José Maria Ferreira de Souza, conhecido como Chero, que perdeu 80% da plantação
devido à onda de calor de 2023, diz que está ficando cada vez mais difícil produzir

 -  (crédito: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)

José Maria Ferreira de Souza, conhecido como Chero, que perdeu 80% da plantação devido à onda de calor de 2023, diz que está ficando cada vez mais difícil produzir

crédito: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press

Gabriel Ronan, Luiz Ribeiro, Mariana Costa, Bruno Luis Barros e Renato Manfrim/Especial para o EM

 

Há 53 anos trabalhando no plantio de hortaliças e legumes, José Maria Ferreira de Souza, o Chero, acumulou, em tese, experiência suficiente para ter sucesso no agronegócio. Nos últimos anos, porém, ele é um dos milhares de brasileiros prejudicados pelas mudanças climáticas. Chero vive na região do Pentáurea, na zona rural de Montes Claros, no Norte de Minas, município que aqueceu 1,1°C nos últimos 30 anos, de acordo com números do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) segmentados pelo Núcleo Dados do EM. “Está ficando cada vez mais difícil produzir. Nos últimos 10 anos, a temperatura aumentou demais. A perda da nossa produção na onda de calor do fim do ano passado foi da ordem de 80%”, diz o produtor rural de 68 anos.


A realidade de Montes Claros se estende à maioria dos 13 municípios mineiros onde o Inmet monitora a temperatura média, anualmente, desde 1961. Os números segmentados pela reportagem comparam dois cenários: um primeiro entre 1961 e 1990; e um segundo, de 1991 a 2020. No comparativo entre os recortes temporários, a já citada cidade-polo do Norte de Minas e Araxá (Alto Paranaíba) tiveram a maior alta nos termômetros em Minas: 1,1°C. A situação é parecida em Belo Horizonte, onde a população convive com uma temperatura média 1°C superior à registrada no intervalo de tempo anterior. O mesmo patamar de aquecimento da capital foi computado em Lavras, no Sul do estado.


Esses exemplos estão longe de serem exceções. Houve aquecimento em todos os municípios mineiros acompanhados pelo Inmet desde 1961. “A cada ano que passa, aumenta a temperatura, e o pasto seca cada vez mais rápido”, lamenta o produtor rural José Teixeira da Costa Filho, de 62, criador de gado em Salinas, no Norte do estado. A cidade onde ele vive aqueceu 0,9°C no paralelo analisado pelo EM.


O aquecimento das cidades mineiras se intensifica em determinados períodos do ano. Entre agosto e outubro, na transição do inverno para a primavera, houve até mesmo aumentos que se aproximam dos 2°C. Em Araxá, por exemplo, o mês de setembro foi 1,9°C mais quente entre 1991 e 2020 do que entre 1961 e 1990. O mesmo nível de aumento da temperatura foi computado em Montes Claros no mês de outubro.

 

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“Os modelos meteorológicos em vigor nos anos 1980 já apontavam para a tendência de aumento de eventos extremos. O fato de termos até 2°C acima nessa fase de transição, entre setembro e outubro, quer dizer que estamos tendo ondas de calor mais intensas nesse período. Isso também interfere em uma quantidade menor de chuva, porque elas se tornam mais convectivas (rápidas e de alta intensidade)”, afirma o coordenador do Inmet em Minas, Lizandro Gemiacki.


Os dados comprovam a afirmação do especialista: das 13 cidades analisadas pela reportagem, nove tiveram diminuição na pluviosidade acumulada em setembro, novamente comparando os intervalos 1961-1990 e 1991-2020. Em outubro, o recuo na precipitação total atingiu 12 municípios. A única exceção foi Bambuí (Centro-Oeste de Minas).


No recorte anual, o acumulado de chuva nas cidades mineiras chegou a variar 13% para mais no comparativo utilizado. Em Januária (Norte), choveu 138,6 milímetros a mais no intervalo mais recente. Em Bambuí, o aumento foi de patamar semelhante no consolidado anual. Por outro lado, três municípios registraram queda de aproximadamente 8% na precipitação: Lavras e Machado, no Sul do estado; e Montes Claros.


“Esses aumentos das chuvas em algumas cidades e os declínios em outras são esperados. A natureza está se ajustando (às mudanças climáticas), a depender das massas de ar de cada lugar, das suas geografias, dos efeitos continentais (capacidade de armazenamento de calor, por exemplo) e das emissões de particulados (poluentes atmosféricos)”, afirma o coordenador do curso de engenharia ambiental e sanitária do Cefet-MG, Carlos Wagner, que é doutor em geografia.

 

 

Como as mudanças climáticas são detectadas?

