A mineradora Sigma Lithium usou as redes sociais para sair em defesa de sua CEO, Ana Cabral, que foi alvo de uma avalanche de críticas depois de afirmar que parte dos funcionários da empresa já foi "mula de água" e pertence a "uma geração perdida" do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.
A declaração foi dada em entrevista ao programa Fast Money, da CNBC, no último dia 14, durante a COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas).
“Quem será que está financiando os milhões em campanhas de marketing para incessantemente espalhar ‘fake news’ sobre a Sigma Lithium? Toda semana algo é desconstruído, descaracterizado ou simplesmente inventado”, inicia a mineradora no texto que acompanha um ‘vídeo resposta’ publicado no Instagram.
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Nas imagens divulgadas pela Sigma aparecem o que seriam crianças nos anos 1990 carregando latas de água na cabeça (assista aqui) — uma tentativa de justificar as expressões usadas por Ana Cabral durante a entrevista:
"No Vale do Jequitinhonha, quem é que trabalha na nossa indústria greentech? Nós treinamos aquela geração perdida do Vale, que era mula de água; as crianças que não tinham escola. Elas carregavam água na cabeça. Elas passavam o dia carregando água da cisterna pública para casa e foram trabalhar no bananal. Nós pegamos a mão de obra do bananal e treinamos para ser operador de planta. Temos 43 operadores que são ex-mulas de água".
O termo ‘greentech’ é usado para descrever empresas de 'iniciativa verde' que utilizam soluções tecnológicas para reduzir o impacto ambiental negativo.
Ana Cabral também é copresidente da Sigma, a quinta maior em produção de lítio do mundo. A mineradora investe nesse mineral no Vale do Jequitinhonha, nos municípios de Itinga e Araçuaí, onde estão localizados seus ativos: a mina de Grota de Cirilo e a planta de processamento. Em setembro, a Sigma foi alvo do Ministério Público Federal, que apontou para a possibilidade de irregularidades nas operações da empresa (entenda mais abaixo).
"Não inventamos a realidade do Vale do Jequitinhonha no século 21. [As crianças daquela época] viraram a ‘geração perdida’, sem oportunidades, que foram trabalhar no bananal. Ou foram embora buscar dignidade fora do Vale. Hoje, dezenas dessas pessoas trabalham na fábrica de lítio mais sustentável e moderna do mundo", completou.
Repercussão: prefeituras e CNBB
Apesar do posicionamento no qual a mineradora não admite qualquer tipo de erro de sua CEO, moradores, prefeituras, políticos e até a CNBB repudiaram os termos usados por Ana Cabral, considerados pejorativos.
Nesse sentido, a Prefeitura de Virgem da Lapa, por exemplo, destacou que a expressão "mulas de água" sequer existe na linguagem, memória ou identidade do Vale do Jequitinhonha. "O território não reconhece esse termo porque ele nunca fez parte da nossa realidade. Trata-se de uma construção equivocada, que tenta reduzir um povo inteiro a um estereótipo ultrapassado. O Vale do Jequitinhonha é feito de cultura, trabalho, tradição e dignidade. A geração que a senhora Ana Cabral chamou de perdida é justamente a que mais estudou", disse.
Em carta aberta, o prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa (PSD), pontuou que a mineração "tem papel relevante no desenvolvimento regional", mas destacou a agricultura — especialmente a produção de banana — como atividade que sustenta famílias com trabalho técnico e moderno. Em relação às expressões "mulas de água" e "geração perdida", o chefe do Executivo municipal disse: "Não traduz o que vivemos aqui. Não faz justiça à dignidade do nosso povo".
Durante a entrevista, Ana Cabral afirmou que foram abertas quatro escolas na região. A informação foi desmentida pela Prefeitura de Itinga. "É necessário esclarecer que as escolas mencionadas já funcionavam muito antes da instalação da empresa. O que houve, de fato, foi uma parceria pontual da Sigma com a prefeitura para reforma de duas unidades escolares".
"Aqui não existe geração perdida. Existe geração de luta. Geração de artistas, de trabalhadores, de quilombolas, de agricultores, de mães que sustentam suas famílias, de jovens que estudam, sonham e constroem um futuro melhor apesar de toda desigualdade", opinou Alan Santos, influenciador digital de Araçuaí. Nas redes sociais, diversos moradores têm manifestado descontentamento com a declaração da CEO.
A Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou um documento intitulado "Nota de solidariedade à Diocese de Araçuaí e ao povo do Vale do Jequitinhonha".
"Com tristeza e indignação, constatamos que a visão expressa pela empresa, ao falar de 'geração perdida' e de crianças tratadas como 'mulas de água', difama, injustamente, um povo trabalhador e resiliente. E também expõe a lógica de exploração e de descaso em territórios atingidos pela mineração no Brasil: lucra-se com o território enquanto se despreza seus filhos e filhas", afirmou a entidade em parte do texto.
Ministério Público Federal
A deputada estadual Andréia de Jesus (PT-MG) disse que "racismo" disfarçado de "desenvolvimento" não será naturalizado. "Enquanto fazia lobby na COP, ela ofendia justamente quem carrega a verdadeira riqueza do Vale: as crianças que preservam o meio ambiente e mantêm viva a nossa cultura", declarou, acrescentando que acionou o "Ministério Público Federal (MPF) na terça-feira (18/11).
No início de setembro deste ano, o MPF enviou uma recomendação à Agência Nacional de Mineração (ANM) para que suspendesse temporariamente e revisasse as autorizações de pesquisa e extração de lítio em Araçuaí e outras cidades do Vale do Jequitinhonha, o chamado "Vale do Lítio". Na ocasião, o órgão estabeleceu 20 dias de prazo para resposta.
Laudo técnico elaborado pelo órgão federal apontou deficiências em estudo apresentado pela Sigma em 2021, em relação aos impactos nos recursos hídricos pela exploração de minério na região. "A localização das duas cavas — locais de retirada de material para explorar o minério — levanta sérias preocupações quanto à interferência no Ribeirão Piauí, em especial pelo rebaixamento do nível d’água para a lavra", avaliou o MPF.
O Estado de Minas questionou a assessoria da ANM se o pedido do MPF foi analisado, mas não obteve resposta.
