Daniela Marys Costa Oliveira, belo-horizontina de 36 anos, está presa no Camboja, Sudeste Asiático, desde o final de março. Nesta quarta-feira (12/11), ela teria sido condenada a dois anos e seis meses sob alegações de uso e porte ilegal de drogas, de acordo com Ana Flávia Pereira, cunhada de Daniela. A família afirma que a mineira recebeu uma proposta de emprego falsa, foi vítima de tráfico humano e alvo de uma armação.
A sentença foi repassada aos familiares de Daniela e ao Estado de Minas por representantes da Rede Um Grito Pela Vida, iniciativa intercongregacional de enfrentamento e erradicação do tráfico de pessoas. O Ministério das Relações Exteriores não confirmou ou negou a condenação.
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“O objetivo agora é fazer justiça por ela porque ela está presa injustamente por uma armação, por não ter entrado no esquema dos golpes cibernéticos”, desabafa Ana Flávia. Familiares da mineira afirmam que ela foi vítima de um golpe após se recusar a realizar o trabalho para o qual foi designada e pedir para voltar para o Brasil. “Colocaram três pílulas no quarto, que era compartilhado. Quando Daniela chegou, a polícia já estava esperando por ela para levá-la presa por causa dessas três pílulas”, conta a cunhada.
Ana Flávia afirma que a família aguarda uma confirmação oficial do Ministério das Relações Exteriores para contestar a condenação. Ela afirma que Daniela está detida na cidade de Sisophon em uma cela com cerca de 100 mulheres e que só há um banheiro. “Não tem o mínimo de dignidade humana”, afirma a cunhada da belo-horizontina. Presa há sete meses, Daniela entra em contato com a família de 10 em 10 dias. As ligações duram poucos minutos.
Audiência e Itamaraty
Coordenadora da Rede Um Grito pela Vida, irmã Isabel do Rocio afirma que representantes da organização no Camboja informaram que o advogado cambojano contratado pela família de Daniela não compareceu à audiência nesta quarta-feira e que o juiz não solicitou um tradutor. Segundo ela, a mineira tem 30 dias para recorrer da sentença.
O Estado de Minas questionou o Ministério das Relações Exteriores se a pasta foi informada da possível condenação de Daniela Marys e, se tiver sido, se há possibilidade de extradição da brasileira. O Itamaraty não respondeu sobre esses tópicos e afirmou que, por intermédio da Embaixada do Brasil em Phnom Penh [capital do Camboja], tem conhecimento do caso citado.
“A Embaixada vem realizando gestões junto ao governo cambojano e prestando a assistência consular cabível à nacional brasileira, em conformidade com o Protocolo Operativo Padrão de Atendimento às Vítimas Brasileiras do Tráfico Internacional de Pessoas”, informou a pasta. A reportagem questionou o Itamaraty se as embaixadas informaram o motivo da prisão e quais foram as alegações para a detenção de Daniela, mas não obteve retorno.
Proposta de emprego
A história de Daniela Marys começa com uma proposta atrativa de emprego. Em meados de janeiro, ela foi contatada por meio do aplicativo de mensagens Telegram para trabalhar na área de telemarketing e tradução no Sudeste Asiático.
À época, a belo-horizontina morava em João Pessoa, capital da Paraíba, e estava à procura de emprego. Por isso, decidiu aproveitar a oportunidade no exterior. Ana Flávia conta que a família ficou desconfiada, mas que a arquiteta disse que a empresa era confiável e que teria até feito entrevistas.
Daniela foi levada para a cidade de Poipet, a cerca de 400 quilômetros de Phnom Penh, capital do Camboja, e na fronteira com a Tailândia. “Chegando lá, já foi meio esquisito. Ela mandou a localização e foto do quarto. Era como se fosse um galpão no meio do nada, em um bairro afastado”, conta Ana Flávia Pereira. Segundo a esposa da irmã da mineira, o alojamento tinha várias camas beliche.
Golpes
No final de fevereiro, Daniela começou o treinamento para o emprego, que supostamente seria para telemarketing e tradução. Foi quando ela descobriu que seu trabalho, na verdade, seria aplicar golpes cibernéticos. “Ela disse: 'isso eu não faço. Vocês não me contrataram para isso'”, conta Ana Flávia. Ainda segundo a cunhada, Daniela teria pedido para voltar ao Brasil e, diante disso, os empregadores retiveram o passaporte dela.
