“O que esses caras fizeram com ela é sem noção. Fazer isso só por R$ 22”. A fala é de Lauro César Gonçalves Pereira, motoboy que salvou Alice Martins Alves, de 33 anos, enquanto ela era espancada por dois homens. O motociclista esteve no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), na noite desta terça-feira (25/11), para depor sobre o crime. A vítima, uma mulher trans, foi perseguida e espancada por dois funcionários do Bar Rei do Pastel, na Savassi, Região Centro-Sul de Belo Horizonte, em 23 de outubro. Ela morreu 17 dias depois.
À imprensa, Lauro contou que passava pela Avenida Getúlio Vargas quando viu a mulher caída no chão ao lado de dois homens. Em um primeiro momento, ele afirma que achou se tratar de um atropelamento. No entanto, logo em seguida percebeu que os homens seguravam a vítima e gritavam com ela. “Na hora, eu não pensei duas vezes e parei para ajudar ela. Infelizmente, depois que eu fiquei sabendo da notícia que ela morreu”.
Os dois agressores já foram identificados pela polícia, mas até o momento nenhum deles foi preso. No dia dos fatos, os agressores ameaçaram Lauro. Mesmo assim, ele continuou no local e evitou que Alice continuasse sendo espancada. Em entrevista coletiva, cinco dias depois da morte da vítima, a delegada Iara França, responsável pelo inquérito afirmou que os homens só não mataram Alice no mesmo dia das agressões porque foram interrompidos por Lauro.
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Questionado porque se apresentou à polícia dezesseis dias depois da morte de Alice, Lauro explicou que logo depois do crime não sabia que a mulher estava internada. Dias depois ele viu uma publicação nas redes sociais sobre o ataque e comentou com sua esposa que ajudou a mulher. “Quando eu ajudei ela fiquei tranquilo, mas não sabia que ela estava tão mal. Eu estava esperando alguém me chamar para depor. Eu sabia que a polícia ia me chamar”, afirma.
Ameaças
Imagens de câmeras de segurança, no local do crime, mostram que os suspeitos chegaram a discutir com o motociclista e uma segunda testemunha, que intervieram no momento da agressão. Nas imagens, não é possível ver a mulher trans sendo agredida, no entanto, é possível ouvi-la pedindo ajuda. Em determinado momento, por volta de 0h53 é perceptível uma série de batidas e na sequência Alice diz: “Me ajuda amigo. Me ajuda, por favor!”. Ela segue chorando e diz: “Sabe que tem uma mulher aqui”.
As batidas continuam por mais um minuto e, em seguida, um homem diz: “Vai sô. Mete o pé, mete o pé. Cê vai pagar o trem? Vai ou num vai?”. Nas imagens é possível ver o motociclista passando pela Avenida Getúlio Vargas e parando bruscamente. Ele então começa a discutir com os agressores, que passam a ameaçá-lo.
“Sai vazado mano! Nem leva a mal não mano [...] Tá ligado? Cê tá no seu corre, nós tá no nosso. Cê vai pagar por um pano que não foi seu? [...] Cê tá ligado que tem trem errado mano. Cê tá passando pano pra quem tá errado mano”, diz um dos agressores.
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A discussão continua e, em determinado momento, um dos suspeitos se refere a Alice no pronome masculino. Ele ainda afirma que a testemunha poderia pagar a conta deixada pela vítima no bar de R$ 100. No entanto, como o Estado de Minas já havia noticiado, um áudio divulgado por um funcionário, do mesmo bar que os suspeitos trabalhavam, informou que as agressões teriam sido motivadas depois que a vítima, supostamente, saiu do local sem pagar uma conta de R$ 22.
“Agora mano, cê tá ligado? Cê não for pagar o bagulho pra ele. Tá ligado mano? Pode seguir sua caminhão tranquilão e deixa nós aqui [...] Eu falei com ele, ‘cê for pagar o bagulho, suave’. Agora, se não mano, volta pro seu corre e deixa nós resolver o nosso”.
Os homens ainda começam a discutir com uma segunda testemunha e a ameaça. “Nós tá aqui todo dia. Nós tromba com você todo dia também. Que você trabalhar aqui. Cê vai ver, num vai ficar por isso não mano. Ô motoca, cê também mano, num é nem pá não, papo dez mano. Não envolve em situação que cê num tem nada a ver não mano”.
Causa da morte
Alice morreu em decorrência de uma infecção generalizada, causada pela perfuração de parte do intestino. A informação consta no atestado de óbito da vítima. O documento, enviado à reportagem, indica que a causa da morte foi: “choque séptico, abdome agudo perfuro, úlcera duodenal perfurada” e uso de anti-inflamatório.
Após o ataque, a mulher perdeu a consciência e foi socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Em um primeiro momento, ela foi encaminhada para a Unidade de Pronto Atendimento Centro-Sul. Dez dias depois, em 2 de novembro, ela foi levada de ambulância para o Pronto Atendimento do Hospital da Unimed, em Betim, na região metropolitana. Na unidade de saúde, exames de imagem apontaram fraturas nas costelas, cortes no nariz e desvio de septo.
Em 8 de novembro, os médicos diagnosticaram uma perfuração no intestino, possivelmente causada por uma das costelas quebradas ou, segundo suspeita do pai da vítima, Edson Alves Pereira, agravada pelo uso de anti-inflamatórios após a agressão. Com o diagnóstico, Alice foi submetida a uma cirurgia de emergência, mas não resistiu à infecção generalizada e morreu.
Transfobia
De acordo com a delegada Iara França, do Núcleo Especializado de Investigação de Feminicídios da PCMG, a mulher tinha o costume de frequentar alguns bares da região e era conhecida dos funcionários e comerciantes. No dia dos fatos, Alice teria sentado, sozinha e pedido uma bebida alcoólica. Depois de um tempo, ela se levantou e se esqueceu de quitar a conta.
Apesar de haver indícios de que as agressões sofridas por Alice tenham sido motivadas por uma dívida, a Polícia Civil também trabalha com a hipótese que a mulher foi vítima de transfobia. A possibilidade ganha força, segundo a delegada Iara França, pela intensidade da violência.
Além disso, à polícia a mulher relatou que demorou a procurar a delegacia da mulher por sentir medo dos suspeitos e também ter ficado envergonhada. Por isso, durante o registro da ocorrência, ela, inclusive, passou características genéricas de um dos suspeitos, o identificando apenas como homem, branco, de cabelos escuros e usando calça jeans e camiseta preta.
