Novas imagens da câmera de segurança de um estabelecimento próximo ao local onde Alice Martins Alves, de 33 anos, foi espancada por dois homens, em Belo Horizonte, mostram o momento em que a vítima grita por socorro. O ataque aconteceu na madrugada de 23 de outubro, na Savassi, Região Centro-Sul da capital. A vítima morreu 17 dias depois, por complicações dos ferimentos provocados pelas agressões.
Os suspeitos já foram identificados como funcionários de um bar da região, uma unidade do Rei do Pastel, no entanto, até esta terça-feira (25/11), ainda não foram presos.
Nas imagens, não é possível ver a mulher trans sendo agredida. Porém, é possível ouvir a vítima pedindo por ajuda. Em determinado momento, pouco antes da 1h da madrugada, é perceptível uma série de batidas e, na sequência, Alice diz: “Me ajuda amigo. Me ajuda, por favor!”. Ela segue chorando e diz: “Sabe que tem uma mulher aqui”.
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As batidas continuam por mais um minutos, e, em seguida, um homem diz: “Vai, sô. Mete o pé, mete o pé. Cê vai pagar o trem? Vai ou num vai?”. Como o Estado de Minas já havia noticiado, um áudio divulgado por um funcionário, do mesmo bar onde os suspeitos trabalhavam, informou que as agressões teriam sido motivadas depois que a vítima, supostamente, saiu do local sem pagar uma conta de R$ 22.
Além disso, nas novas gravações, é possível ouvir os suspeitos discutindo com o motociclista que interveio ao ataque e, segundo a Polícia Civil de Minas Gerais, impediu que a mulher fosse morta. Nas imagens, o homem aparece passando pela avenida e dá uma freada brusca. Em seguida, os suspeitos começam a discutir com a testemunha.
“Sai vazado, mano! Nem leva a mal não, mano [...] Tá ligado? Cê tá no seu corre, nós tá no nosso. Cê vai pagar por um pano que não foi seu? [...] Cê tá ligado que tem trem errado mano. Cê tá passando pando pra quem tá errado mano”, diz um dos agressores.
A discussão continua, e, em determinado momento, um dos suspeitos se refere a Alice no pronome masculino. A mulher era conhecida da região e ia ao bar onde os suspeitos trabalhavam pelo menos uma vez por semana. “Cê não tá entendendo mano [...] Tem um bagulho pra pagar mano. Tá entendendo? [...] Cê vai pagar o bagulho pra ele mano? [...] Cê vai pagar? Ce vai pagar aqui os cem reais mano”, diz um dos agressores.
Os homens ainda começam a discutir com uma segunda testemunha e a ameaça. “Estamos aqui todo dia. A gente tromba com você todo dia também. Cê vai ver, num vai ficar por isso não, mano. Ô motoca, cê também, mano, papo dez mano. Não envolve em situação que cê num tem nada a ver não mano.”
Como foi o crime?
As agressões aconteceram em 23 de outubro. De acordo com a delegada Iara França, do Núcleo Especializado de Investigação de Feminicídios da PCMG, Alice tinha o costume de frequentar alguns bares da região e era conhecida dos funcionários e comerciantes. No dia dos fatos, Alice teria sentado, sozinha, em um tradicional bar/pastelaria, localizada na esquina das ruas Fernandes Tourinho e Sergipe, e pedido uma bebida alcoólica. Depois de um tempo, ela se levantou e se esqueceu de quitar a conta.
De acordo com a responsável pelo inquérito, o bar já tinha o costume de, caso um cliente recorrente, por algum motivo, não pagasse o consumo, poderia fazê-lo em outro momento. Em um áudio, enviado por um funcionário do estabelecimento a que o Estado de Minas teve acesso, a prática é reforçada. Na gravação, um homem relata que Alice já havia se esquecido e ido embora, mas depois voltou e quitou a dívida.
“Ela já teria ido ao local e se esquecido de pagar a conta; retornava ao local e quitava a conta. Então, nunca houve nenhum problema. Geralmente, as pessoas que eram frequentes ali, voltavam e pagavam a conta”, explica Iara.
A agressão contra Alice foi registrada pela câmera de segurança de um imóvel na Avenida Getúlio Vargas. Na gravação, obtida pela Band Minas, uma pessoa discute com a vítima. Em determinado momento, a mulher é questionada se irá pagar ou não. Ela então questiona o homem se ele irá agredi-la.
