A comerciante Ana Paula Castilho ainda não pode voltar para a sua casa -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press)

A comerciante Ana Paula Castilho ainda não pode voltar para a sua casa

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press

Passado um mês do incêndio provocado por um caminhão de combustíveis às margens do Anel Rodoviário, moradores do Bairro Goiânia, na Região Nordeste de Belo Horizonte, estão longe de retomar a rotina antes do acidente.

 

Para quem continuou na vila, localizada na Rua da Estrada, as marcas da tragédia estão presentes em todo lugar. Nas manchas do fogo nas paredes, nos carros danificados na garagem. “A gente olha para isso tudo e não consegue acreditar que a gente está vivo hoje”, conta Wemerson, que ajudou a socorrer os vizinhos na hora do incêndio.

 

Para quem ainda não pode voltar, os traumas daquele dia continuam mesmo longe de casa. "Eu só consigo dormir de manhã, porque eu tenho medo de alguma coisa acontecer e eu não estar ali”, conta Ana Paula, que mora, junto do marido e dos dois filhos, em um hotel custeado pela transportadora dona do caminhão que provocou o incêndio.

 

Neste domingo (14), completa um mês do incêndio que deixou dois mortos, oito feridos, entre pessoas com queimaduras ou pequenos traumas, e o Estado de Minas voltou ao Bairro Goiânia para mostrar como os afetados pela tragédia seguem suas vidas.

 

 

Na vila no Bairro Goiânia, as marcas do incêndio continuam nas casas e nos veículos danificados pelo fogo

Na vila no Bairro Goiânia, as marcas do incêndio continuam nas casas e nos veículos danificados pelo fogo

Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press

 

Uma noite de terror

 

“Todo dia parece um velório”. É assim que um morador, que pediu para não ser identificado, descreve o clima da vila que foi afetada pelo incêndio na madrugada do dia 14 de março. Por volta de 2h da manhã, um caminhão-tanque tombou ao fazer uma conversão entre a BR-381 e a MG-5, antiga MGC-262. Com o acidente, cerca de 15 mil litros de combustíveis foram derramados, provocando um rastro de fogo que se estendeu por três quarteirões e provocou pânico para dezenas de moradores.

 

O motorista do caminhão, Gildesio de Oliveira, de 54 anos, morreu na hora, carbonizado. Outras nove pessoas ficaram feridas. Entre elas estava Belarmino de Freitas Miranda, de 64 anos, que morreu na última quarta-feira (10), após quase um mês internado no Hospital João XXIII devido a queimaduras - ele teve 76% do corpo queimado, segundo familiares.

 

 

O operador de jato Wemerson Junior esteve presente no momento do incêndio e ajudou a resgatar vizinhos que estavam presos em casa devido às chamas

O operador de jato Wemerson Junior esteve presente no momento do incêndio e ajudou a resgatar vizinhos que estavam presos em casa devido às chamas

Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press

 

“Esse caminhão causou um sofrimento e tanto para muitas famílias. E nunca mais vai voltar a ser a mesma coisa, porque o Belarmino era um cara animado, brincava com a vizinhança, gostava dos meus meninos. E, infelizmente, ele não vai estar aqui mais”, desabafa Wemerson Junior, de 24 anos.

 

Ele, que trabalha como operador de jato em uma indústria, estava dormindo na hora que tudo começou e foi acordado pela mulher. Assim que os dois saíram da casa, junto dos dois filhos, uma menina de 12 anos e um menino de 10 meses, eles viram a correria dos vizinhos.

 

Imediatamente, Wemerson tirou o carro, que estava na porta da casa, de perto da linha, para evitar que o fogo se alastrasse. Ainda assim, o veículo ficou danificado pelo calor, assim como parte da casa.

 

“Danificou a rede de esgoto do fundo da minha casa e o telhado, porque o fogo, que chegou a 17 metros, deu um problema no telhado. Aí chove aqui e é a mesma coisa de estar chovendo lá dentro, tá vazando muito também”.

