Cinco dias depois da morte de Alice Martins Alves, de 33 anos, em decorrências de ferimentos provocados por um espancamento em 23 de outubro, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) confirmou que os principais suspeitos do crime são dois funcionários de um bar da Savassi, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. O ataque teria sido motivado por uma conta de R$ 22, não paga pela vítima. No entanto, os investigadores acreditam que possa haver caráter transfóbico no crime. Na noite de hoje, familiares e amigos de Alice prestarão uma homenagem durante a missa de sétimo dia, na Paróquia São Sebastião, no Bairro Betânia. 

As agressões aconteceram em 23 de outubro. De acordo com a delegada Iara França, do Núcleo Especializado de Investigação de Feminicídios da PCMG, a mulher tinha o costume de frequentar alguns bares da região e era conhecida dos funcionários e comerciantes. No dia em que foi agredida, Alice teria sentado, sozinha, em uma tradicional pastelaria, localizada na esquina das ruas Fernandes Tourinho e Sergipe, e pedido uma bebida alcoólica. Depois de um tempo, ela se levantou e se esqueceu de pagar a conta. 

De acordo com a delegada, o bar já tinha o costume de caso um cliente recorrente, por algum motivo, não pagasse o consumo poderia fazê-lo em outro momento. Em um áudio, enviado por um funcionário do estabelecimento a que o Estado de Minas teve acesso, a prática é reforçada. Na gravação, um homem relata que Alice já havia se esquecido e ido embora, mas depois voltou e quitou a dívida. 

“Ela já teria ido ao local e se esquecido de pagar a conta e ela retornava ao local e quitava a conta. Então, nunca houve nenhum problema. Geralmente as pessoas que eram frequentes ali, voltavam e pagavam a conta”, explica Iara.

A agressão contra Alice foi registrada pela câmera de segurança de um imóvel na Avenida Getúlio Vargas. Na gravação, obtida pela Band Minas, uma pessoa discute com a vítima. Em determinado momento, a mulher é questionada se irá pagar ou não. Ela então questiona o homem se ele irá  agredi-la. No áudio, ainda é possível confirmar que Alice afirmou que havia efetuado o pagamento. Apesar disso, a resposta não foi bem vista pela dupla, que começou agredi-la. O equipamento de segurança também captou gritos de socorro da vítima e insultos transfóbicos, por parte dos homens.

Até o fechamento desta edição, os dois suspeitos ainda não haviam sido presos. Ainda segundo a delegada, a corporação já realizou todas as diligências de polícia judiciária. No entanto, não houve a confirmação que foi encaminhado à justiça um pedido de prisão preventiva ou temporária. 

Agressões


Após a agressão Alice perdeu a consciência e foi socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Em um primeiro momento, ela foi encaminhada para a Unidade de Pronto Atendimento Centro-Sul. Dez dias depois, em 2 de novembro, ela foi levada de ambulância para o Pronto Atendimento do Hospital da Unimed, em Contagem, na região metropolitana. Na unidade de saúde, exames de imagem apontaram fraturas nas costelas, cortes no nariz e desvio de septo. 

Em 8 de novembro, os médicos diagnosticaram uma perfuração no intestino, possivelmente causada por uma das costelas quebradas ou, segundo suspeita do pai da vítima, Edson Alves Pereira, agravada pelo uso de anti-inflamatórios após a agressão. Com o diagnóstico, Alice foi submetida a uma cirurgia de emergência, mas não resistiu à infecção generalizada e morreu.

De acordo com a delegada Iara França, Alice só não morreu no local das agressões porque os suspeitos foram interrompidos por um motociclista que presenciou o ataque. Ela afirmou, que o crime também foi presenciado por uma segunda testemunha, que acionou o Samu e a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG). “Essas agressões somente cessaram, ela só não foi morta naquele momento, porque um motociclista parou e interveio na situação. Ele também foi ameaçado por um desses agressores, mas mesmo assim permaneceu no local.” 

Preconceito

Apesar de haver indícios que as agressões sofridas por Alice tenham sido motivadas por uma dívida de R$ 22, a Polícia Civil também trabalha com a hipótese que a mulher foi vítima de transfobia. A possibilidade ganha força, segundo a delegada Iara França, pela intensidade das agressões. Além disso, Iara França relata que a mulher já havia relatado que sofria um certo preconceito de algumas pessoas, sem especificar ser de clientes ou funcionários do bar. 

“É um local que ela já tinha o costume de frequentar, local que ela já era conhecida, que ela conhecia as pessoas ali e já havia revelado que sentia um certo preconceito de algumas pessoas, alguns olhares maldosos, alguns olhares preconceituosos”, afirmou a delegada. 

O boletim de ocorrência, que retratou o caso, registrado por Alice, foi feito 13 dias depois do ataque. Ao Estado de Minas, seu pai já havia afirmado que a demora se deu por medo e pela sua condição física. Na quarta-feira (12/11), Edson relatou que a filha só foi à delegacia depois de ele insistir e chegar a fazer uma ligação para o 181, canal de denúncia anônima do estado. “Depois que ela voltou para a casa foi só luta. Ela começou a vomitar, não conseguia se alimentar, perdeu 13 quilos. Estava muito fraca e com muita dor”, comentou o genitor.

Além disso, à polícia, Alice relatou que demorou a procurar a delegacia da mulher por sentir medo dos suspeitos e também ter ficado envergonhada. Por isso, durante o registro da ocorrência, ela, inclusive, passou características genéricas de um dos suspeitos, identificando o suspeito apenas como homem, branco, de cabelos escuros e usando calça jeans e camiseta preta. 

