LEGADO INSPIRADOR

Dia de Finados: doação de corpos ameniza a dor de quem fica

EM mostra como o ato altruísta de doar os corpos para estudos contribui para a ciência e dá alento às famílias de quem partiu

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Sobre a lápide de um túmulo bem perto da entrada do Cemitério da Saudade, na Região Leste de Belo Horizonte, não há nome e sobrenome, apenas palavras de profunda gratidão. Na placa de metal em destaque no mármore, está escrito: “Aqui jazem os restos mortais dos doadores de corpos da Faculdade de Medicina da UFMG. Agradecimentos e homenagens jamais estarão à altura do seu altruísmo”. Ao lado, colocando um vaso de rosas no mausoléu, o professor de anatomia humana topográfica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Kennedy Martinez de Oliveira, repete a frase em voz alta com ênfase em altruísmo. “Podemos fazer muito pela vida, mesmo após a morte”, diz o professor, explicando que outros cemitérios de BH também podem receber os corpos de doadores.

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No mausoléu se encontram sepultados homens e mulheres que, em respeito à ciência, doaram o corpo para estudos, pesquisa e trabalhos de extensão na Faculdade de Medicina. Tal ato de generosidade e amor ao próximo atende ao programa “Vida após a Vida”, o mais antigo do país, sob coordenação do professor Kennedy.

Neste domingo (2), Dia de Finados, o Estado de Minas reverencia a memória dos falecidos e se solidariza com a saudade dos familiares, mostrando o programa existente na UFMG há 26 anos, com registro, desde 1999, de cerca de 2 mil pessoas.


REFERÊNCIA PARA O PAÍS


Depois da visita ao cemitério e de ver o jazigo, cujo espaço foi doado à universidade pela Prefeitura de BH, a equipe do EM, guiada pelo professor Kennedy, também presidente da Sociedade Mineira de Anatomia, se dirige à Faculdade de Medicina (Câmpus Saúde), na Região Hospitalar da capital, para conhecer, na prática, o programa “Vida após a Vida”, hoje referência para vários estados brasileiros.


A conversa começa sob dois quadros e uma frase em latim que dão completo sentido às atividades desenvolvidas no laboratório de anatomia. Estão na parede reproduções de “A lição de anatomia do Dr. Tulp”, de Rembrandt (1606-1669), na qual se vê a dissecação da mão esquerda de um homem, e “A lição de anatomia do Dr. Willem van der Meer”, de Michiel Jansz van Mierevelt (1567-1641), retratando a dissecação de um cadáver em sala de aula.

estudantes de medicina  Rafael Sendim e Paula Oliveira, sob orientação do professor José Eustáquio Pereira Barboza, observam corpo doado para a UFMG
Estudantes de medicina Rafael Sendim e Paula Oliveira, sob orientação do professor José Eustáquio Pereira Barboza, observam corpo doado para a UFMG JAIR AMARAL/EM/D.A PRESS


AJUDA AOS VIVOS


Em destaque no laboratório, lê-se a frase em latim “Hic mors gaudet succurrere vitae” – em português, “Aqui a morte se alegra em socorrer a vida”. Com um sorriso de boas-vindas, o professor explica que, por meio do gesto altruísta dos doadores, os profissionais de saúde em formação adquirem conhecimentos essenciais a serem usados no cuidado de centenas de pessoas no futuro.

“A doação é totalmente voluntária e manifestada pelo doador em vida. Essas pessoas sabem que, após a morte, poderão ajudar os vivos”, conta o docente. A Faculdade de Medicina cobre os custos de traslado e faz os procedimentos após o óbito com o consentimento dos familiares.


DESAFIO HISTÓRICO


No fim da década de 1990, a ciência brasileira enfrentava um desafio histórico: a disponibilidade de corpos humanos para formar novos médicos e desenvolver técnicas de forma ética, legal e correta. Assim, nasceu na UFMG o primeiro programa brasileiro de doação voluntária de corpos, o “Vida após a Vida”. Vinte e seis anos depois, a iniciativa se concretizou com tecnologias avançadas de congelamento (“fresh frozen” cadáver”) e apoio de sociedades médicas e hospitais.


