Tiago Baumfeld
Tiago Baumfeld
Ortopedista Especialista em Pé e Tornozelo. Doutor em Ortopedia pela UFMG.
Pé & tornozelo

O que a medicina ainda não aprendeu sobre descansar

A maior lição seja simples e, ao mesmo tempo, difícil de aplicar: descanso não é sinal de fraqueza, mas de inteligência biológica

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Existe algo profundamente contraditório na forma como a medicina lida com o descanso. Sabemos, com abundância de evidências, que o corpo precisa de pausas para se recuperar, adaptar e funcionar melhor. Prescrevemos repouso, falamos de recuperação muscular, de sono reparador, de controle do estresse. Mas, quando o assunto é o nosso próprio ritmo, e o da sociedade como um todo, o descanso segue tratado como luxo, fraqueza ou perda de tempo.

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No fim do ano, essa contradição fica ainda mais evidente. Dezembro chega carregado de promessas de pausa, férias, celebração. Mas, na prática, o que vemos é o oposto: agendas espremidas, cirurgias “antes que o ano acabe”, pacientes mais ansiosos, médicos mais cansados. Um cansaço que não aparece em exames de imagem, mas transborda na consulta, no centro cirúrgico, na tomada de decisão.


A medicina moderna avançou enormemente em tecnologia, precisão diagnóstica e opções terapêuticas. Evoluímos em robótica, inteligência artificial, técnicas minimamente invasivas. Mas seguimos surpreendentemente atrasados quando o tema é descanso, não apenas como pausa física, mas como componente essencial de saúde.


Descanso não é ausência de esforço

Um dos erros mais comuns é confundir descanso com inatividade absoluta. O corpo humano não foi feito para alternar apenas entre sobrecarga e imobilidade. Descansar é modular carga, não eliminá-la. É permitir que tecidos se adaptem, que sistemas se reorganizem, que o cérebro desacelere sem desligar.
Na prática clínica, isso aparece todos os dias. O paciente que trabalha em ritmo intenso o ano inteiro e, nas férias, resolve “compensar” com excesso de esporte. O corredor que aumenta volume em dezembro porque finalmente tem tempo. O sedentário que decide que janeiro será o mês da virada, e começa tudo de uma vez.
Janeiro, aliás, é um mês revelador. Lesões por sobrecarga disparam. Tendinites, fraturas por estresse, dores articulares aparecem como uma fatura atrasada. O corpo cobra não apenas o excesso recente, mas meses, às vezes anos, de negligência com o descanso estruturado.


A cultura da produtividade infinita


Vivemos sob a lógica da performance contínua. Produzir mais, responder mais rápido, operar mais, atender mais. Essa lógica invadiu a medicina de forma silenciosa. O médico produtivo virou sinônimo de agenda cheia. O bom profissional, muitas vezes, é aquele que não para.


O problema é que o corpo, e a mente, não obedecem a planilhas. A fadiga cognitiva existe. O esgotamento emocional existe. E eles afetam diretamente a qualidade do cuidado. Decisões ficam mais automáticas, escuta mais superficial, empatia mais curta.


Não por acaso, o burnout deixou de ser um termo da moda para se tornar um problema reconhecido globalmente, inclusive pela Organização Mundial da Saúde. Ainda assim, seguimos tratando o descanso como algo que “se encaixa quando der”, e não como parte do tratamento, para médicos e pacientes.


O descanso que a medicina prescreve, mas não pratica


Há uma ironia difícil de ignorar: somos rigorosos ao orientar repouso pós-operatório, controle de carga, retorno progressivo às atividades. Mas raramente aplicamos a mesma lógica à nossa rotina profissional.


Quantos médicos chegam ao fim do ano fisicamente presentes e mentalmente exaustos? Quantos seguem operando, atendendo e decidindo no limite da energia? Quantos confundem resiliência com insistência?


O descanso não é um prêmio por ter sobrevivido ao ano. Ele é um pré-requisito para atravessá-lo bem. Quando negligenciado, o custo aparece, não apenas em forma de doença, mas em perda de qualidade, de prazer e, muitas vezes, de sentido.


Fim de ano: quando o corpo pede silêncio


Dezembro tem um simbolismo próprio. É um mês de balanços, encerramentos, despedidas. O corpo parece entender isso melhor do que a agenda. Não é coincidência que dores antigas reapareçam, que o sono piore, que a tolerância ao estresse diminua.


O erro está em tentar atravessar esse período no mesmo ritmo de março ou agosto. O organismo pede desaceleração, mas seguimos acelerando. E quando finalmente paramos, fazemos isso de forma abrupta, viagens longas, excessos alimentares, álcool, atividades intensas, como se o descanso precisasse ser compensatório. Descansar não é exagerar no oposto. É encontrar ritmo.


O que ainda precisamos aprender


Talvez a maior lição seja simples e, ao mesmo tempo, difícil de aplicar: descanso não é sinal de fraqueza, mas de inteligência biológica. Não é tempo perdido, é tempo investido.


A medicina ainda precisa incorporar o descanso como valor, não como intervalo. Precisa ensinar isso aos pacientes, e praticar internamente. Precisa aceitar que cuidar de pessoas exige energia, atenção e presença, e que tudo isso se esgota quando não há pausa.


Encerrar o ano não deveria ser sobre “aguentar até o último dia”, mas sobre reconhecer limites. O corpo não entende calendário fiscal, metas ou prazos editoriais. Ele responde a carga, repetição e ausência de recuperação.


Talvez, ao aprendermos a descansar melhor, a medicina consiga algo ainda mais difícil do que operar melhor ou diagnosticar mais cedo: cuidar sem adoecer.


E isso, no fim das contas, pode ser a forma mais honesta de começar um novo ano.


Quer mais dicas sobre esse assunto? Acesse: www.tiagobaumfeld.com.br ou siga @tiagobaumfeld

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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