Espeleólogo Luciano Faria entra na gruta cujos traços coincidem com a descrição da Lapa da Cagaiteira  -  (crédito: Mateus Parreiras/EM/D.A Press)

Espeleólogo Luciano Faria entra na gruta cujos traços coincidem com a descrição da Lapa da Cagaiteira

crédito: Mateus Parreiras/EM/D.A Press

Cordisburgo – A mata fechada, de árvores juntas preenchidas por cipós, moitas de espinhos e ramos entrelaçando a relva escondeu por 187 anos uma das primeiras grutas mineiras visitadas por Peter Wilhem Lund, em Cordisburgo, no ano de 1835. A Lapa da Cagaiteira foi descrita pelo assistente e ilustrador de Lund, Peter Brandt, em suas explorações ao lado do naturalista dinamarquês, que é o pai da arqueologia e paleontologia do Brasil.

 

 

Essa formação rochosa na Região Central de Minas Gerais foi esquecida depois da passagem de Lund, teve seu nome alterado para Gruta da Mata e quase não tem registros de explorações. É próxima da Gruta do Maquiné, a primeira visitada por Lund no estado, em expedição que completa 190 anos em outubro, tendo sido fundamental para que o naturalista decidisse ficar em Minas, onde desbravou cerca de 180 cavernas e coletou fósseis da megafauna, que ajudaram a entender a evolução das espécies.

 

Iniciada na edição deste domingo (5) do Estado de Minas, a série “190 anos de Lund em Minas” mostra hoje a incursão até a Lapa da Cagaiteira, uma das 18 reencontradas por um grupo de pesquisadores nos últimos 15 anos.

 

Com a Lapa da Cagaiteira, a localização das cavernas que se perderam do mapeamento como tendo sido visitadas por Peter Lund avançou, restando ainda 13 grutas que podem ter mudado de nome ou que simplesmente não se sabe mais onde estão. Esse trabalho de localização tem sido acompanhado pela reportagem do EM desde 2016, sendo realizado pelo Opilião - Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE). O EM participou e registrou a expedição que localizou a Lapa dos Gentios, em 2021, caverna descrita por Peter Lund e Peter Brandt, em 1835, em Curvelo, na mesma região. A localização da Lapa da Cagaiteira foi parte do trabalho intitulado “O Grande Roteiro de Peter Lund”, de 2022 e 2023, feito ao lado do Instituto do Carste.

 

Foram duas incursões para localizar, mapear e estudar a Lapa da Cagaiteira. Os relatos são de uma caverna pequena, porém com enorme variedade e beleza de espeleotemas como estalactites, estalagmites, cortinas e colunas, entre outros que devem ter encantado Peter Lund. A primeira visita ocorreu entre 27 e 30 dezembro de 2022 e outra entre 6 e 9 outubro de 2023, para estudos descritivos.

 

“O mapeamento é muito similar ao descrito por Peter Brandt, a não ser por uma galeria lateral que não é mais visível e pode ter sofrido um desabamento. O trabalho de comparar os desenhos de Lund e Brandt com as medições modernas nos tem permitido encontrar e trazer de volta esse roteiro de quase 190 anos atrás”, destaca o espeleólogo integrante do Opilião, Luciano Faria, que é doutor em História da Ciência.

 

A gruta apresenta várias similaridades com as descrições deixadas por Lund. As duas grutas se desenvolvem para o sul, as proporções das galerias são congruentes, a divisão das câmaras e curva no final da formação são muito semelhantes, o ponto mais profundo confere com o apontado por Brandt, uma grande estalagmite destacada no mapa centenário é reconhecida atualmente e a forma da entrada em descendente, bem como seu perfil são iguais aos do mapeamento do século 19.

 

Mas há divergências também, como a ausência da galeria lateral, de alguns pequenos condutos e a distância da entrada para o fundo tem uma discrepância de mais de 50 metros.

 

Bater com a cara na porteira fechada é a primeira dificuldade para se chegar até a Lapa da Cagaiteira, algo comum à exploração de várias das grutas nas quais se tenta identificar se ocorreu a visita de Peter Lund. Nem sempre há permissão de acesso às fazendas particulares.

