ARTES CÊNICAS

Espectadores vivem experiência inesquecível ao dividir o palco com o Galpão

Vendadas, 14 pessoas da plateia compartilham com elenco de '(Um) Ensaio sobre a cegueira' a química do 'estado de expectativa intensa' proporcionado pelo teatro

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Cerca de 20 minutos antes do início da sessão de “(Um) Ensaio sobre a cegueira”, adaptação do romance de José Saramago pelo Grupo Galpão, os diretores assistentes Georgina Vila Bruch e Paulo André – este integrante do elenco – reúnem-se com as 14 pessoas que se dispuseram a participar da peça.

O encontro ocorre numa sala pequena, anexa ao palco do teatro que a trupe mantém no Bairro Horto. Com iluminação sutil e cadeiras em semicírculo, o ambiente lembra uma capela, conferindo aura intimista para que os participantes se acostumem com a presença uns dos outros, com quem dividirão a cena por mais de uma hora.

Voluntários em fila, com vendas nos olhos, participam da peça '(Um) Ensaio sobre a cegueira', do Grupo Galpão, em Belo Horizonte
Voluntários participam da peça '(Um) Ensaio sobre a cegueira', do Grupo Galpão, na sessão de quinta-feira, Dia do Trabalhador Guto Muniz/divulgação

"Bem-vindos e bem-vindas a essa experiência imersiva, na qual a participação de vocês é muito importante", começa Georgina. “Vocês serão vendados, e os atores do elenco os conduzirão com dicas de fala ou orientações por meio do toque. Alguém tem algum problema em ficar vendado?”

A pergunta não é gratuita. Os voluntários passarão cerca de 70 minutos com os olhos tampados, representando personagens que perdem a visão de forma inexplicável durante epidemia misteriosa que assola uma cidade fictícia, impondo-lhes quarentena forçada dentro de um manicômio insalubre.

Em 1º de maio, dia em que a reportagem do Estado de Minas acompanhou a sessão, havia certa apreensão: a menos de 10 minutos do início do espetáculo, apenas cinco dos 14 voluntários haviam chegado. Para subir ao palco, é necessário adquirir o “ingresso experiência”, com o mesmo preço do convencional. O jeito foi convidar alguém da plateia.

Entre os convocados de última hora estavam a estudante Sarah Mota e o jornalista Fernando Torres. Graduanda em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, Sarah é de Paraíso do Tocantins (TO) e, ao longo dos três anos em que vive em Belo Horizonte, jamais havia assistido a um espetáculo do Galpão. Sua primeira experiência já foi imersiva.

“Eu não sabia onde estavam me posicionando no palco, a gente perde completamente a noção espacial. Até tentava acompanhar as vozes dos atores, mas não conseguia me localizar. Sempre precisava ser guiada quando tinha de me movimentar. É uma situação muito diferente”, revela.

 

Atores da peça '(Um) Ensaio sobre a cegueira' estão diante de mesa onde há um grande bolo
Peça '(Um) Ensaio sobre a cegueira' faz temporada em BH até 1º de junho, com sessões de quarta-feira a domingo, no Galpão Cine Horto Marcos Vieira/EM/D.A Press

Era visível o quanto Sarah estava desorientada. Não só ela, mas os outros 13 espectadores que subiram ao palco. Era curioso – e, em certos momentos, divertido – vê-los mexendo as cabeças cuidadosamente, tentando se virar na direção do som, principalmente considerando que a trilha sonora do espetáculo, maravilhosamente composta por Federico Puppi, é executada ao vivo pelos atores.

A ideia de pôr o elenco do Galpão – Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Julio Maciel, Antonio Edson, Simone Ordones e Luiz Rocha – contracenando com não atores surgiu durante o processo de criação da peça, conduzido pela trupe em parceria com o diretor Rodrigo Portella.

Ao longo da adaptação, percebeu-se que a reflexão de Saramago sobre o senso de comunidade poderia se materializar em cena por meio da colaboração entre elenco e público.

Atores Eduardo Moreira e Inês Peixoto no ensaio aberto da peça '(Um) Ensaio sobre a cegueira', do Grupo Galpão
Eduardo Moreira e Inês Peixoto no ensaio aberto da peça '(Um) Ensaio sobre a cegueira', do Grupo Galpão Marcos Vieira/EM/D.A Press

A proposta é influenciada pelos estudos do dramaturgo francês Denis Guénoun, que, na década de 1970, propôs transformar os espectadores em “expectadores”, ou seja, pessoas em estado de expectativa constante. Foi a sugestão de Rodrigo aos atores do Galpão.

“Sem dúvida, é uma forma inigualável de entrar na própria peça e viver aquela história de um jeito, talvez, mais real. Entrei na confusão – quando havia confusão – e participei de tudo o que acontecia, mesmo sem enxergar nada. Foi tudo muito intenso”, destaca a universitária Sarah Mota.

Os “coadjuvantes” não permanecem vendados o tempo todo do espetáculo. Em uma das cenas mais impactantes, em que mulheres internadas no manicômio são entregues ao estupro em troca de comida e depois passam por um rito de purificação, todos os 14 voluntários retiram as vendas.

“Do ponto de vista masculino, é muito forte ver a cena. Ver a degradação do outro gênero por uma prerrogativa social idiota, que escancara o machismo da nossa sociedade”, diz o jornalista Fernando Torres. “Mesmo naquela situação de miséria e caos absoluto, as mulheres são entregues e abusadas. É duro, enquanto homem, presenciar isso.”

Entre os que haviam planejado participar da peça e subiram ao palco estava o estudante de filosofia Lucas Simões.

“Estar ali dentro, sem poder enxergar, acaba dificultando a compreensão do que está acontecendo. Tentei me guiar pelo som e identificar o que estava sendo emitido. É muito difícil supor o que vai acontecer, mas é uma experiência muito emocionante”, relata.

Química

A experiência é emocionante também para os atores do Galpão, que vivenciam partilha única e profunda a cada apresentação.

“A entrada do público em cena provoca a situação real de fragilidade, à qual estão expostos tanto os corpos da fábula quanto os do mundo real. A química que acontece no momento, muito viva, gera solidariedade. Isso nos leva a ações autênticas, à troca de emoções, à possibilidade de sentir o outro numa imersão muito intensa”, resume a atriz Inês Peixoto.

“(UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”

Peça baseada no romance de José Saramago. Direção: Rodrigo Portella. Com Grupo Galpão. Até 1º de junho. De quarta a sábado, às 20h, e domingo, às 19h, no Galpão Cine Horto (Rua Pitangui, 3.613, Horto). Ingressos esgotados até 11/5. Preço: R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia). Ingresso experiência: 14 por sessão, no mesmo valor. À venda na plataforma Sympla. Interpretação em libras às quintas e domingos.




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