixando “os quartos do homem abertos em dois, os ossos vivos no cerne do branco despontando em tutano no escarlate do esquartejo”), ele se depara com uma velha pedinte que parece uma das bruxas de “Macbeth”. Ela roga uma série de pragas para o fugitivo, mas por fim lhe cede a benção após ganhar uns trocados e entender que ele, a despeito das roupas que usa, não é mais um soldado.

 

Em um buritizal, Gomes encontra outro fugitivo, o rapaz Garci, ex-recruta, e eles seguem viagem. Dão com “uma casinhola de sapê num cochicholo de mata”; atrás dela, “um amontoado como de vísceras”, pés e mãos decepados e “testículos humanos, órgãos de gente”; por fim, do “lado do varal da cumieira, dependurados como morcegos, por tiras de couro, de cabeça para baixo (...), quatro homens despidos, sem mãos e sem pés, furados a bala, estrias escuras pelo corpo, castrados em sangue seco”.

 

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É sinal de que Urutu e os outros estão por perto. Com efeito, não demora para que esses “foragidos, bandoleiros, homens livres” retornem ao local do massacre. São eles: o Caveira, “de Minas Gerais e professor”; Chico Inglaterra, “meio cínico nos modos, meio delicado com o corpo”, o couro devastado pela macutena (hanseníanse); o mulherengo Lopes Mango de Fogo; Babalão Nazareno, com seu “rosário de contas enormes e toscas no pescoço”; Canguçu, de “cem mortes no lombo”; Pedro Peba, “amansador de gente, capador de onça e capitão”; e Bebiano Flor, “boiadeiro e cantor”.

 

Juntos, eles saem à procura da Figueira-Mãe, “casa-palácio-igreja”, “direção de homizio, onde não chegam os abusos nem as arbitrariedades”, “lugar perdido no maior sertão do Norte mais profundo, no tuaiá dos mato-grossos, que todos os perseguidos sonham alcançar um dia e pensam encontrar sem erro preconcebido nem maturado”.

 

Essa Canudos elusiva teria o seu Antônio Conselheiro, um certo Sem-Sombra, que antes se metera com a sobrinha de um arcebispo e, a exemplo de Abelardo, foi castrado. “Mas tudo isso podem ser lendas”, diz Chico Inglaterra.

 

“E as lendas correm e voam.” Lenda ou não, é para a Figueira-Mãe que o bando de proscritos vai, esteja ela onde estiver, exista ou não. A eles se juntarão o silencioso Melânio Cajabi, “com sua solidão de mil silêncios encravados na sua mudez”, homem cuja voz só se fará ouvir no longo e esplendoroso monólogo final, e aquela que é o centro em torno do qual orbita o romance – a moça sem nome.

 

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A certa altura, membros do bando invadem uma fazenda e matam os proprietários. Trazem de lá, entre os espólios, a moça cujo nome jamais saberão. Seria abusada por Urutu, mas algo nela, para além do silêncio e da grande beleza que ostenta, acaba por mesmerizá-los.

 

Ciente de seu poder sobre os bandidos, ela perpetra “uma espécie de vingança” que passa pela negação do nome (“eu sou a Mulher me vingando da gratuidade do mundo, a mulher que exige vingança ou uma explicação de Deus”) e chega à elusividade do corpo: às vistas de todos, intocada, ela se banha em um rio. É quando seu domínio sobre eles é consumado, e os homens passam de sequestradores a sequestrados.

 

Identificada com uma espécie de “santa no altar” ou, melhor ainda (e aqui o paganismo de Dicke sorri para o leitor), “deusa, dessas dos livros antigos, mais velhos”, ela continuará inviolada, exceto por um breve contato com o leproso Chico Inglaterra – mas o que se tem aí é o reiterar de sua condição, na medida em que, feito “uma rainha”, ela oferta “aqueles instantes como um presente aos homens, aos viventes que a amavam na sua solidão”. A violência da moça sem nome é ctônica, pois ela se confunde com a Mãe-Terra, ao passo que a violência dos homens que a escoltam é um jogo de meninos adoecidos.

 

A jornada de “Madona dos páramos” jamais se completa. Seus personagens se entregam a essa (não) destinação, a esse cavalgar eterno pelos ermos do mundo, a essa busca interminável pela Figueira-Mãe que acaba se transformando em buscas outras.