 

“Muitas vezes, os proprietários ficam desconfiados sobre os reais motivos dos estudos. Alguns logo dizem que não se trata de gruta importante para ver se desistimos. Muitos têm medo de que possa ocorrer um tombamento ou que percam alguma autoridade sobre as suas terras. Enquanto outros simplesmente não têm qualquer interesse nos estudos científicos e registros históricos”, conta Faria.

 

No caso da Lapa da Cagaiteira, os proprietários do terreno não se opuseram ao mapeamento e reconhecimento da formação, sendo que até indicaram a disposição dos caminhos e elementos do mapa.

 

Com a permissão, a maior dificuldade é a navegação e o acesso. Nem sempre o mapeamento pelo GPS indica a posição correta da entrada da caverna, obrigando os espeleólogos a vasculharem uma área que pode ser muito abrangente, de 50 metros ou mais, para identificar bocas de grutas por vezes muito pequenas e camufladas pela vegetação e o terreno.

 

No caso dessa caverna, o nome moderno de Gruta da Mata se deve ao fato de a cavidade estar situada em uma densa área de floresta, depois de um pasto infestado de carrapatos.

 

A pequena notável escondida na mata


Aos poucos, a estrada que atravessa os piquetes de pastagens altas vai sendo engolida pelo mato que a invade pelas margens e desponta também no meio do leito de terra. Até que não se consegue avançar mais nem um metro embarcado em um veículo.

 

Assim começa a trilha para encontrar a Lapa da Cagaiteira, uma das cavernas que o Opilião - Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE) estuda como tendo sido visitada por Peter Lund em 1835, mas que desapareceu dos mapas logo após a partida do dinamarquês para Lagoa Santa, onde fixou residência.

Sequências de estalactites dependuradas no teto da gruta: gotejamento contiuna  a esculpir a lapa

Sequências de estalactites dependuradas no teto da gruta: gotejamento contiuna a esculpir a lapa

Mateus Parreiras/EM/D.A Press

A área de fazendas ainda tem pomares de limões, depois dos quais se abrem mais pastagens. Essa área de alimentação dos bovinos cerca os pés de uma elevação coberta pela mata fechada, exatamente na direção que o dispositivo GPS indica estar a caverna.

 

Mas, para alcançá-la, é preciso ingressar no pasto que tem capim na altura do peito em alguns pontos, escondendo buracos, pedras soltas e até mesmo a existência de alguma trilha demarcada.

 

Em ambientes assim, resta rumar beirando a cerca para ajudar na orientação e saber onde está o chão. Por outro lado, dizem os vaqueiros, não tem lugar melhor para encontrar com uma cobra cascavel que o pé de um mourão de cerca.


Do mato com carrapatos para a mata, há uma rápida transição de árvores e capim, e poucos passos depois a selva já se fecha reduzindo a visão adiante a menos de 30 metros. Progresso só atrás da lâmina do facão, ceifando os espinhos e cipós para abrir um caminho lento e orientado pelo rumo do GPS.

 

O estado intacto da floresta mostra mesmo que não é lugar frequentado por muita gente nem usado para extrativismo. Muitos troncos desabaram no caminho e apodrecem naturalmente, precisando ser transpostos por cima ou por baixo.

 

Até a chegada ao ponto marcado para a boca da caverna. Mas nada naquele matagal se parece com uma entrada de cavidade rochosa. Não se vê sequer uma cagaiteira, a árvore do bioma do Cerrado com tronco tortuoso e fruto amarelo com propriedades laxantes que batizou a caverna nos tempos de Lund.


Até que afastando a vegetação em uma área mais densa e repleta de espinhos se encontra a boca da caverna, com abertura de menos um metro e meio, o que força os exploradores a se encolher ou arrastar rumo à escuridão subterrânea.

 

A fraca luz que penetra pela entrada só ilumina até um pequeno patamar, mas ponto em que já se pode ficar de pé para acender as lanternas de cabeça e de mão. E já se sente a umidade do ar da caverna, com temperatura muitos graus mais amena que o calor forte do exterior.

 

Poucos passos e a caverna já dá uma prova de sua exuberância. Estalagmites que nascem se erguendo do solo apontando para o teto se mostram formações de formas muito belas e contornos bem desenhados.