Sobre o congelamento, a UFMG figura como única instituição pública de ensino no Brasil a adotar a tecnologia de “fresh frozen” cadáver, mantendo a conservação dos corpos em câmaras de baixas temperaturas. “Ao contrário da conservação em formol, método mais comum, os corpos recebidos aqui são rapidamente congelados após o óbito, garantindo maior integridade dos aspectos biológicos para pesquisas e aulas”, diz o professor.

Kennedy Martinez de Oliveira  prOFESSOR, QUE COORDENA O PROGRAMA "VIDA APÓS A vIDA", explica que algumas técnicas só podem ser ensinadas com cadáveres preservados
Kennedy Martinez de Oliveira prOFESSOR, QUE COORDENA O PROGRAMA "VIDA APÓS A vIDA", explica que algumas técnicas só podem ser ensinadas com cadáveres preservados JAIR AMARAL/EM/D.A PRESS


CIÊNCIA E APRENDIZADO

Agora, ao lado dos alunos Rafael Lima Sendim, de 22 anos, e Paula Gabriela Oliveira, de 21, ambos do quarto período do curso de medicina, Kennedy observa que a preservação com cadáveres frescos é inestimável para a ciência e o ensino, pois permite o desenvolvimento de técnicas que não podem ser praticadas em manequins ou animais. “O ganho é imensurável para a ciência e o ensino”, resume.


Atentos à explicação, Paula e Rafael revelam que se sentiriam satisfeitos em doar o corpo à ciência, embora tudo dependa da aprovação dos pais e demais familiares. “Aprender no laboratório é muito gratificante. O assunto pode ser considerado tabu para muita gente, mas sinaliza também a autonomia do doador sobre o próprio corpo”, acredita a jovem.


Com certeza, a matéria leva à reflexão, e se trata de um tema delicado, diz Rafael, pois envolve questões familiares, culturais e religiosas. Bom saber que de acordo com o artigo 14 da Lei 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro) é válida, com objetivo científico ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte.


MOMENTO DO SEPULTAMENTO


À conversa, se junta o professor José Eustáquio Pereira Barboza, de tanatopraxia (conjunto de técnicas de conservação e higienização de corpos para retardar a decomposição). Com experiência de mais de duas décadas, José Eustáquio, técnico em anatomia e necropsia, é o responsável pelo recebimento dos corpos humanos e cuidados, incluindo o embalsamamento e preservação da estrutura do cadáver para os posteriores estudos e pesquisa. O uso pode ser de 12 a 15 anos, quando, então, os corpos serão inumados ou sepultados.


A curiosidade do repórter aflora, e é preciso saber se pode haver velório do doador. “Sim, um velório de pouca duração, é o que recomendamos. Depois, se houver autorização da família, mesmo tendo sido a vontade do falecido, o corpo será levado para a faculdade”, diz José Eustáquio.


PROGRAMA INOVADOR


A história do programa remonta a 1999, quando a Faculdade de Medicina foi procurada por uma senhora cuja tia, em fase terminal de uma doença grave, desejava doar seu corpo para fins de ensino. Na época, a UFMG havia recebido apenas um corpo 10 anos antes, em circunstâncias semelhantes. Com o aval do Conselho Universitário e da Procuradoria da universidade, a faculdade aceitou a doação e iniciou uma campanha para cadastrar mais interessados, tornando-se o primeiro programa de doação voluntária estruturado no país.


O número de doadores cadastrados tem aumentado. Em 2017, eram mil pessoas, metade do que é hoje. A equipe do “Vida após a Vida” ressalta a importância de aumentar ainda mais esse número, uma vez que a doação só é efetivada no momento do óbito e depende da família acionar a faculdade. Além disso, cada corpo pode apresentar variações anatômicas e condições únicas.

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TREINO PARA TRANSPLANTES


Outro impacto significativo do programa está na retomada dos transplantes de pulmão em Minas, após 10 anos. O treinamento da equipe envolvida na cirurgia foi realizado com corpos do “Vida Após a Vida”.


Conforme divulgado pela UFMG, o transplante de pulmão consiste em cirurgia de alta complexidade, e o treinamento prévio, crucial para o sucesso do procedimento. Na palavra do professor Daniel Bonomi, do Departamento de Cirurgia (CIR), “treinar com tecido de cadáver fresco permite que a equipe esteja pronta, garantindo que o transplante ocorra de forma mais fluida”. n

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