Protocolos atrasados: quando o excesso de proteção atrasa a recuperação
Individualizar não é criar protocolos rígidos para todos; é analisar cada caso com base em evidências, não em medo
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A ortopedia vive uma contradição desconfortável. Avançamos enormemente nas técnicas cirúrgicas, nos materiais de fixação, na qualidade das suturas, no planejamento pré-operatório e na compreensão científica da reabilitação. No entanto, quando o paciente sai do centro cirúrgico e recebe as orientações de pós-operatório, é comum ver recomendações que parecem ter sido escritas décadas atrás. “Não apoiar por 60 dias.” “Andar apenas com duas muletas por oito semanas.” “Nada de carga até liberação médica.” São frases que se repetem com a naturalidade de quem não percebe que o tempo passou, e que a ciência mudou.
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A raiz desse problema está na história. A ortopedia se estruturou em um contexto de trauma grave, quando imobilizar e proibir eram estratégias de sobrevivência. Com materiais rudimentares e técnicas menos estáveis, era preciso, de fato, evitar qualquer risco. O problema é que esse raciocínio não acompanhou a revolução tecnológica da área. Hoje operamos com implantes bloqueados, osteotomias fixadas de maneira rígida, parafusos de alta resistência e abordagens minimamente invasivas que preservam a biomecânica. Apesar disso, muitos protocolos permanecem presos ao passado, movidos mais por hábito do que por necessidade fisiológica.
Essa defasagem cobra um preço alto. O corpo humano não reage bem ao excesso de restrição. Mobilidade precoce e carga progressiva não são modismos: são evidências consistentes. Quando o paciente é mantido por semanas sem apoio, perde força, propriocepção e confiança. A musculatura atrofia, a dor não melhora, a rigidez aumenta e o retorno às atividades se torna mais lento. A proteção excessiva transforma-se numa forma de fragilidade induzida. Em vez de preparar o corpo para voltar à vida normal, o protocolo o afasta ainda mais dela.
Na área do pé e tornozelo, esse contraste entre evolução técnica e atraso na reabilitação é especialmente visível. Não é raro ver cirurgias feitas com materiais extremamente estáveis, capazes de suportar carga parcial muito cedo, acompanhadas de orientações que mantêm o paciente 45 ou 60 dias sem pisar. Quando o próprio paciente vê, em vídeos ou explicações, a robustez da fixação utilizada, a pergunta surge naturalmente: “Se está tudo tão firme, por que não posso apoiar?”. Muitas vezes, essa pergunta não tem uma resposta técnica, apenas cultural.
Claro que há situações que realmente exigem cuidado extra: fraturas complexas, revisões, ossos muito osteoporóticos, infecções ou cirurgias com instabilidade residual. Cautela, nesses casos, é essencial. Mas cautela não significa imobilização indiscriminada. Individualizar não é criar protocolos rígidos para todos; é analisar cada caso com base em evidências, não em medo.
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Para entender por que as restrições exageradas são prejudiciais, basta observar alguns efeitos fisiológicos da ausência de carga:
» Atrofia muscular acelerada: em poucos dias sem apoio, a perda de força já é significativa.
» Queda da propriocepção: a falta de estímulo neuromuscular deixa o corpo “desprogramado”.
» Dor persistente: imobilização prolongada aumenta rigidez e sensibilidade.
» Medo de se movimentar: semanas ouvindo “não pise” criam uma barreira psicológica real.
» Atraso funcional: quanto mais o paciente fica parado, mais difícil é alcançar o nível anterior.
Esses problemas não são colaterais inevitáveis, são consequências previsíveis de protocolos ultrapassados.
A reabilitação moderna segue outra lógica: apoiar cedo, mas com estratégia. Apoio não é uma decisão binária; é um processo que pode começar com simples toque do pé no chão, avançar para carga mínima, depois parcial, depois total assistida, até chegar à autonomia completa. A progressão bem conduzida estimula os sistemas muscular, ósseo e neurológico de forma segura, favorecendo a consolidação, diminuindo dor e acelerando o retorno à função.
Em última análise, atualizar os protocolos pós-operatórios é uma questão de coerência. Não faz sentido realizar cirurgias sofisticadas e depois tratá-las com orientações que pertencem ao século passado. Não faz sentido empoderar o paciente dentro da sala cirúrgica e fragilizá-lo no pós-operatório. E não faz sentido defender medicina baseada em evidências enquanto mantemos rotinas movidas por tradição.
A ortopedia precisa abandonar o “não apoiar por X semanas” como mantra universal. Precisa substituir a restrição automática por análise criteriosa. Precisa confiar mais na qualidade das técnicas e na capacidade de adaptação do corpo humano. E precisa lembrar que movimento progressivo, orientado e bem planejado faz parte da cura.
Alguns pacientes realmente devem esperar mais. Mas a maioria não precisa.
E entre proteção e atrasar a vida, a escolha deveria ser óbvia.
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As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