O salão principal se abre na escuridão agora completa tendo à frente uma grande estalagmite, muito parecida com a descrita pelo mapa que Peter Brandt, o companheiro e ilustrador de Peter Lund, fez há quase 190 anos.

Vasculhando com os olhos os pontos iluminados pelas lanternas, os exploradores constatam que realmente a profusão de espeleotemas é impressionante para uma caverna de dimensões tão pequenas, perdida entre as pastagens do sertão mineiro.

 

São sequências de estalactites dependuradas no teto e que vêm se afinando na direção do solo. As ranhuras no teto mostram caminhos percorridos pela água há milhões de anos, embora não haja vestígios de que a cavidade rochosa ainda se inunde.


Mas é uma caverna ainda viva, já que o gotejamento que lentamente depositou os cristais de cálcio no teto ou no solo continua a esculpir a gruta. Em alguns pontos, há estalactites que gotejam ainda muito finas. Em outros, um berçário dessas formações crescendo juntas às dezenas e pingando alternadas. As misturas de minerais esculpidos pela erosão natural impressiona também pelas cores amareladas, vermelhas, marrons e muitas outras.


Até formações mais complexas de helictites estavam escondidas nessa caverna onde Lund pode ter estado. As helictites são estalactites que deixam de descer na direção do solo e tomam caminhos tortuosos, às vezes para o alto, às vezes para cima ou para todas as direções, como se desafiassem a gravidade.

“Impressiona muito nessa caverna ver tantos espeleotemas, muitos deles belíssimos, em um espaço tão pequeno. Certamente mais uma das surpresas que fizeram Peter Lund se encantar pela natureza mineira”, afirma Luciano Faria, integrante do Opilião - Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE).

Similaridades

A análise no local mostra que há mais similaridades entre a Gruta da Mata do que se julgava com o desenho de Brandt da Lapa da Cagaiteira, feito no século 19. Ambas apresentam duas pequenas entradas descendentes, galeria principal e pequenos condutos laterais.

Segundo os estudos desenvolvidos pelo Opilião - Grupo de Estudos Espeleológicos (OGrEE) e o Instituto do Carste, trata-se de uma caverna antiga, provavelmente eclusa (sem acessos para o exterior), com a boca tendo sido aberta posteriormente.

Tem grande variedade de espeleotemas para o pequeno espaço. Não há vestígios de água empoçada, há vestígios de animais, como fezes deixadas nos corredores. Mas é uma caverna sem alterações humanas recentes.


O único registro sobre a Lapa da Cagaiteira são os desenhos de Peter Brandt na sequência das explorações realizadas por ele e por Peter Lund, em 1835. Mas Brandt sequer deixou uma escala de distância específica, o que faz com que muitos pesquisadores utilizem uma escala geral que ele registrou no início de suas anotações.

Já os trabalhos modernos do Opilião e do Instituto Carste encontraram vários indicativos de uma fauna ativa na antiga Lapa da Cagaiteira, hoje Gruta da Mata. Registraram pelo menos duas espécies de morcegos, sendo uma delas hematófaga, ou seja, que se alimenta de sangue de animais, como gado ou cavalos, ocorrendo também outros tipos que comem insetos e frutas.

Caracóis e lesmas sem conchas sobrevivem nas partes mais úmidas da cavidade rochosa. Aranhas e escorpiões caçam ativamente ou montam armadilhas de teias para se alimentar de outros artrópodes. E não faltam opções de caça para esses predadores, uma vez que em vários níveis da caverna já foram encontrados percevejos, pulgões, besouros, moscas, mosquitos, grilos e marimbondos.


A exploração da Lapa da Cagaiteira ocorreu paralelamente aos estudos e trabalhos de campo do OGrEE na expedição à Gruta de Maquiné com o objetivo de desvendar os quase 50 anos de Peter Lund em Minas Gerais. O estudo, que culminará no livro "Gruta do Maquiné, 190 anos. Um ícone do Patrimônio Espeleológico Brasileiro", reunirá informações históricas, biológicas, arqueológicas, paleontológicas, geológicas, culturais e turísticas.

 

O projeto recebe financiamento e apoio da Plataforma Semente do Ministério Público de Minas Gerais/Centro de Apoio às Promotorias de Meio Ambiente (Caoma).