O relato de Edson, durante o velório da filha, gerou uma comoção nacional. “Será que um homossexual não tem direito a viver?”. O questionamento do pai refletiu o sofrimento e indignação pela perda da filha, com quem morava junto no bairro Betânia, também na Região Oeste. “Perdi uma grande amiga, parceira, minha companheira de assistir filmes e tomar uma cervejinha em casa”, relatou.

O que disse o bar?

Depois de receber diversos comentários em suas redes sociais, o bar Rei do Pastel, que tem sete unidades em Belo Horizonte, publicou uma nota afirmando que está colaborando com as investigações da Polícia Civil. O estabelecimento está no centro das apurações sobre o ataque contra Alice após um áudio divulgado à imprensa afirmar que os dois homens suspeitos das agressões seriam funcionários do local.

Na nota, divulgada na tarde dessa sexta-feira (14/11), o estabelecimento afirmou que desde que foram procurados pelos investigadores se colocaram à disposição das autoridades e entregaram todas as informações solicitadas. “Estamos aguardando e confiantes no trabalho sério e eficiente que bem sendo executado pela polícia, com certeza da correta apuração dos fatos e devida culpabilidade dos envolvidos”.

A pastelaria também afirmou que não “compactua” com ações discriminatórias referentes à identidade de gênero, orientação sexual, raça ou qualquer outra natureza. “Ressaltamos a nossa solidariedade aos familiares e amigos de Alice”, ressaltou o Rei do Pastel. 

Família abalada

Após as informações preliminares da investigação, repassadas pela polícia, o advogado da família de Alice, Tiago Lenoir, afirmou que as agressões foram “extremamente violentas” e estão documentadas. De acordo com o defensor, o ataque foi registrado por câmeras de segurança além do registro, em áudio em que é possível ouvir os gritos das vítimas e diversos insultos transfóbicos.

Lenoir reforça que caso fique comprovado que os responsáveis pelas agressões estavam a serviço no momento das agressões, é possível apontar uma responsabilidade direta do estabelecimento. “Não existe em lugar nenhum do mundo, muito menos na legislação brasileira, cobrar uma dívida de R$ 22 através de um espancamento”.

“É um assassinato cruel, bárbaro. Queremos que o inquérito termine o quanto antes para que essas pessoas respondam por homicídio”, afirmou. O advogado acrescentou, ainda, que vai aguardar a conclusão das investigações para definir eventuais medidas judiciais.

Sobre o pai da vítima, o advogado relatou que Edson está profundamente abalado e informou que o cliente ainda não prestou seu depoimento oficial. Segundo Lenoir, a delegada responsável pelo caso pretende ouvi-lo, e a família aguarda para que o depoimento seja colhido formalmente.

Missa


Amigos e familiares de Alice prestarão uma homenagem na noite deste sábado (15/11), durante a missa de sétimo dia. A cerimônia acontece na Paróquia São Sebastião, localizada na Rua Úrsula Paulino, 1.555, no Bairro Betânia, Região Oeste da capital, às 18h30. 

** Estágiária sob supervisão da editora Vera schmitz

O que é transfobia?


A transfobia configura qualquer ação ou comportamento que se baseia no medo, na intolerância, na rejeição, no ódio ou na discriminação contra pessoas trans por conta de sua identidade de gênero. Comportamentos transfóbicos são aqueles que dizem respeito a quaisquer agressões físicas, verbais ou psicológicas manifestadas contra a expressão de gênero de pessoas trans e travestis. Atos transfóbicos podem ser cometidos por qualquer pessoa, mas geralmente partem de pessoas cisgênero que não compreendem ou têm aversão à comunidade trans, desencadeando ações como crimes de ódio. Diferentemente de crimes comuns ou daqueles considerados passionais, a violência letal contra pessoas trans pode ter como fator determinante a identidade de gênero ou a orientação sexual da pessoa agredida.

O que diz a lei?

Atos LGBTQIANP+fóbicos, como a transfobia, são considerados crime no Brasil. Entretanto, não há uma lei exclusiva para crimes homofóbicos. Em 2019, após uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os crimes LGBTQIA devem ser equiparados aos de racismo. Assim, os crimes LGBTQIAfóbicos são julgados pela Lei do Racismo (Lei 7.716, de 1989) e podem ter pena de até 5 anos de prisão.

Ataque em academia

Uma mulher trans denunciou, pelas redes sociais, um caso de transfobia ocorrido em uma academia no Bairro Eldorado, em Contagem, na Grande BH. Ayla Victoria, de 22 anos, afirma que a agressão verbal aconteceu na terça-feira (11/11), dentro do banheiro feminino do estabelecimento onde ela treina há três anos. Segundo Ayla, uma mulher não identificada entrou no banheiro e passou a questionar a presença dela no espaço, insinuando que ela não poderia utilizá-lo. Ao perceber que estava sendo hostilizada, a jovem começou a gravar a situação. No vídeo, a mulher aparece alterada, proferindo ataques a Ayla com falas transfóbicas. A mulher afirma que seria “humilhante” passar por aquilo e questiona, de forma irônica, se Ayla teria “membro masculino”. Em contato com a vítima, a gerência da afirmou que medidas cabíveis serão adotadas. A Polícia Civil apura a denúncia.

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“É um local que ela já tinha o costume de frequentar, onde já era conhecida e conhecia as pessoas, e já havia revelado que sentia um certo preconceito, alguns olhares maldosos, alguns olhares preconceituosos", Iara França, delegada responsável pelo caso

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