Barco naufragado encontrado em 1977 em Sabará possivelmente pertenceu ao engenheiro Henrique Dumont, pai de Santos Dumont -  (crédito: Arquivo Estado de Minas)

Barco naufragado encontrado em 1977 em Sabará possivelmente pertenceu ao engenheiro Henrique Dumont, pai de Santos Dumont

crédito: Arquivo Estado de Minas

Em Sabará, uma história contada por um pescador foi desacreditada pela cidade inteira por anos. Seu Zezinho dizia ter encontrado uma chata de madeira naufragada no Rio das Velhas, perto do antigo Porto da Paciência, a pouco mais de 1km do Centro Histórico do município da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O pescador levou a história às autoridades, mas foi desacreditado. Parecia loucura acreditar que um barco teria sobrevivido ali, no meio da água barrenta, cheia de minérios, depois que o rio se tornou inavegável até mesmo por uma canoa.

Quatro décadas se passaram e a prefeitura da então Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabarabussu (Sabará) decidiu investigar o caso após relatos de outros pescadores. Algumas horas depois do início das escavações, surgiram os primeiros sinais da veracidade da história contada por Zezinho.

Barco naufragado no Rio das Velhas foi encontrado nos anos 1970 em Sabará

Barco naufragado no Rio das Velhas foi encontrado nos anos 1970 em Sabará

Arquivo EM

O Sabia Não, Uai! mergulhou nos arquivos do Estado de Minas e do Diário da Tarde para resgatar a história de quando um barco naufragado por quase 100 anos emergiu das águas do Rio das Velhas. Um achado histórico que, segundo apontam historiadores, possivelmente pertenceu ao pai de Santos Dumont.

 

História de pescador

A última semana de julho de 1977 foi de muita euforia na cidade de Sabará, após a descoberta de partes de um barco naufragado no rio que corta a cidade. Zezinho tinha se tornado funcionário da Central do Brasil e a história que ele contava há quatro décadas ganhou força com os relatos de outros dois pescadores da cidade, Jair de Carvalho e Renato Ramos. Foi então que a prefeitura decidiu remexer nas águas do Velhas em busca da tal embarcação.

Então diretor de obras da prefeitura, o engenheiro Eneber Café Carvalhaes descreveu o achado para a reportagem publicada pelo Diário da Tarde, dos Diários Associados, em 30 de julho de 1977. “Trata-se de uma ‘chata a vapor’, utilizada para transporte de carga e de passageiros. O casco é feito de pinho de riga, nas suas paredes laterais, armado com vigas de aço no sentido longitudinal, e de grossas traves de aroeira no sentido transversal”, relatou ao jornal.

A reportagem destacou que havia documentos na Biblioteca Pública de Sabará que registravam o tráfego de pequenas embarcações a vapor no Rio das Velhas ao longo do século 19. Também foi dito que havia uma velha “chata a vapor” numa praça de Juazeiro, na Bahia, que fazia o trajeto entre o estado e Minas Gerais pelo Rio São Francisco e pelo Rio das Velhas. Em 2012, o Estado de Minas visitou a embarcação, chamada de Saldanha Marinho, que está até hoje na cidade e é umas das principais atrações turísticas de Juazeiro.

 

Batalha naval

 

Jose Bouzas, historiador e conhecedor da história de Sabará, acompanhou a descoberta do barco e ainda sonha com uma confirmação se ele continua ou não no Rio das Velhas

Jose Bouzas, historiador e conhecedor da história de Sabará, acompanhou a descoberta do barco e ainda sonha com uma confirmação se ele continua ou não no Rio das Velhas

Denys Lacerda/EM/D.A Press

O historiador José Bouzas, conhecedor das histórias de Sabará, acompanhou nos anos 1970 as tentativas da Prefeitura de Sabará para retirar o barco de dentro d’água. A descoberta desse achado histórico movimentou a cidade. Ao longo das semanas, moradores iam para o antigo Porto da Paciência acompanhar as escavações. Nos fins de semana, turistas visitavam a cidade aos milhares, mesmo sem poder ver muita coisa, já que as tentativas de “resgate” da embarcação não foram bem sucedidas.

A vontade dos sabarenses era expor o barco em alguma praça do Centro Histórico, mas não eram só eles que tinham interesse na embarcação. O deputado federal Nelson Thibau (1922-2014), então filiado ao MDB, propôs, na tribuna da Câmara Federal, em Brasília (DF), que o barco fosse deslocado de Sabará para a Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Segundo ele, a região precisava de mais atrativos turísticos. “Uma atração a mais em Belo Horizonte para milhares de visitantes que chegam à capital, todos os anos”, comentou, segundo reportagem de 11 de agosto de 1977.

Alguns anos antes, durante uma campanha eleitoral, Thibau havia prometido que, se eleito, traria o mar para Minas Gerais, por meio de um aqueduto entre Angra dos Reis (RJ) e a Lagoa da Pampulha.

