Ao longo do ano passado, os artistas visuais Liliane Dardot e Marcelo Silveira não fizeram outra coisa a não ser se dedicar à pedra, ao papel e à tesoura. Não se engane o leitor, pois não se trata do popular jogo infantil, mas da série de intervenções que Marcelo realizou em gravuras de Liliane, guardadas e esquecidas há cerca de 40 anos. O resultado pode ser conferido a partir deste sábado (6/12), na galeria Albuquerque Contemporânea, na exposição “Pedra, papel, tesoura e pó”.

Liliane e Marcelo conheceram em Olinda, na virada da década de 1970 para 1980. Natural de Belo Horizonte, Liliane havia se mudado para Pernambuco, onde se encontrou com Marcelo na oficina de João Câmara. O espaço, que reunia artistas de diferentes gerações e tendências, era polo fundamental da cena litográfica do estado.

Foi ali que Liliane iniciou a série de gravuras marcadas pela repetição e pelo teor político. “O Brasil ainda vivia sob a ditadura. Minhas primeiras gravuras eram muito voltadas às questões que atravessavam aquela época”, lembra a artista.

“Só mais tarde entrei em outros temas. Quando tive filhos, achei importante abordar a vida dentro de casa, além dos grandes problemas sociais. Porque o trabalho do dia a dia da mulher não é reconhecido”, acrescenta.

Um dos exemplos dessa perspectiva é “Corte e reconstituição”, que recebeu intervenção de Marcelo. Trata-se do desenho em preto e branco com vários torsos humanos alinhados. De cada um deles pende o braço cuja mão segura um objeto alongado que, ao primeiro olhar, se assemelha a uma faca. Porém, ao observá-lo de perto, percebe-se que se trata de uma torneira.

 

Trabalho noturno

A disposição dos corpos e braços forma o jogo de luz e sombra que acentua a tensão pela repetição mecânica. “É uma obra relacionada ao trabalho noturno, principalmente da mulher, que chega em casa e ainda precisa trabalhar, como se fosse um terceiro turno”, diz Liliane.

“Pedra, papel, tesoura e pó” se divide em três núcleos e tem como eixo central obras realizadas a quatro mãos. “Foi um processo de se aproximar e interferir. Corta aqui, rasga ali, põe pó de grafite, tira o pó. Assim a gente vai produzindo”, conta Marcelo Silveira.

“No início, a gente fica um pouco em dúvida. Quando um artista permite que se faça intervenção em sua obra, é um gesto de generosidade enorme. A pessoa está abrindo mão do que fez para que o outro destitua o status da obra, priorizando a experimentação. Essa dúvida só desaparece quando nos convencemos da verdade do que fazemos”, afirma.

Marcelo trabalhou com Liliane em “Oferenda”, composição vertical estruturada em três faixas repetidas como variações da mesma imagem: um prato branco à direita, sustentado por duas mãos sob uma torneira, contendo as palavras “fome”, “sede” e “de quê”. À esquerda, o conjunto de folhas grandes e verdes contrasta com os tons terrosos do fundo.

Detalhe de 'Oferenda' (1981/2025). Marcelo Silveira abriu mão de elementos criados por Liliane Dardot para destacar palavras escritas nos pratos

Albuquerque Contemporânea/divulgação

Elementos presentes na versão original foram retirados por Marcelo, que optou por destacar as palavras no prato. Assim, a paleta quente, a vegetação exuberante, os pratos vazios e a presença insistente das torneiras criam conjunto visual de forte tensão entre abundância e ausência.

A mão que segura o prato, nesse novo arranjo, é ressignificada como símbolo do trabalho doméstico, enquanto as palavras “fome”, “sede” e “de quê” alargam o campo semântico. A fome evocada ali não é apenas física, mas também afetiva, material, política e espiritual.

Com curadoria de Guilherme Bueno, a mostra apresenta ainda trabalhos individuais de Liliane e Marcelo, que ocupam o primeiro e o terceiro núcleo da exposição. “Além das obras de crítica social, Liliane tem desenhos de folhas e flores que surgiram no ateliê e ela foi registrando. Procuramos relacionar esses trabalhos com o restante de sua produção”, afirma o curador.

“Marcelo trabalha muito com a ideia de acúmulo, reunindo materiais diversos. Uma instalação, por exemplo, é feita com retalhos de madeira recolhidos por ele. Outro trabalho parte de cartões-postais e de uma folhinha religiosa. É obra muito fundamentada na apropriação de elementos do cotidiano”, explica Bueno.

Ao revisitar imagens esquecidas, Liliane Dardot e Marcelo Silveira não apenas apostam no saudosismo, mas iluminam questões que atravessam décadas. O rigor da repetição, por sua vez, direciona o olhar para questões que, ainda hoje, insistem em se repetir.

 

“PEDRA, PAPEL, TESOURA E PÓ”


Exposição de Liliane Dardot e Marcelo Silveira. Abertura neste sábado (6/12), das 10h30 às 13h, na galeria Albuquerque Contemporânea (Rua Antônio de Albuquerque, 885, Funcionários). Em cartaz até 31 de janeiro. A galeria funciona de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábado, das 10h30 às 13h. Entrada franca. Excepcionalmente na segunda-feira (8/12), a galeria estará fechada.

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