A ancestralidade e as histórias da culinária quilombola
Refeições preservam as memórias, a religiosidade e os modos de vida de comunidades quilombolas de BH
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Feijão preto, rabada, angu, milho, frango com quiabo. Ingredientes populares no cotidiano do brasileiro contam histórias que remontam aos séculos de resistência negra no país. Parte da culinária de matriz africana, esses alimentos compõem os saberes que sustentam comunidades quilombolas, territórios vivos de ancestralidade e cultura, onde comida, espiritualidade e pertencimento se unem.
Minas Gerais é o terceiro estado com maior número de quilombolas no país - são 135.310 pessoas, segundo o Censo de 2022. Entre elas, 5.735 vivem em Berilo, município do Vale do Jequitinhonha. Lá, 12 comunidades mantêm suas tradições, com base na agricultura familiar, no artesanato, na oralidade e claro, na comida - uma das mais potentes expressões de memória.
O cientista social Rodrigo Rafael Gonzaga, pesquisador da UFMG e integrante do Banco de Fontes Negras da instituição
“Não é só o prato. É todo um saber passado de geração em geração. A comida tem um lugar sagrado dentro da comunidade, e muitas vezes carrega símbolos religiosos, formas de cura e de organização coletiva”, explica o cientista social Rodrigo Rafael Gonzaga, pesquisador da UFMG e integrante do Banco de Fontes Negras da instituição. “O alimento é bem coletivo. O ato de se alimentar também é coletivo, que fortalece vínculos e afirma identidades.”
A culinária brasileira carrega fortes influências das tradições alimentares africanas, trazidas durante o período do colonialismo. Ingredientes como o feijão preto, o cuscuz e a canjica, amplamente consumidos no país, têm origem nos hábitos alimentares dos povos africanos escravizados e foram incorporados ao cotidiano nacional com o passar do tempo.
Raízes africanas
Muitos dos temperos e ingredientes usados atualmente em receitas ao redor do mundo também têm raízes africanas. O óleo de dendê, o leite de coco e a noz-moscada são exemplos de sabores que atravessaram o Atlântico e ganharam espaço definitivo em cozinhas de diversos países. No Brasil, especialmente na Bahia, o leite de coco e o dendê são elementos fundamentais na preparação de moquecas e outros pratos com frutos do mar. Embora muitas vezes não se reconheça sua origem, esses alimentos de base africana seguem fundamentais em cozinhas tradicionais e contemporâneas em diferentes partes do mundo.
A força simbólica da alimentação como elo entre memória, terra e identidade também aparece em obras literárias contemporâneas, como “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior. As protagonistas, descendentes de trabalhadores escravizados, vivem em íntima relação com a terra, de onde tiram o sustento e com a qual mantêm um pacto silencioso de sobrevivência. Assim como nos quilombos de Minas Gerais, a comida em ”Torto Arado” é expressão da resistência negra.
No coração de Belo Horizonte, mais exatamente no Bairro Santa Efigênia, o quilombo urbano e religioso Manzo Ngunzo Kaiango também mantém vivas essas práticas. Fundado em 1970 por Mãe Efigênia, Mametu Muiandê, o terreiro, que fica na Região Leste da capital, é reconhecido, desde 2018, como Patrimônio Cultural de Minas Gerais. A religiosidade de matriz africana estrutura a vida da comunidade, inclusive na alimentação.
Joana D’arc da Silva, filha de Mametu e irmã de Makota Kidoialê, é a responsável pela cozinha do Manzo. “Minha mãe trabalhava para um patrão cuja mãe estava muito doente. Ele pediu que ela chamasse o ‘preto velho’ (expressão usada para quando uma entidade religiosa toma um corpo para fins de cura) para benzer. Depois, quis recompensá-la com dinheiro, mas isso não é permitido dentro da nossa tradição. Então, em agradecimento, ele deu um pedaço de terra, que virou a Senzala Pai Benedito”, conta.
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Com o tempo, a área passou a abrigar várias famílias. No entanto, depois todas foram removidas do local. “Nos levaram para um abrigo e derrubaram tudo. Mas voltamos para o território”, lembra Joana. A retomada teve apoio de sua irmã, Makota Kidoialê, que foi buscar explicações sobre a expulsão. “Foi ela quem começou a levantar documentos e provas de que ali vivia uma comunidade. Foi aí que descobrimos também que éramos quilombos.”
Sagrado e alimento
“A comida faz parte da história da nossa comunidade. Não é receita de faculdade, é saber ancestral. Cada prato tem uma função espiritual”, diz. Ela explica que as refeições só podem ser preparadas por mulheres mais velhas, que já não menstruam, pois as comidas sagradas não devem ser manipuladas com o "corpo aberto".
Nos quilombos, cada ingrediente tem significado. O milho representa fartura. O feijão preto é associado a Ogum, orixá ferreiro e guerreiro. A preparação e refeição coletiva reforça vínculos. “A gente não aprendeu em livro, é no convívio. Cozinhar é uma forma de ensinar e manter nossa história viva. É o que a gente tem de mais forte”, afirma Joana D’arc.
Entre os pratos tradicionais, Joana destaca a acaçá. “É um angu feito com canjica branca moída, leite de coco e açúcar. Depois, é enrolado na folha de bananeira, em formato de pirâmide, que simboliza equilíbrio. Tudo isso é preparado com pano branco, em um espaço limpo, com muito respeito.” O prato é comumente preparado para ritos religiosos.