 

A Transportadora Jbretas, dona do caminhão, se comprometeu, inclusive junto à imprensa, que garantiria suporte aos atingidos pela tragédia. A empresa indenizou alguns dos moradores pelo prejuízo provocado em carros e motos e por danos morais, em valores que, segundo alegam alguns moradores, foram cerca de R$ 3 mil por pessoa.

 

Também foram iniciadas as reformas de algumas casas danificadas. No caso de Wemerson, os reparos ainda não começaram. “A Defesa Civil veio e avaliou que não abalou a estrutura da casa. O que abalou foi os canos de água, que é dentro da parede, e, com isso, o reboco está estourando. E uma área no fundo da minha casa ficou oca. Mas eles [transportadora] falaram que vão olhar isso aí essa semana”, afirma.

 

 

Todo dia igual

 

“Desde quando a minha filha tinha dois anos que a gente fez esse quartinho para ela. O primeiro trabalho dela no jardim de infância estava aqui. O armário dela tinha trabalhinhos, fotos de colégio, aquela coisa toda. Tanto dela quanto do meu filho”, explica a comerciante Ana Paula Castilho, de 39 anos, enquanto mostra para a reportagem o que sobrou da sua casa. Ela, o marido e os filhos ainda não puderam voltar para casa - desde o dia do acidente, a família tem ficado em um hotel pago pela transportadora.

 

“A gente lembra, eles não vão lembrar. A identidade deles, que eles iam saber da história deles, estava tudo contado aqui. As fotos, os livrinhos, os trabalhinhos, os amiguinhos…”, desabafa.

 

Ao longo do último mês, ela e o marido, o consultor de viagens Said Almeida, de 42 anos, visitaram o imóvel da família quase que diariamente junto da filha Anne, de 14 anos, não apenas para tentar resgatar algum pertence que tenha sobrevivido às chamas, mas também para evitar que o local fosse invadido. “A todo momento o pessoal queria entrar pra furtar a casa", conta Said.

 

Nessas idas e vindas, o casal decidiu não levar o filho mais novo, Gael, de 6 anos, enquanto a casa não for reformada. Segundo Ana Paula, ele foi um dos mais afetados pelo trauma provocado pelo acidente. “Eu penso que ele tem uma memória tão legal do quartinho dele, que era tão bonitinho, que é melhor deixar assim".

 

 

Há um mês morando num quarto de hotel, a rotina da família ficou toda desajustada, já que o espaço, segundo a mãe, “chega a ser claustrofóbico”. Ela conta que não foram apenas as crianças que tiveram o psicológico afetado. “Eu só consigo dormir de manhã, porque eu tenho medo de alguma coisa acontecer e eu não estar ali, porque no dia eu estava acordada. Acho que ficou na minha cabeça isso de se eu dormir e acontecer alguma coisa".

 

Nesse sábado, o casal voltou à casa no Bairro Goiânia para retirar os últimos pertences que ficaram. A transportadora disse que pretende iniciar as obras de reparos nesta segunda-feira (15). Junto do incêndio, a família teve danos materiais não apenas da casa, que havia acabado de ser reformada, mas também de produtos que a comerciante estocava.

 

Segundo o casal, a transportadora ainda não iniciou as tratativas com relação à indenização dos danos provocados. “Eu sinto como se todo dia fosse ontem, porque até hoje a gente não conseguiu sair do lugar. A gente tem uma tristeza por já ter passado um mês e aquilo que a gente batalhou para construir por 23 anos, que foi a nossa vida toda juntos, ainda uma perspectiva exata. É só um ‘vamos resolver’”, desabafa Ana Paula.

 

Faltam respostas

 

A reportagem entrou em contato com a Transportadora Jbretas por diversas vezes, mas não obteve nenhuma resposta.

 

A causa do acidente, que ainda está sem respostas, está sendo investigada pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), que informou em nota que o inquérito policial segue em tramitação. O órgão afirmou também que “o laudo de necropsia do condutor do caminhão foi finalizado, mas a PCMG aguarda a conclusão de outros laudos periciais”.

 

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