Os dias seguintes à declaração do deputado foram de disputas entre autoridades das duas cidades, cada uma defendendo qual acreditavam ser o melhor destino do barco. O então presidente da Fundação Casa de Cultura de Sabará, Cícero Silva Júnior, disse que até mesmo Oscar Niemeyer (1907-2012), arquiteto que projetou o conjunto arquitetônico da Pampulha, faria oposição à transferência do barco. “Ele seria contrário, pois um velho e antigo monumento igual à embarcação não coadunaria com o modernismo de sua obra. Ele acharia a ideia absurda”, relatou na reportagem.

 

E a correnteza levou

No fim das contas, o barco não ficou nem na praça de Sabará, nem na Lagoa da Pampulha. A prefeitura tentou retirar a embarcação do Rio das Velhas por conta própria, mas, após tentativas frustradas, decidiu pedir ajuda à Marinha. Pelo fato de a embarcação ser muito antiga e feita de madeira, havia a possibilidade de ela se desfazer no processo.

Especialistas investigaram o barco e passaram uma data para iniciar o processo de “resgate”, mas não foi feito. A reportagem do Sabia Não, Uai! pediu para a Marinha informações sobre documentos envolvendo o caso, mas a instituição informou que “não há registros da referida embarcação nos arquivos físicos e digitais da Capitania Fluvial de Minas Gerais”.

O historiador José Bouzas garante que o barco não foi retirado do Velhas. “Conversei com o prefeito da época, que está vivo e falou que ninguém tirou. O barco está aqui no rio”, afirmou. Para ele, que viveu o período de euforia com a descoberta e a frustração com o abandono do achado, ter a embarcação retirada hoje seria impactante, assim como foi no passado. “Seria muito interessante para o turismo, até como foi na época, porque é um barco que navegava aqui há 160 anos. Seria muito interessante descobrir nem que fosse um pedaço dele, para poder confirmar a utilização do rio para navegação”.

 

Navegável ou não?

Local onde foi encontrado o barco naufragado, no Rio das Velhas, em Sabará (MG). A água suja e barrenta impede visualizar se a embarcação continua ali

Local onde foi encontrado o barco naufragado, no Rio das Velhas, em Sabará (MG). A água suja e barrenta impede visualizar se a embarcação continua ali

@estev4m/Especial para o EM

Bouzas acompanhou o Sabia Não, Uai! até o Campo do Ferroviário, no Bairro Paciência, próximo ao local onde o barco naufragado foi encontrado nos anos 1970. Devido às águas escuras do Velhas, não é possível enxergar qualquer vestígio da embarcação. No entanto, Bouzas explica que a condição atual do rio é bem diferente do século retrasado, quando ainda era possível navegar por ali, mesmo que aos trancos e barrancos. “Ele era navegável por ‘baixo calado’, com pequenas barcaças e barcos a vapor”.

Bouzas detalha que uma das maiores dificuldades de navegar no Velhas era por conta dos bancos de areia na região entre Sabará e Jequitibá (MG), o que exigia dos navegantes que desviassem o barco. “O próprio viajante inglês Richard Burton escreveu num livro (Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico) a dificuldade que ele teve”.

O historiador acredita que o barco fazia o transporte de madeiras utilizadas para escorar a Mina do Morro Velho, em Nova Lima, e que a embarcação pertenceu ao engenheiro Henrique Dumont (1832-1892), pai do Santos Dumont (1873-1932). Acredita-se, inclusive, que o Saldanha Marinho, o barco turístico em exposição lá em Juazeiro (BA), tenha sido construído por Henrique Dumont.

“É quase 100% certo de que foi do pai dos Santos Dumont, que explorava madeira na Fazenda Jaguara (em Matozinhos). O barco vinha até nessas imediações, onde ele foi encontrado, e descarregava a madeira, que era levada no lombo de burros e em carros de boi até Nova Lima. Isso na década de 1870. Depois eles abandonaram, porque caiu a mina grande lá em Nova Lima e parou a exploração”, explica.

*Com produção de Irene Campos e Rafael Alves

Sabia Não, Uai!

O Sabia Não, Uai! mostra de um jeito descontraído histórias e curiosidades relacionadas à cultura mineira. A produção conta com o apoio do vasto material disponível no arquivo de imagens do Estado de Minas, formado também por edições antigas do Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro.

O Sabia Não, Uai! foi um dos projetos brasileiros selecionados para a segunda fase do programa Acelerando Negócios Digitais, do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ), programa apoiado pela Meta e desenvolvido em parceria com diversas associações de mídia (Abert, Aner, ANJ, Ajor, Abraji e ABMD) com o objetivo de atender às necessidades e desafios específicos de seus diferentes modelos de negócios.