E nada é descartado. Restos de alimentos ou de oferendas são enterrados junto a folhas de bananeira ou mamona, em forma de composteira. “É uma forma de respeito ao meio ambiente.”
Sabores do afroturismo
“Cada prato conta uma história. O angu, o fubá suado e a feijoada. Tudo tem uma ligação com o que se planta e colhe dentro do quilombo. Não é só uma refeição, é uma forma de manter a nossa memória”, afirma Fabiana Paula Ferreira, de 44 anos, moradora do Quilombo do Ribeirão, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Além de uma forma de preservação da memória, a culinária também é ferramenta de valorização econômica e cultural dos quilombos. Em Brumadinho, comunidades como Ribeirão, Marinhos, Sapé e Rodrigues participam do Circuito dos Quilombos, uma rota de turismo de base comunitária organizada pelo projeto Céu de Montanhas, – projeto de turismo rural e de base comunitária desenvolvido pela Vale em parceria com a Rede Terra.
Lançado em 2022, o catálogo Céu de Montanhas reúne cerca de 40 vivências rurais,gastronômicas, artísticas e bem-estar disponíveis na região, e é uma das iniciativas do Programa de Turismo de Brumadinho.
Durante as visitas às comunidades, os turistas conhecem tradições, cantos, danças, artesanatos e, claro, receitas quilombolas. O café da manhã no Quilombo do Sapé inclui broas, pães, chá e café adoçado com rapadura. Na sequência, os turistas visitam o Quilombo de Rodrigues, onde conhecem a igreja que fica na entrada da comunidade. O momento seguinte foi de arte e descontração com instrumentos de percussão e com o grupo musical Negro por Negro. Além disso, têm a oportunidade de participar de uma oficina de pulseiras de sementes de Lágrima de Nossa Senhora colhidas na própria comunidade, e experimentaram drinks feitos com ingredientes locais.
No almoço, a feijoada do Quilombo Ribeirão faz sucesso. “É uma comida comum pra gente, mas que encanta quem chega. O que pra nós é cotidiano, vira aprendizado para quem vem de fora”, conta Fabiana, que prepara a feijoada com carnes de porco, feijão preto e cheiro-verde colhido na horta comunitária. A comida, segundo ela, também varia com as estações. “Se tem muita mexerica, a gente faz bolo, salada. Nada se perde.”
A visita se encerra em Marinhos, o mais antigo dos quatro quilombos. Após conhecer as bonecas artesanais feitas pelas mulheres da comunidade, os visitantes assistem a uma apresentação de cânticos tradicionais e aprendem sobre a história e as manifestações culturais locais. Uma roda de bênçãos é conduzida pela matriarca Dona Nair, que encerra a visita.
Rodrigo Rafael Gonzaga acredita que o fortalecimento do afroturismo pode ser um caminho de inclusão para os quilombos, desde que seja respeitosa e participativa. “As comunidades sempre desenvolveram ações isoladas. Agora estão organizando experiências mais estruturadas, como vivências, festas, oficinas e refeições. É turismo com base comunitária, que valoriza saberes locais e promove autonomia.”
Visibilidade
A analista de Sustentabilidade da Vale, Daniele Teixeira, avalia que projetos como o Circuito dos Quilombos, realizado anualmente ou por meio de reservas agendadas, impactam a região de diversas formas. “A iniciativa responde a uma demanda e a um processo de escuta: o de valorizar o que é local. Além de promover empoderamento, gera um sentimento cada vez maior de pertencimento para essas lideranças e, principalmente, para as comunidades quilombolas, que por tanto tempo ficaram à margem da sociedade. É uma forma de dar visibilidade à cultura, ao modo de receber, à gastronomia, às tradições, às bênçãos dessas comunidades.”
Ainda que sejam quatro comunidades, Fabiana conta que todas são muito unidas, como se fossem uma só. “Hoje, a gente luta para não deixar essa tradição acabar, para que a história e o legado dos nossos não caiam no esquecimento. A gente quer evitar esse negócio de briga e separação. A luta hoje é pela resistência. Resistir para não deixar que tudo isso se perca.”
Daniele pontua que o objetivo do Circuito e de experiências como essa é também permitir que cada vez mais pessoas da própria comunidade permaneçam em seus territórios, gerando trabalho, renda e valorização a partir do turismo. “A ideia é que o turista vá até lá, conheça, seja recebido e que a principal fonte de renda venha dessa vivência. Tudo isso de forma estruturada, respeitosa, mas sem que as pessoas precisem se submeter a outros tipos de trabalho. Que possam viver com dignidade e honestidade a partir daquilo que já possuem: sua cultura, suas tradições e sua gastronomia.”
Receita: Feijoada para 15 pessoas
Por Fabiana Paula Ferreira (Quilombo do Ribeirão)
Ingredientes:
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2 pacotes de feijão preto
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2 kg de rabinho de porco
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2 kg de orelha de porco
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2 kg de “furinho” de porco
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2 kg de linguiça calabresa
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2 kg de carne de porco
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1 kg de bacon
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Limão e temperos naturais a gosto
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Cheiro-verde para finalizar
Modo de preparo:
Pique todas as carnes em tamanhos iguais, não muito pequenos. Escalde com água quente e suco de três limões. Tempere com ervas frescas. Frite separadamente todas as carnes. Em uma panela grande, misture as carnes fritas, exceto o bacon. Acrescente o feijão já cozido. Por último, adicione o bacon e misture bem. Deixe ferver até atingir a consistência desejada. Finalize com cheiro-verde.
Dica: “O principal ingrediente é o amor no que está fazendo.”
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