O Inmet monitora, por meio de estações meteorológicas, a temperatura média e a chuva acumulada em centenas de cidades brasileiras ao longo dos anos. O comparativo entre os períodos 1961-1990 e 1991-2020 é feito para constatar com mais assertividade as mudanças climáticas, pois intervalos curtos de tempo estão suscetíveis a fenômenos climáticos pontuais, como El Niño e La Ninã, em vez de traduzirem efeitos do aquecimento global.

Sentindo na pele

Em BH, o estudante Jean Carlos Morais, de 20, reclama que fica mais cansado com o calor acentuado nos últimos anos. “Trabalhar e ter que sair de casa é complicado. Se a gente tem que fazer uma compra, acaba sendo um exercício físico extremo. Não consigo mais sair sem uma garrafinha de água”, diz. Ele ressalta que pegar transporte público também é um desafio nos períodos mais quentes. “Como está sempre lotado, o calor é um agravante”, explica.


O carteiro Vantuil dos Anjos, de 52, é outro que percebe aumento das temperaturas nos últimos anos. Ele trabalha na Região de Venda Nova e conta que exercer seu ofício, nessas condições é um desafio. “É desgastante, cansa muito. Tem que reforçar o protetor solar. O calor afeta também na hora de dormir”, afirma.


Em Araxá, no Alto Paranaíba, cidade que tem o maior aumento da temperatura registrado pelo Inmet, o secretário municipal de Agricultura e Pecuária, Osmar Gonçalves, considera que os maiores impactos ocasionados pelas mudanças climáticas aconteceram em 2023. “O excesso de chuvas não permitiu os tratos culturais, influenciando negativamente na produção. Já em 2024, a falta de chuva atrasou a época do plantio. Depois, houve muita chuva na colheita, fenômeno que não acontecia antes”, diz.


O professor de economia agrícola e coordenador do curso de agronegócio da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Dênis Cunha, destaca que as perdas de produção no campo decorrem de várias “camadas”, entre elas as altas temperaturas. “Os extremos de calor prejudicam tanto a produção agrícola quanto a pecuária, pois produzem estresse térmico para plantas e animais, gerando prejuízos ao seu desenvolvimento, o que pode culminar, por exemplo, em menor quantidade colhida ou mesmo redução das áreas aptas para o plantio”, diz.


A psicóloga Natália Fernandes, outra moradora de Araxá, aponta para o aumento dos casos de ansiedade por conta das mudanças climáticas. “As temperaturas mais altas, em geral, estão contribuindo significativamente para o aumento do estresse na população. Os pacientes têm apresentado sintomas tradicionais de ansiedade, depressão e síndrome do pânico, como consequência desse estresse”, afirma.


A professora universitária e servidora pública Joana D’Arc Hollerbach, radicada em Viçosa, conta que chegou à cidade pela primeira vez em 1981, deixando-a no ano seguinte. Segundo conta, a sensação décadas atrás era de frio o tempo todo, percepção que começou a ser alterada ao fixar residência na cidade 30 anos depois. O município da Zona da Mata teve um aumento de 0,8°C entre 1991 e 2020.


“Na época do colégio, lembro de ter que sair com várias blusas, não importava a estação. Não tenho memória do calor naquele ano em que morei em Viçosa. Em janeiro de 2009, eu me mudei de forma definitiva pra cá, e a cidade continuava fria. Em 2011, a situação começou a mudar. Hoje em dia, eu tenho dormido com o ar-condicionado ligado. Este ano, em particular, sinto que o calor aumentou muito mais do que nos anos anteriores”, afirma.

Ambientalistas denunciam mudanças

O ambientalista Eduardo Gomes, diretor do Instituto Grande Sertão (IGS), de Montes Claros, afirma que, ao longo dos anos, tem sido verificado um aumento da temperatura na região, como indica a base de dados do Inmet. “No caso do Norte de Minas, a gente percebe mais a elevação da temperatura por se tratar de uma região de clima semiárido. O que se pode fazer no caso das cidades para amenizar o aumento da temperatura é ampliar as áreas verdes para atenuar os efeitos do calor”, diz.

As alterações climáticas também são testemunhadas pelo médico sanitarista e ambientalista Apolo Heringer Lisboa, de 81, idealizador do Projeto Manuelzão, da UFMG. Ele passou a infância em Salinas, Norte de Minas, e aponta as mudanças na temperatura e no meio ambiente na “capital da cachaça”. “A população urbana cresceu, temos mais telhados, cimento e pedras no chão; mais carros; o desmatamento se alastrou; os rios acabaram. O desmatamento fez as chuvas levarem muito mais terra e areia para os vales, assoreando os rios”, lamenta.