De acordo com Ana Flávia, no fim de março Daniela foi vítima de uma armação e terminou sendo detida por posse de drogas. Ela foi levada para uma prisão na cidade de Sisophon, onde se encontra até o momento. No começo, a brasileira não conseguiu comunicar à família sobre a detenção, pois teve o celular e o notebook retidos.
“Se passaram por ela mandando mensagens para a Lorena, minha esposa, dizendo que se não mandássemos o valor da multa, ela seria vendida para tráfico sexual”, conta Ana Flávia. Segundo ela, a família estranhou as mensagens recebidas porque não condiziam com a maneira da arquiteta de se comunicar.
Mesmo assim, os parentes ficaram receosos e enviaram cerca de R$ 27 mil ao Camboja. “Como família, você fica com medo. Você não sabe se a próxima foto que você vai receber é da pessoa morta, então você acaba mandando o dinheiro”, diz.
Prisão
De acordo com Ana Flávia, para que a arquiteta possa fazer ligações e até receber água e comida, é preciso que a família envie dinheiro. Os parentes têm mandado cerca de US$ 150 dólares a cada 20 dias e estão angustiados. A mãe, Myriam Oliveira, de 66 anos, “está sofrendo muito. O maior desejo da vida dela é que a Daniela esteja de volta”, diz Ana Flávia.
Ainda segundo a cunhada, há cerca de um mês e meio a arquiteta teve uma infecção e teria sido levada ao hospital quase duas semanas depois. Daniela também não tem recebido as medicações de que fazia uso contínuo, um ansiolítico e um antidepressivo.
Assistência e alertas
Assim que soube da situação, a família entrou em contato com o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e a Polícia Federal, mas se ressente da falta de medidas por parte das autoridades brasileiras, relata Ana Flávia. Ela defende ainda que o governo faça campanhas informativas sobre os riscos.
“O que a gente espera é que o governo olhe para a Daniela, mas não só para ela (…). Que faça campanhas de conscientização reais, em horário nobre, em todos veículos nacionais, de uma maneira efetiva e prática (...). A gente não quer que mais jovens caiam nessa cilada”, defende Ana Flávia.
Sobre as ações informativas, o Ministério das Relações Exteriores destacou que emitiu, em fevereiro, alertas consulares sobre o aliciamento de pessoas para o Sudeste Asiático. Além disso, a pasta ressaltou a existência da cartilha “Orientações para o Trabalho no Exterior”.
O guia oferece orientações aos brasileiros que pretendem trabalhar fora do país e tem como objetivo principal alertar sobre riscos como tráfico de pessoas, além de fornecer informações sobre como se planejar, os direitos do trabalhador no exterior e como proceder em situações de emergência.
Segundo Ana Flávia, a família e Daniela têm recebido assistência da Rede Um Grito Pela Vida e da “The Exodus Road”, organização sem fins lucrativos que busca combater o tráfico de pessoas. A família da arquiteta criou uma vaquinha online para ajudar a financiar os custos de advogados e as remessas de dinheiro para Daniela.
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O Ministério das Relações Exteriores indica que o caso de Daniela não é isolado. Em fevereiro, o órgão emitiu um Alerta Consular sobre o tráfico de pessoas para o Sudeste Asiático a partir de falsas promessas de emprego com salários competitivos (leia texto sobre o alerta). Depois de fazer 200 atendimentos de brasileiros vítimas desse tipo de crime em países diversos em 2023, o órgão lançou, no ano passado, uma cartilha com orientações para quem pretende trabalhar no exterior.
Rede de tráfico
Alerta consular publicado em 14 de fevereiro pelo Ministério das Relações aponta um “aumento significativo” no número de brasileiros vítimas de tráfico de pessoas para exploração no trabalho no Sudeste Asiático. Segundo o alerta, as vítimas são, em sua maioria, jovens com conhecimento de informática, recrutados por “call center” ou empresas de tecnologia na Tailândia, com oferta de salários competitivos, comissões por ativos vendidos e passagens aéreas.
Ainda segundo o alerta, da Tailândia as vítimas são levadas de forma irregular para Myanmar, Laos e Camboja, onde são forçadas a realizar fraudes online, como jogos de azar, golpes envolvendo criptomoedas e relacionamentos amorosos falsos para extorsão de outras vítimas. O alerta recomenda que interessados em trabalhar no exterior consultem cartilha produzida pelo Itamaraty em conjunto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública cartilha e folheto específico para quem se encontre no Sudeste Asiático.
