Durante a projeção de “Valor sentimental” pensei em um texto de André Bazin. Ali, ele define a pintura como arte de caráter centrípeta, porque atrai a nossa atenção para o interior do quadro, como se o pintor buscasse colocar ali todo o universo.
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Oposto ao quadro, o cinema não seria centrípeta, pois o movimento chama a nossa atenção e interesse para fora do que vemos. Isto é, para o “extracampo”: aquilo que está fora do nosso campo de olhar, imediato ou não.
Em “Valor sentimental”, de Joachim Trier, tratamos com Gustav Borg, papel de Stellan Skarsgård, cineasta de prestígio, e seus problemas com a família, em especial com Nora, personagem de Renate Reinsve, sua filha mais velha.
Gustav deixou a família quando Nora ainda era criança e permaneceu ausente mesmo após o suicídio de sua mulher. Ele carrega nas costas (e no espírito), o peso de suas decisões.
Nora tornou-se grande atriz de teatro, mas nunca superou o abandono paterno. Pai e filha quase nunca se encontram. E quando se encontram é um mar tempestuoso de silêncios, ressentimentos, dor. Onde está o extracampo? Talvez esteja no fato de que todo o tempo vemos as personagens. Mas somos levados a pensar no que se passa em suas mentes.
Memória
No momento da ação, Gustav está em busca do tempo perdido. Mas é como se o filme nos dissesse: o tempo é o tempo, não se recompõe, não se decompõe, não se recupera. A memória permanece quase fechada em si.
Como a trinca que aparece na velha casa da família, logo no início do filme: com o tempo, ela tende a aumentar. Mas isso acontece num tempo longo, de várias gerações, que, aos poucos, pode corroer a casa, soterrada por tantas histórias escondidas (ou melhor, que as crianças conseguem escutar secretamente).
Enquanto Nora tenta superar o pânico de entrar num palco, Gustav busca reenquadrar a vida. É a mais fascinante das tentativas de Gustav nesse sentido, pois consiste em criar um roteiro especialmente para ter Nora como atriz. Algo especialmente dilacerante para ambos. Nora, aliás, recusa o convite do diretor, que por sinal nunca vai ao teatro para vê-la atuar.
A incomunicabilidade, como se dizia no passado, impera. Gustav busca outra atriz para fazer o papel de Nora. Encontra uma atriz estrangeira, Rachel Kemp, papel de Elle Fanning, que adora os filmes de Gustav. Mas será que faz sentido ter outra atriz para o papel da filha, e uma americana, que obrigará a ser o filme falado em outra língua?
Essa é uma das perguntas que o espectador é levado a formular enquanto assiste ao filme: o que se passa na cabeça de Gustav, Nora, Rachel, a atriz, ou Agnes, a filha mais nova de Gustav, faz algum sentido?
Mas, fique claro, não é perguntar se a existência faz sentido, o fim deste filme. É afirmar o quanto a existência pode ser amarga, embora esse sabor também possa ser transitório. Isso faz lembrar outro grande cineasta, o japonês Ozu, que quase ao fim da vida concluiu que “a vida é um pouco decepcionante”. Perto da visada bergmaniana (que Trier, em parte, retoma), a vida não é apenas muito decepcionante. É espécie de catástrofe incontornável.
Para evitá-la, Gustav precisaria abandonar a profissão e ficar com a família. Mas isso seria apenas trocar uma catástrofe por outra, embora nesse caso ele só precisasse responder a si mesmo, e não à família. O certo é que o cinema é acima de tudo sua vida.
Cinema nórdico
A presença do cinema não parece apenas decorativa em “Valor sentimental”. Se está mais para o lado Bergman, não por acaso Trier dá a seu cineasta o sobrenome Borg (seria um descendente da família Borg de “A palavra”, de Carl Theodor Dreyer?). E por que esse cineasta se chama Gustav (como Gustav Molander, ou como o tcheco Gustav Machaty, cuja mulher, por sinal, suicidou-se?), dois outros nomes importantes do cinema nórdico.
O cinema nórdico está implicado até a medula neste filme. Inclusive porque a paisagem interior (a mente dos personagens) encontra equilíbrio na paisagem exterior (a casa, mas não só), o que torna a evolução da trama suave, apesar do que rola na mente das personagens, e desvia sabiamente o filme do fatalismo.
É preciso lembrar, por fim, que estamos diante de uma família ateia, o que torna ainda mais interessante a frase que surge em dado momento: quem reza não conversa com Deus, apenas apela a algo em face do desespero. Ou seja, pedimos a Deus, não porque acreditamos, mas pela extensão de nossa fragilidade.
Esse belo filme, tão diferente de “O agente secreto”, que ganhou o prêmio de melhor direção em Cannes, ficou com o Grand Prix de Cannes. Está à altura do filme brasileiro. Ambos são bem mais interessantes do que “Foi apenas um acidente”, que levou a Palma de Ouro e não é nulo. Mas é mais um triunfo da política sobre a arte.
De olho no Oscar
Assim como o brasileiro “Agente secreto”, “Valor sentimental” – também premiado no Festival de Cannes – é tido como um forte concorrente ao Oscar. O filme está na pré-seleção da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood para as categorias Direção de Elenco, Fotografia e Filme Internacional, nesta como representante da Noruega.
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“VALOR SENTIMENTAL”
(Noruega, Alemanha, Dinamarca, França, Suécia, Reino Unido, Turquia, 2025, 132 min.) Direção: Joachim Trier. Com Stellan Skarsgård, Renate Reinsve e Elle Fanning. Classificação: 16 anos. Estreia nesta quinta (25/12), no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 16h, 20h40), no Ponteio (Sala 4, 18h05) e no Pátio Savassi (Sala 4, 17h30 e 21h; 14h50, às quartas).