 

No transcorrer desse percurso, a narrativa passeia por todos e cada um deles, flutua com e por suas vozes e lembranças, municia um coral que se dispõe a cantar histórias dentro de histórias dentro de histórias, em notas que se distendem ao extremo em meio a “esse som de cascos, cascos, cascos e cascos e no interior dos cascos esse silêncio e dentro das frestas desse silêncio esse violão soando”.

 

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Dada a sua estruturação singular, é um erro grotesco caracterizar a prosa de Dicke como “regionalista” (categorização tão genérica quanto disfuncional) ou, pior, encarar o autor como um sub-Guimarães Rosa.

 

A narrativa rosiana obedece a intenções, instintos e procedimentos diversos dos da prosa dickeana. Grosso modo, Rosa é joyceano e Dicke é faulkneriano. Em Dicke, o espraiar “oleoso” das palavras é bem diferente do inventivo gozo linguageiro proposto por Rosa. Há uma espécie de estiramento tumultuoso em “Madona dos páramos”.

 

Assim, quando deixamos Urutu, José Gomes, Melânio Cajabi e cia., eles prosseguem na busca pela Figueira-Mãe, prenhes da presença-ausência da moça sem nome, talvez andando em círculos, talvez não (as noções de tempo e espaço são implodidas pelo caráter cada vez mais alucinatório do romance), mas entregues àquela procura e contaminados por ela.

 

Inexiste, portanto, um arco narrativo como aquele de (imposto por?) Riobaldo, que desde o início se coloca em um ponto fixo a partir do qual pode, retrospectivamente, desfiar sua história. Não há pontos fixos em Dicke. Pelo contrário: “Madona dos páramos” nos pede que trilhemos por um caminho que nem é “mais caminho e sim deserção de caminho”. Não existe nada igual na literatura brasileira.

 

André de Leones é autor do romance “Vento de queimada” (Record), entre outros.

 

Vida e morte em Mato Grosso

 

Ricardo Guilherme Dicke nasceu em 16 de outubro de 1936, em Raizama, na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso. No começo da década de 1960, estreou no romance com“Caminhos de sol e lua”.

 

Em 1968, publicou o segundo romance,“Deus de Caim”, menção honrosa do Prêmio Walmap, tendo como jurados Antonio Olinto, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Em 1977, venceu o Prêmio Remington de Prosa e Poesia com o romance“Caieira”, publicado no ano seguinte pela editora Francisco Alves.

 

Em 1981, ganhou o Prêmio Ficção de Brasília com o romance“Madona dos páramos”. Morreu em Cuiabá,
em 9 de julho de 2008.

 

O que foi dito sobre o livro e o autor

 

“Um escritor que me comove até a medula é o Ricardo Guilherme Dicke. Eu o considero dono de uma linguagem excepcional, belíssima. ‘Madona dos páramos’ é uma obra-prima”

Hilda Hilst

 

“Grande oportunidade de (re) descoberta de Ricardo Guilherme Dicke e de sua literatura ferozmente original”

Marçal Aquino

 

“Gênio que viveu recluso”

Ignácio de Loyola Brandão

 


“O injustamente desconhecido Ricardo Guilherme Dicke”

Joca Reiners Terron

 

Trecho


(De “Madona dos páramos”, de Ricardo Guilherme Dicke)

“As palavras pendem no ar. Garci olha-o mais uma vez, o pobre homem tem os olhos molhados, nadando, e dentro deles Garci vê um brilho puro, talvez sua pureza que ele procura nos outros ou em si, não sabe, e limpa-os com a manga. Já não se pode continuar. Há um vácuo na alma deste sol, pululando de carbúnculos de ouro, ustão sem fim, eco a percutir até as barras do infinito. Homem, um homem, sim, mas um homem como se ele fosse obrigado a ir por onde quer que fosse carregando os próprios testículos, como coisa tão crua, óbolos da natureza, levando-os, sim, imagem de Deus, eternamente perfurados por uma agulha, pobres óvulos da vida, e levasse essa agulha incandescente ali sempre, homem-deus carregando seus sofrimentos, como um Sísifo infinito enquanto vivo. Tântalo, Prometeu de outros fígados. Homem, um homem.”

 

“Madona dos Páramos”
• De Ricardo Guilherme Dicke
•Record
• 518 páginas
• R$ 58,90

Capa do livro

Capa do livro

Reprodução