No áudio, ainda é possível confirmar que a mulher afirmou que havia efetuado o pagamento. Apesar disso, a resposta não foi bem vista pela dupla, que começou agredi-la. O equipamento de segurança também captou gritos de socorro da vítima e insultos transfóbicos, por parte dos homens.
Agressões
Após a agressão, Alice perdeu a consciência e foi socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Em um primeiro momento, ela foi encaminhada para a Unidade de Pronto Atendimento Centro-Sul.
Dez dias depois, em 2 de novembro, foi levada de ambulância para o Pronto Atendimento do Hospital da Unimed, em Contagem, na Região Metropolitana. Na unidade de saúde, exames de imagem apontaram fraturas nas costelas, cortes no nariz e desvio de septo.
Em 8 de novembro, os médicos diagnosticaram uma perfuração no intestino, possivelmente causada por uma das costelas quebradas ou, segundo suspeita do pai da vítima, Edson Alves Pereira, agravada pelo uso de anti-inflamatórios após a agressão. Com o diagnóstico, Alice foi submetida a uma cirurgia de emergência, mas não resistiu à infecção generalizada.
De acordo com a delegada Iara França, Alice só não morreu no local das agressões porque os suspeitos foram interrompidos por um motociclista que presenciou o ataque. Ela afirmou que o crime também foi presenciado por uma segunda testemunha, que acionou o Samu e a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG). “Essas agressões somente cessaram; ela só não foi morta naquele momento, porque um motociclista parou e interviu na situação. Ele também foi ameaçado por um desses agressores, mas mesmo assim permaneceu no local.”
Transfobia
Apesar de haver indícios que às agressões sofridas por Alice tenham sido motivadas por uma dívida de R$22, a Polícia Civil também trabalha com a hipótese que a mulher foi vítima de transfobia. A possibilidade ganha força, segundo a delegada Iara França, pela intensidade das agressões. Além disso, Iara França relata que a mulher já havia relatado que seria um certo preconceito de algumas pessoas, sem especificar ser de clientes ou funcionários do bar.
“É um local onde ela já tinha o costume de frequentar, que já era conhecida; ela conhecia as pessoas dali e já havia revelado que sentia um certo preconceito de algumas delas, alguns olhares maldosos, alguns olhares preconceituosos”, afirmou a delegada Iara França.
O boletim de ocorrência, que retratou o caso, registrado por Alice, foi feito 13 dias depois do ataque. Ao Estado de Minas, seu pai já havia afirmado que a demora ocorreu por medo e pela sua condição física. Na quarta-feira (12/11), Edson relatou que a filha só foi à delegacia depois dele insistir e chegar a fazer uma pelo 181, canal de denúncia anônima do estado. “Depois que ela voltou para a casa foi só luta. Ela começou a vomitar, não conseguia se alimentar, perdeu 13 quilos. Estava muito fraca e com muita dor”, comentou o genitor.
Além disso, à polícia Alice relatou que demorou a procurar a delegacia da mulher por sentir medo dos suspeitos e também ter ficado envergonhada. Por isso, durante o registro da ocorrência, ela, inclusive, passou características genéricas de um dos suspeitos, o identificando apenas como homem, branco, de cabelos escuros e usando calça jeans e camiseta preta.
O relato de Edson, durante o velório da filha, gerou uma comoção nacional. “Será que um homossexual não tem direito a viver?”. O questionamento do pai refletiu o sofrimento e indignação pela perda da filha, com quem morava junto no bairro Betânia, também na Região Oeste. “Perdi uma grande amiga, parceira, minha companheira de assistir filmes e tomar uma cervejinha em casa”, relatou.
O que disse o bar?
Depois de receber diversos comentários em suas redes sociais, o bar Rei do Pastel, que possui sete unidades em Belo Horizonte, publicou uma nota afirmando que está colaborando com as investigações da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG). O estabelecimento está no centro das apurações sobre o ataque contra Alice após um áudio divulgado à imprensa afirma que os dois homens suspeitos das agressões seriam funcionários do local.
Na nota, divulgada na tarde do dia 14 de novembro, o estabelecimento afirmou que, desde que foi procurado pelos investigadores, se colocou à disposição das autoridades e entregou todas as informações solicitadas. “Estamos aguardando e confiantes no trabalho sério e eficiente que bem sendo executado pela polícia, com certeza da correta apuração dos fatos e devida culpabilidade dos envolvidos”.
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A pastelaria também afirmou que não “compactua” com ações discriminatórias referentes à identidade de gênero, orientação sexual, raça ou qualquer outra natureza. “Ressaltamos a nossa solidariedade aos familiares e amigos de Alice”, ressaltou o Rei do Pastel.
